segunda-feira, 16 de novembro de 2020

DOCS BRASILIENSES

Antonio Carlos Egypto

 



Dentro do cabo da Aeronáutica José Carlos sempre houve a Maria Luíza.  Desde criança, muito antes de que a paixão por aviões a levasse a optar pela carreira militar.  A primeira transexual da Força Aérea acabou conquistando, a duras penas, sua festejada carteira de identidade castanha.  Depois de sofrer muito preconceito na vida e de ter amargado as consequências de uma rejeição de sua identidade feminina que a impediu de ser ela mesma.  Pela via da ciência, com tratamentos para reforçar a identidade masculina que recebeu da sociedade e aplacar suas características femininas.  A começar por uma raspagem das cordas vocais para engrossar a voz.  E também, claro, pela via moral que, no limite, a impediu de usar o fardamento feminino da Aeronáutica e a aposentar por invalidez depois de 22 anos de serviços impecáveis, sem qualquer mancha ou questionamento em seu desempenho.  Com um salário abaixo do merecido.

 

O documentário do diretor brasiliense Marcelo Diaz, MARIA LUÍZA, primeiro longa do cineasta, dedica-se a nos apresentar essa história contada pela própria Maria Luíza e por outras pessoas que com ela conviveram ou que procuram explicar a transexualidade.  É um tema tabu até hoje, tanto que ninguém na hierarquia militar da Aeronáutica quis prestar qualquer depoimento.  Existe no documento, mas ainda não existe no reconhecimento da realidade.

 

Um tema como esse, que implica rejeição, sofrimento, negação da própria identidade, julgamento moral com base na ignorância e no preconceito, inevitavelmente resvala por emoções fortes.  Não por acaso, o documentário nos envolve e emociona, apesar de Maria Luíza ser tímida, econômica nos relatos e relutante na revelação da opressão que sofreu.  Seu catolicismo a faz capaz de perdoar e entender a ignorância dos pais, não os culpando por nada do que viveu.

 

Faz-nos lembrar da reação espontânea do dr. Dráuzio Varella naquele episódio do abraço à transexual abandonada na cadeia, exibido pela TV e Internet, que virou polêmica.  Naquele caso havia um crime, mas houve a solidariedade humana de uma pessoa da qualidade do médico, que é muito admirado por seu trabalho e sua capacidade de comunicação como profissional e como escritor.

No caso de Maria Luíza, não há crime algum, pelo contrário, há uma dedicação impressionante à Força Aérea Brasileira, nunca contestada.  Ainda assim, o reconhecimento não acontece.  O preconceito fala mais alto.

 

MARIA LUÍZA, o filme sobre a primeira mulher trans das Forças Armadas Brasileiras merece ser visto e divulgado.  Não é possível que continuemos a manter tabu daquilo que mexe com a gente, que a gente não entende, que nos incomoda.  Até quando vamos fingir que a diversidade humana não existe?  Bem, notícias de candidatas trans sendo eleitas neste 2020 pelo Brasil  são alvissareiras. 80 minutos.

 




Documentário CANDANGO – MEMÓRIAS DO FESTIVAL, do cineasta brasiliense Lino Meireles, em seu primeiro longa, realiza um importante trabalho histórico em relação ao cinema brasileiro, num período de 50 anos.  O filme reconstrói, por meio da chamada história oral, o que aconteceu no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, o maior evento relacionado ao nosso cinema, ao longo de todo esse período.

 

Ouviu todo o pessoal envolvido, atores, atrizes, diretores, técnicos, organizadores, críticos e jornalistas, relembrando vitórias, derrotas, solidariedade, competições, brigas e longas discussões, costurando a história em que se destacam a luta cultural contra a censura e a ditadura militar, que já estava instalada quando o Festival de Brasília começou, em 1965.

 

Sabemos que a memória é seletiva, coisas são esquecidas, outras, superdimensionadas ou distorcidas, elas vêm recheadas de afetos, que vão do eufórico ao incômodo.  É importante resgatá-las, revisitá-las.  É o que o documentário faz, nos pondo em contato com as memórias de todas as grandes figuras do cinema brasileiro, que por lá passaram.  Para quem gosta de cinema, e conhece, acompanha o cinema nacional, o filme flui, delicia, encanta.  Para quem está menos ligado, dá para perceber como é difícil fazer cinema no Brasil, os vai-e-vens das leis, das ações governamentais, do abandono à própria sorte, da perseguição política e da censura, dos interesses comerciais que inviabilizam projetos e até do próprio preconceito do público.

 

Quando se percorre todo esse caminho árduo, fica difícil simplesmente criticar ou comparar nosso cinema ao que se faz em outros lugares em que há muito mais apoio e condições econômicas bem diversas.  É forçoso reconhecer a qualidade do cinema brasileiro, sua diversidade e criatividade, inclusive nos momentos mais tensos e desalentadores.

 

As obras maiúsculas premiadas ao longo desses 50 anos no Festival de Brasília deixam muito claras a força e a importância do nosso cinema.  O cinema que mostra a nossa cara, o nosso ambiente, a nossa cultura, as nossas preocupações, os nossos problemas, o nosso jeito de amar.  119 minutos.




 

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