Antonio Carlos Egypto
Dentro do cabo da Aeronáutica José
Carlos sempre houve a Maria Luíza. Desde
criança, muito antes de que a paixão por aviões a levasse a optar pela carreira
militar. A primeira transexual da Força
Aérea acabou conquistando, a duras penas, sua festejada carteira de identidade
castanha. Depois de sofrer muito
preconceito na vida e de ter amargado as consequências de uma rejeição de sua
identidade feminina que a impediu de ser ela mesma. Pela via da ciência, com tratamentos para
reforçar a identidade masculina que recebeu da sociedade e aplacar suas
características femininas. A começar por
uma raspagem das cordas vocais para engrossar a voz. E também, claro, pela via moral que, no
limite, a impediu de usar o fardamento feminino da Aeronáutica e a aposentar
por invalidez depois de 22 anos de serviços impecáveis, sem qualquer mancha ou
questionamento em seu desempenho. Com um
salário abaixo do merecido.
O documentário do diretor brasiliense
Marcelo Diaz, MARIA LUÍZA, primeiro
longa do cineasta, dedica-se a nos apresentar essa história contada pela
própria Maria Luíza e por outras pessoas que com ela conviveram ou que procuram
explicar a transexualidade. É um tema
tabu até hoje, tanto que ninguém na hierarquia militar da Aeronáutica quis
prestar qualquer depoimento. Existe no
documento, mas ainda não existe no reconhecimento da realidade.
Um tema como esse, que implica
rejeição, sofrimento, negação da própria identidade, julgamento moral com base
na ignorância e no preconceito, inevitavelmente resvala por emoções
fortes. Não por acaso, o documentário
nos envolve e emociona, apesar de Maria Luíza ser tímida, econômica nos relatos
e relutante na revelação da opressão que sofreu. Seu catolicismo a faz capaz de perdoar e
entender a ignorância dos pais, não os culpando por nada do que viveu.
Faz-nos lembrar da reação espontânea
do dr. Dráuzio Varella naquele episódio do abraço à transexual abandonada na
cadeia, exibido pela TV e Internet, que virou polêmica. Naquele caso havia um crime, mas houve a
solidariedade humana de uma pessoa da qualidade do médico, que é muito admirado
por seu trabalho e sua capacidade de comunicação como profissional e como
escritor.
No caso de Maria Luíza, não há crime
algum, pelo contrário, há uma dedicação impressionante à Força Aérea
Brasileira, nunca contestada. Ainda
assim, o reconhecimento não acontece. O
preconceito fala mais alto.
MARIA
LUÍZA, o filme sobre
a primeira mulher trans das Forças Armadas Brasileiras merece ser visto e
divulgado. Não é possível que
continuemos a manter tabu daquilo que mexe com a gente, que a gente não
entende, que nos incomoda. Até quando
vamos fingir que a diversidade humana não existe? Bem, notícias de candidatas trans sendo eleitas neste 2020 pelo Brasil são alvissareiras. 80 minutos.
Documentário CANDANGO – MEMÓRIAS DO FESTIVAL, do cineasta brasiliense Lino
Meireles, em seu primeiro longa, realiza um importante trabalho histórico em
relação ao cinema brasileiro, num período de 50 anos. O filme reconstrói, por meio da chamada
história oral, o que aconteceu no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, o
maior evento relacionado ao nosso cinema, ao longo de todo esse período.
Ouviu todo o pessoal envolvido,
atores, atrizes, diretores, técnicos, organizadores, críticos e jornalistas,
relembrando vitórias, derrotas, solidariedade, competições, brigas e longas
discussões, costurando a história em que se destacam a luta cultural contra a
censura e a ditadura militar, que já estava instalada quando o Festival de
Brasília começou, em 1965.
Sabemos que a memória é seletiva,
coisas são esquecidas, outras, superdimensionadas ou distorcidas, elas vêm
recheadas de afetos, que vão do eufórico ao incômodo. É importante resgatá-las, revisitá-las. É o que o documentário faz, nos pondo em
contato com as memórias de todas as grandes figuras do cinema brasileiro, que
por lá passaram. Para quem gosta de
cinema, e conhece, acompanha o cinema nacional, o filme flui, delicia, encanta. Para quem está menos ligado, dá para perceber
como é difícil fazer cinema no Brasil, os vai-e-vens das leis, das ações
governamentais, do abandono à própria sorte, da perseguição política e da
censura, dos interesses comerciais que inviabilizam projetos e até do próprio
preconceito do público.
Quando se percorre todo esse caminho
árduo, fica difícil simplesmente criticar ou comparar nosso cinema ao que se
faz em outros lugares em que há muito mais apoio e condições econômicas bem
diversas. É forçoso reconhecer a
qualidade do cinema brasileiro, sua diversidade e criatividade, inclusive nos
momentos mais tensos e desalentadores.
As obras maiúsculas premiadas ao longo
desses 50 anos no Festival de Brasília deixam muito claras a força e a
importância do nosso cinema. O cinema
que mostra a nossa cara, o nosso ambiente, a nossa cultura, as nossas
preocupações, os nossos problemas, o nosso jeito de amar. 119 minutos.
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