Fernanda Furquim
Desde o início do século XIX que o povo alemão passou a cultivar o sonho de se tornar um dia uma grande potência germânica, não apenas econômica e política, mas, também, cultural. Em busca de concretizar esses sonhos a Alemanha foi o agente provocador de várias guerras e batalhas em prol de sua unificação que culminaram na 1ª Guerra Mundial em 1914. Ainda assim, conseguiu reerguer-se duas vezes, dando ao mundo algumas das melhores expressões artísticas de todos os tempos, e sua inestimável contribuição ao cinema mundial.
O ano é 1919. A 1ª Guerra chegara ao fim após anos de lutas e morte. A Alemanha derrotada, está devastada, politica, econômica e socialmente. Na cidade e nos campos estão as marcas das batalhas que, direta ou indiretamente, deixaram buracos, trincheiras, corpos e um cheiro de podridão, tristeza e desolação. A época de grandes conquistas para o Segundo Reich terminara, dando lugar à desconfiança, desesperança, incredulidade e ao sentimento de abandono da população onde, vez por outra, surgia tentativas de organizar-se e derrubar o governo agora civil.
A solidão, o temor do que o futuro poderia reservar-lhes e o constante medo da morte que parecia impregnar o dia-a-dia, a despeito da Guerra ter terminado, predominavam. Os efeitos da Guerra no povo alemão e nas demais nações envolvidas foi traumático. Todo o otimismo gerado pelo crescimento econômico e tecnológico do Século XIX desapareceu. Os sobreviventes voltaram para casa desorientados e sem perspectivas de um futuro. A crueldade dos campos de batalha e a perda de milhares de vidas humanas aliadas ao requinte de crueldade e sadismo, revelados aos poucos, levaram o povo a um estado de perda do sentido da vida.
As nações, como um todo, acreditavam que esta tinha sido a pior de todas as Guerras. O testemunho dos horrores que viveram nos campos de batalha provocaram nos soldados um efeito de estresse pós-traumático que os levaram à desorientação e à depressão. O trauma provocado pela Guerra manifestou-se de diferentes formas na sociedade alemã, desde pequenos movimentos de revolta política, passando pelo movimento de apoio à organizações de ajuda internacional às vítimas da Guerra, chegando ao ponto de gerar um movimento saudosista. Retornar a uma época em que a vida era mais simples provocou também um sentimento de rejeição às responsabilidades e às mudanças que a vida moderna ainda poderiam trazer.
É neste cenário que surge o movimento expressionista no cinema alemão. Mudanças políticas em um país arrasado econômica e psicologicamente, que resultam em um questionamento moral, fez com que o movimento representasse fielmente a perda do equilíbrio, a desproporção e a desorientação pela qual viviam os alemães e a sociedade como um todo. O tema da morte tornou-se presente, seja em sentimentos de medo, em assassinatos, em agentes condutores ou mesmo na sua presença materializada.

A vida no vilarejo não altera seu ritmo em função desse muro que os separa, as pessoas continuam nascendo, vivendo e morrendo e, é exatamente o que acontece com o jovem noivo. Após seu período de vida chegar ao fim, ele é levado pela morte a atravessar o muro juntamente com as almas de outros que fazem a passagem. Inconformada com o desaparecimento do homem de sua vida, e acreditando que o amor é mais forte que a própria morte, a jovem noiva sai à procura da Morte para pedir a devolução de seu amado.
Em um ambiente onde encontram-se inúmeras velas acesas, cada uma de um tamanho diferente tem início o diálogo entre vida e morte. Esta, então, revela-se extremamente humana diante de tanta irracionalidade e desespero. Cansada de ser culpabilizada pela infelicidade das pessoas quando está apenas cumprindo seu dever ao levar consigo as vidas daqueles que chegaram ao seu destino, a Morte faz um trato com a jovem. Apresentando cada vela como representante de uma vida, ela lhe faz uma proposta: se a moça conseguir salvar uma de três velas, provando que sim, o amor é mais forte que a morte, ela lhe devolverá seu amado. O filme então parte para a narrativa das três vidas representadas pelas velas, nas quais a jovem e seu amado representam casais que viveram em épocas e locais distantes, sempre separados pela morte do jovem.
Em meio a cenários suntuosos e uma visão fantástica do mundo, Fritz Lang apresenta a simplicidade dos sentimentos do ser humano diante do inevitável fim. Desmistificando a própria morte ao lhe dar um rosto e sentimentos próprios em relação a ela mesma e à forma como as pessoas a vêem, Lang conseguiu desenvolver uma narrativa intimista de auto-análise sobre o sentido da vida. A morte deve ser temida ou almejada? Se o medo que temos dela nos paralisa e nos faz fugir dos prazeres e das alegrias da vida, porque torná-la tão presente ao ponto de lhe darmos um rosto e uma participação constante em nossa existência? Não aceitando a partida de alguém, estamos morrendo ao mesmo tempo, com a diferença de que ainda estamos aqui.
Nas histórias das três velas, temos uma metáfora da vida após a morte, a reencarnação, visto que as três histórias são vividas pelo mesmo casal, mas se passam em épocas diferentes. Um casal que está fadado a viver separado. Em todas as histórias, a jovem é o agente que inadvertidamente provoca a morte do ser amado. Desta forma, Lang mostra que somos nós mesmos, com nossas atitudes, responsáveis pelas conseqüências de nossos atos; e não um fator externo ou mesmo divino apesar da figura do poder ser sempre retratada como o responsável pela morte no ato físico.
Movida por amor e não por fé, a jovem do filme ignora qualquer ato racional, buscando freneticamente alcançar seu objetivo e derrotar a morte. Em seu derradeiro desespero ela apela para os moradores do vilarejo em uma busca vã de encontrar alguém que queira trocar de lugar com seu noivo. Até que, ao conquistar o poder de decisão, metaforicamente colocando-se na posição do governo através da qual pode decidir quem vive e quem morre, ela conscientiza-se das conseqüências de seus atos e se sacrifica no lugar de outro. Com essa incontestável prova de amor, a Morte une novamente o jovem casal, até sua próxima aventura na Terra.
Filme realizado na transição entre duas décadas, “A Morte Cansada” traça um paralelo entre a vida e a morte, a aceitação do novo e das mudanças que estão por vir, com o enrraizamento ao passado e o medo de um futuro. O presente não existe, ele está suspenso enquanto a personagem faz uma viagem ao passado e a outras épocas, tentando mudar seu destino, para concluir que não deseja fazer parte da vida em um futuro que desconhece, sem o amor para conduzir suas ações, pensamentos e sentimentos.
Solitária e cansada, a Morte se revela humana em relação à vida. Despojada de qualquer sentimento de amor ela não é movida pelo desespero, pela ganância, pelo sentimento de poder aos quais os seres se submetem para alcançar seus objetivos. Ela é paciente, compreensiva, cumpre com seu dever, pois têm consciência do sentido da vida. Mesmo sabendo qual será o resultado dessa história, ela se propõe a dar à jovem o poder de decidir quem vive e quem morre, assumindo, assim, seu lugar.
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