terça-feira, 2 de setembro de 2025

A MELHOR MÃE DO MUNDO

Antonio Carlos Egypto

 


A MELHOR MÃE DO MUNDO.  Brasil, 2025.  Direção: Anna Muylaert.  Elenco: Shirley Cruz, Seu Jorge, Rihanna Barbosa, Benin Ayo. 106 min.

 

“A Melhor Mãe do Mundo” já está em cartaz há algum tempo nos cinemas, mas só consegui ver o filme agora.  Foi algo circunstancial, já que o trabalho da diretora Anna Muylaert sempre me interessou.  De longa data, aliás.  O seu curta-metragem de 1995, “A Origem dos Bebês Segundo Kiki Cavalcanti”, eu utilizei no trabalho de orientação sexual nas escolas com estudantes, era divertido e as coisas estavam bem colocadas.

 

Um outro curta, “Chamado a Cobrar”, de 2012, me divertiu muito. Seus longas são, reconhecidamente, filmes que se destacam no cinema brasileiro.  Especialmente, “Que Horas Ela Volta?”, de 2015, “É Proibido Fumar”, de 2009, e “Durval Discos”, de 2002.  Seu filme de 2022, “O Clube das Mulheres de Negócios”, no entanto, me decepcionou.  Talvez por isso eu tenha sido leniente em buscar este seu novo trabalho.  Mas sem razão.

 

“A Melhor Mãe do Mundo” é um filme consistente, bem realizado, como sempre, no caso dela, e tem uma narrativa abrangente.  A trama mostra a violência doméstica contra a mulher na ambiguidade dos sentimentos e desejos femininos frente ao agressor.  Vê sua fraqueza que se escora na força bruta descontrolada da embriaguez.  E põe a grande figura de Seu Jorge nos convencendo disso, sem que seja preciso mostrar nem exigir dele agressão nenhuma visível.  Perfeito o que está subentendido.  A relação dele, parceiro da mãe, mas não pai, com duas crianças, também é explorada com sutileza, tranquilidade aparente e muito significado. 

A grande personagem que é Gal, vivida pela excelente Shirley Cruz, é muito bem desenvolvida no seu périplo pela vida de catadora, sem teto após uma separação e sequestrando seus próprios filhos para viver com eles em situação de rua, tendo como único instrumento sua carrocinha.  Aí o filme empresta de “A Vida É Bela”, de Roberto Benigni, de 1997, a ideia de as limitações, opressões e agruras serem apresentadas por Gal e aceitas pelos filhos como grandes aventuras. 

 


Só que aqui, como o isolamento não acontece, a realidade se imiscui na aventura e o destino final do périplo, buscado com realismo e esperança, acaba se revelando uma armadilha.  Uma reviravolta, então, se impõe à narrativa.  E tudo isso se resolve muito bem, no final das contas.

 

O elenco, ponto forte do filme, tem, além de Shirley e Seu Jorge, duas crianças ótimas, magnificamente bem trabalhadas em desempenhos deliciosos: Rihanna e o garotinho Benin.

 

 

                                   CLÁSSICOS DO TERROR    

Aproveito para deixar aqui uma dica para quem gosta de filme de terror, de alta categoria (o que é raro).  É a mostra Clássicos do Terror, em São Paulo, no mês de setembro, às 5as. feiras, às 21:00 h, no Espaço Petrobrás de Cinema, e também no Cinesala, em outros dias.  Serão exibidos: ’O Iluminado”, de Stanley Kubrick, 1980, “Carrie, a Estranha”, de Brian De Palma, 1976, “Os Pássaros”, de Alfred Hitchcock, 1966, “O Bebê de Rosemary”, de Roman Polanski, 1968.  Como se vê, a fina flor do terror na telona.

 

 

 

 

quinta-feira, 21 de agosto de 2025

O ÚLTIMO AZUL

Antonio Carlos Egypto

 


O ÚLTIMO AZUL.  Brasil, 2025.  Direção: Gabriel Mascaro.  Elenco: Denise Weinberg, Rodrigo Santoro, Miriam Socarrás, Adanilo.  86 min.

 

“O Último Azul” conquistou o Grande Prêmio do Júri do Festival de Berlim 2025, trouxe para o Brasil o cobiçado Urso de Prata da competição.  O filme é dirigido pelo cineasta pernambucano Gabriel Mascaro, que já nos deu “Ventos de Agosto”, 2014, “Boi Neon”, 2015, e “Divino Amor”, 2018.  Todos esses trabalhos tratam de temas sociais relevantes, envolvem provocações, implicam reflexão e nos remetem também ao elemento fantástico e ao imponderável.

 

Tudo isso está presente e com maior sofisticação do que nos filmes anteriores em “O Último Azul”.  Aqui, o tema é o etarismo, ou seja, o preconceito e a discriminação contra pessoas idosas. 

 

Numa suposta sociedade brasileira distópica, na região amazônica, o governo autoritário instalado “premia” as pessoas por idade, com medalhas e condecorações.  Estabelece que elas têm de parar de trabalhar ao alcançar 75 anos e se retirar para um local distante, supostamente protegido e bem cuidado. Decreta-se, no entanto, o fim da cidadania.  Além de ter de parar de trabalhar, todas as decisões sobre a própria vida o idoso ou idosa só poderá tomar com consentimento do filho ou filha estabelecido como responsável.  É a morte civil, enfeitada de proteção, com vistas a deixar todo o terreno produtivo ao alcance dos jovens.  Se for preciso, o veículo catavelho se encarregará de efetuar a mudança.

 

A personagem que nos levará a esse mundo (futuro?) é Tereza, brilhantemente interpretada por Denise Weinberg.  Ela aos 77 anos segue trabalhando, produtiva e dona do seu nariz, mas terá de enfrentar esse processo todo de apagamento.  Naturalmente, ela resistirá como puder, embarcando sem planejamento em uma aventura altamente transformadora e inusitada. 

 


Só queria viajar de avião, o que nunca havia feito, mas, em virtude da não-autorização da filha, acaba embarcando numa jornada de barco pela natureza, ciceroneada por Cadu (Rodrigo Santoro) e encontra o caracol de líquido azul capaz de produzir mudanças viscerais na vida e no comportamento das pessoas.  O imprevisível se estabelece e se desdobra na jornada ainda mais improvável pelo barco conduzido por Roberta (Miriam Socarrás), que aprendeu a viver nele uma nova vida de idosa, muito ativa.

 

Um local onde se pode ganhar ou perder muito dinheiro, um desafiador “cassino”, que promove luta entre belos peixinhos branco e vermelho que se precisaria intuir no que vai dar, oferece a oportunidade (mais uma) de explorar a beleza plástica dos rios, da natureza, da flora e da fauna. A fotografia é deslumbrante. O filme é uma experiência estética muito gratificante.  Quem cultiva a beleza não deixará de reconhecer isso.  E toda essa aventura estetizada, afinal, está a serviço da discussão sobre a velhice, o modo como se está no período idoso da vida, o que move as pessoas nesse momento, formas transformadoras de entender e interagir com o mundo.

 

Utilizando o elemento da fantasia, do imponderável, do inusitado, do surpreendente, “O Último Azul” faz sua provocação abrindo horizontes que o simples realismo teria muito mais dificuldade para oferecer.




sexta-feira, 15 de agosto de 2025

DE ÁRABE A BORDEAUX

Antonio Carlos Egypto

 



Já está em andamento a 20ª. Mostra Mundo Árabe de Cinema, com 12 filmes inéditos e 6 produções marcantes, exibidas ao longo desses anos.  A Mostra acontece até o dia 19 de agosto no Cinesesc São Paulo e de 16 de agosto a 07 de setembro de 2025, no Centro Cultural Banco do Brasil, CCBB, São Paulo.  Entre os 22 países representados no evento estão Palestina, Líbano, Egito, Sudão, Catar, Tunísia, Síria, Argélia e Arábia Saudita.  O filme que abriu a Mostra, no dia 13 de agosto no Cinesesc, foi “Tudo o Que Resta de Você”, que comento a seguir.

 



TUDO O QUE RESTA DE VOCÊ (All That’s Left of You).  Palestina, 2025.  Direção: Cherien Dabis.  Elenco: Cherien Dabis, Saleh Bakri, Mohammad Bakri.  145 min.

O filme da diretora e atriz Cherien Dabis nos mostra, por meio da história de uma família, o que tem sido a vida dos palestinos, desde 1948, quando se estabeleceu o Estado de Israel, até o ano de 2020, em que um adolescente morto é levado em caixão pelas ruas da Cisjordânia em mais um protesto   palestino contra a opressão a que estão sujeitos.  O adolescente Noor, que morreu baleado na cabeça, teve morte cerebral e chegou a ter os seus órgãos doados, o que é discutido no filme de mais de um ponto de vista, é revisitado em sua história.  Ela tem origem na situação de seu avô, sendo obrigado a um deslocamento forçado de sua cidade natal, Jaffa, onde constituía família, tinha uma boa casa e um laranjal.  Passa pela perda de bens, da mobilidade, do ir e vir, das restrições impostas pelos toques de recolher arbitrários, pela humilhação que um pai acaba sofrendo diante de seu filho pequeno, que o tinha como um herói.  Tudo isso explicando e antevendo aquele final trágico.  O filme “Tudo O Que Resta de Você” é bastante eficiente ao revelar a vida e os sentimentos dos palestinos no contexto em que vivem e que se estende no tempo, cada vez mais agravados, como se vê nas notícias dos dias de hoje.  Assim como mostra hábitos, costumes, valores que os identificam.  No entanto, sua narrativa, por se alongar demais, acaba produzindo picos de genuínas emoções, mas também de discussões dispensáveis e até momentos tediosos.  O filme não mantém o ritmo ao longo do tempo.  Mas é um libelo, uma manifestação legítima e importante da questão palestina que, mais do que em qualquer outro momento talvez, está em total evidência.


 



Está em cartaz mais um filme que se destacou na 48ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. A PRISIONEIRA DE BORDEAUX (La Prisionnière de Bordeaux), França, 2024, dirigido por Patricia Mazuy, tem Isabelle Huppert como protagonista.  E mais uma vez em grande atuação, compartilhada com Hafsia Herzi.  A história gira em torno de Alma e Mina, que têm os respectivos maridos na prisão, e aproximam-se a partir do encontro delas em dia de visita à cadeia. Elas pertencem a mundos muito distintos, do ponto de vista econômico.  Alma, esposa de um médico famoso, vivendo sozinha num casarão sofisticado. Mina mora num modesto conjunto habitacional, muito longe da prisão.  É a partir daí que Alma generosamente recebe Mina e seus filhos para morarem com ela, pelo menos até que seu marido seja solto.  O relacionamento que resulta dessa amizade improvável traz novos elementos para todos e consequências que resultarão complicadas, de parte a parte, com implicações policiais.  Ou quase.  A história está bem desenvolvida.  O filme conquista atenção, tem bom ritmo, personagens consistentes e levanta questões interessantes do convívio entre classes sociais, envolvendo preconceitos, falsas expectativas e idealizações.  108 min.

 

 

 

quarta-feira, 13 de agosto de 2025

CINEMA NACIONAL

Antonio Carlos Egypto 


Os Enforcados

Em OS ENFORCADOS, Brasil 2024, caracterizado como um thriller tragicômico, absolutamente tudo pode acontecer e as coisas mudam a todo instante.  O que parecia solução vira grande problema.  O que era parceria vira inimizade, o que era apoio vira traição e assim por diante.  Uma trama como essa torna o filme imprevisível.  Se você adora ser surpreendido ou surpreendida, vai gostar muito.  Mas até que isso começar a lhe cansar, não é não?  O ambiente onde se passam essas reviravoltas todas é o Rio de Janeiro dominado pelo jogo do bicho, pelas milícias, pelo tráfico de drogas.  O filme destila essa violência toda sem cerimônia.  Na verdade, a banaliza e o sangue corre solto.  Claro, há uma denúncia política, uma discussão sobre a corrupção e a criminalidade das elites econômicas do Brasil.  Mais um alerta, do ponto a que conseguimos chegar. Certo.  Porém, essa crítica se vale do mesmo recurso de exposição da violência que denuncia.  O trabalho do diretor Fernando Coimbra, de “O Lobo Atrás da Porta”, de 2014, seu longa de estreia muito valorizado pela crítica, reafirma sua busca pela criatividade e inovação.  O elenco é, outra vez, um grande destaque.  Os protagonistas Leandra Leal e Irandhir Santos são grandes atores e a participação de Irene Ravache e de Stepan Nercessian, com seus contornos humorísticos incluídos, valorizam o fluir da narrativa.  123 min.

 


NO CÉU DA PÁTRIA NESSE INSTANTE, documentário nacional, de Sandra Kogut, filmado em 2022 e 2023, acompanhou no Rio de Janeiro o processo eleitoral brasileiro, ao lado de militantes da campanha de Marcelo Freixo, do PT e de familiares e de grupos de bolsonaristas, de camisa amarela.  Além deles, mostra o trabalho da Justiça Eleitoral e dos envolvidos no processo, como mesários, presidentes de mesa, escrutinadores e os voluntários que atuam nas eleições.  Isso tudo, visto no micro, no dia a dia dessas pessoas, as virtudes da democracia parecem muito claras.  A divisão do país, também.  A polarização sempre existiu, mas nunca foi tão intensa.  E coexistem visões do país opostas e irreconciliáveis.  A vitória e a posse de Lula, seguidas das contestações que resultaram nos episódios violentos do 08 de janeiro de 2023, completando a tentativa de golpe de Estado perpetrada, também estão lá, mas sem a riqueza de detalhes da primeira parte.  De qualquer modo, é um mergulho na história bem recente do Brasil, que tem mesmo de ser lembrada e discutida.  Aliás, os reflexos disso tudo estão diariamente nos noticiários da atualidade.  Não é passado, é presente.  105 min.

 

Um Lobo Entre Os Cisnes 

UM LOBO ENTRE OS CISNES, Brasil, 2025, ainda está em cartaz nas sessões Vitrine que, em todas as salas de cinema, como sempre, têm preço reduzido: R$20,00 o ingresso, R$10,00 a meia.  Conta a trajetória do bailarino Thiago Soares, do hip-hop da periferia aos píncaros do Royal Ballet de Londres.  Os diretores Marcos Shechtman e Helena Varvaki enfatizam o processo de lapidação do jovem diamante, bem despreparado no sentido comportamental, de educação e trato para o alcance do estrelato.  Também não deixam de enfatizar sua heterossexualidade, em meio às expectativas e julgamentos sobre a masculinidade dos bailarinos.  No elenco, Matheus Abreu faz Thiago e o grande ator argentino Darío Grandinetti faz Dino Carrera, o seu mentor e disciplinador cubano.  112 min.

 


Vale lembrar também o documentário, de 2025, CAZUZA – BOAS NOVAS, dirigido por Nilo Romero, situado no período mais intenso, criativo e crítico, do grande cantor e compositor Cazuza, que foi um dos primeiros artistas a se revelar como portador do vírus da Aids, nos anos 1980.  Depoimentos de pessoas que conviveram muito de perto com ele, como Frejat, Léo Jaime, Ney Matogrosso, Gilberto Gil e sua mãe, Lucinha Araújo, ao lado de sua música forte e empolgante, resultam num belo trabalho cinematográfico, apesar de muitas das gravações de época serem de baixa resolução, feitas em VHS, por exemplo.  91 min. 





sexta-feira, 8 de agosto de 2025

MONSIEUR AZNAVOUR

Antonio Carlos Egypto

 


MONSIEUR AZNAVOUR.  França, 2024.  Direção: Mehdi Idir e Grand Corps Malade. Elenco: Tahar Rahim, Bastien Bouilon, Camile Moutawaki, Marie Julie Baup.  130 min.

 

Charles Aznavour (1924-2018), artista francês de origem armênia, foi, inegavelmente, um dos maiores portentos da música no mundo e um dos maiores representantes da cultura francesa em todos os tempos.  Grande cantor de longeva carreira e compositor de nada menos do que 850 canções, com um sem-número de sucessos que todos nós conhecemos.  Inclusive os mais jovens que forem bem informados.

 

Uma cinebiografia do artista teria de focalizar com destaque a sua grande obra, acima de tudo.  Isso “Monsieur Aznavour” faz muito bem, partindo do seu começo como criador, chegando com dificuldade às canções mais icônicas, dado o volume do trabalho.  Mas música não falta.

 

Aznavour foi um talento transbordante, mas um trabalhador dedicado e incansável, é o que mostra o filme.  Um artista muito ambicioso, para quem tudo era pouco, e o seu auge ainda incluía dúvidas.  Queria conquistar literalmente o mundo todo, em turnês incansáveis por todas as partes, as mais importantes e significativas do globo.  E essa ambição ficou acima de tudo, da família, dos amigos, do planejamento da carreira.  Dinheiro também era essencial, ele sabia cobrar, a ponto de que, para se satisfazer, precisou alcançar o que seria quase impossível: receber a mesma remuneração que Frank Sinatra, em plenos Estados Unidos da América.

 

Nunca parou de percorrer esse caminho até a morte.  Ele disse que esperava que ocorresse no palco o seu último suspiro.  Isso praticamente aconteceu mesmo.  Morreu em casa, no sul da França, tendo acabado de voltar de uma turnê pelo Japão, aos 94 anos.

 

Sua atuação não se restringiu, apesar de tudo, somente à música.  Vendeu mais de 100 milhões de discos em 80 anos de carreira, mas fez também 60 filmes como ator, ganhou uma estrela na Calçada da Fama em Hollywood e foi diplomata franco-armênio. 

 


O filme cobre bastante a vida e a importância de Charles Aznavour, incluindo suas mulheres, vida familiar, o drama que acometeu um filho seu e toda a fase que ele viveu artisticamente ao lado de Edith Piaff (1915-1963), que lhe abriu as portas da vida artística, mas preferia mantê-lo como compositor a alavancar sua carreira como cantor.

 

Enfim, há muita informação importante que o filme traz ou tenta contextualizar, numa abordagem cinematográfica do tipo clássica, contada linearmente.  Mas faz jus à imensidão do biografado, e envolve o público.

 

Como complemento, recomendo a leitura de um texto que escrevi em 03/01/2021 sobre o documentário de Marc di Domenico, “Aznavour Por Charles”, aqui, no cinema com recheio.

  https://cinemacomrecheio.blogspot.com/2021/01/aznavour-por-charles.html





quinta-feira, 31 de julho de 2025

UMA BELA VIDA +

Antonio Carlos Egypto

 


UMA BELA VIDA (Le Dernier Souffle).  França, 2024.  Direção: Costa- Gavras.  Elenco: Denis Podalydés, Kad Merad, Marilyne Canto, Charlotte Rampling, Angela Molina.  99 min.

 

A morte pode ser mesmo a única certeza da vida, mas é muito difícil lidar com ela.  A finitude é um desafio permanente para a humanidade.  O medo da morte ou de como ela ocorrerá é universal.  Para conviver com a dúvida, temos de produzir certezas, tais como o paraíso, a reencarnação, a nossa transformação em animais, plantas, pó estelar...  Mas ainda que creiamos firmemente em qualquer dessas coisas (ou outras mais), o final da vida e de como a morte se dará, permanece um mistério que angustia.

 

Afinal, o que seria uma boa morte, uma boa forma de morrer?  É possível prepará-la?  Planejá-la?  Como resistir à dor e ao sofrimento?  Onde estar? Como usufruir do fim da vida, onde ainda há vida? Essas são apenas algumas das muitas questões que envolvem a morte, abordadas pelo veterano cineasta Costa-Gavras, hoje com 92 anos de idade, no filme de 2024, “Uma Bela Vida”.

 

Costa-Gavras

Os personagens principais, vividos por dois grandes atores, são Fabrice (Denis Podalydés), um escritor que tenta tratar do assunto com toda a complexidade que ele merece e, para tanto, observa, pergunta, conversa, interage com seu amigo, o dr. Augustin (Kad Merad), que se especializou e se dedica à medicina dos cuidados paliativos.  O seu trabalho já não visa mais a cura, mas a melhoria da qualidade de vida daqueles que estão nos momentos finais da existência, mitigando seu sofrimento, humanizando a partida.

 

Como os pacientes, as pessoas em geral, enfrentam esse desafio?  Lutar com todas as forças para viver?  Deixar fluir, entregar-se, acelerar o processo?  Compartilhar sensações e sentimentos?  Revoltar-se e desesperar-se?  Cada resposta é uma resposta e todas fazem sentido para cada uma das pessoas, em função do que foi e é a sua vida.

 

Mergulhar nesse universo instigante e totalmente incerto é necessário e parece cada vez mais importante no século XXI, pelo alongamento da experiência da vida, pela evolução da medicina, da tecnologia e do conhecimento das ciências humanas, individual e coletivamente.

 

Costa-Gavras, de quem todos devem se lembrar, já nos deu muitos filmes importantes, com destaque para “Z”, 1969, e “Desaparecidos: um grande mistério”, 1982.  Ele faz aqui um filme de grande sensibilidade e com seu talento e delicadeza produz um trabalho autoral que com leveza nos conduz aos estertores da existência humana.

 

Além dos protagonistas, seus familiares e equipe de trabalho, acompanhamos os diversos pacientes terminais que são atendidos pelo dr. Augustin e observados por Fabrice, sua diversidade, como eles lidam com a vida que está no fim da vida.  E como afetam, surpreendem e transformam os dois protagonistas, atingindo todos nós, espectadores.

 

O DESERTO DE AKIN




Entrou em cartaz nos cinemas um filme brasileiro, produção do Espírito Santo, de 2024, dirigido por Bernard Lessa, “O Deserto de Akin”, que aborda como personagem central um médico cubano, que veio trabalhar nos rincões do Brasil e daquele estado, no programa Mais Médicos, se adaptou e prestava um importante serviço a uma comunidade totalmente carente de médicos, até então.  Em 2018, com a eleição de Jair Bolsonaro, o programa foi extinto e Akin vive o drama de tentar permanecer no Brasil ou voltar a Cuba, rompendo relações não só com a comunidade como com os amigos e objetos de desejo que encontrou por lá.  No elenco, o ator cubano Reynier Morales, Ana Flávia Cavalcanti, Guga Patriota, Welket Bungué.  78 min.




 

sexta-feira, 18 de julho de 2025

FILHOS DO MANGUE

                       

 Antonio Carlos Egypto

 



FILHOS DO MANGUE.  Brasil, 2024.  Direção: Eliane Caffé.  Elenco: Felipe Camargo, Genilda Maria, Titina Medeiros, Maria Alice da Silva, Roney Villela.  110 min.

 

Na primeira cena do filme “Filhos do Mangue”, vemos um homem deitado na areia de uma praia deserta, já num horário tardio, aparentemente em má situação, e vemos um cavalo e um cavaleiro passeando ali, ignorando o acontecimento.  Rejeitando qualquer interesse ou ajuda à figura humana desamparada, ou supostamente desamparada.  Esta sequência já define o confronto homem e comunidade que se contará a seguir.

 

Um acidente pode produzir uma situação extrema de amnésia total, em que a pessoa não se lembra de nada do que viveu ao longo da vida. Mal sabe quem é ou o próprio nome.  Acrescente-se a isso uma série de acusações gravíssimas que lhe são imputadas por toda uma comunidade. 

 

O sujeito é descrito como dono de um belo barco, com recursos.  Mas, opressor, além de bater na esposa, está envolvido com tráfico de mulheres, prostituição forçada delas e, ainda, roubo de uma significativa quantia de dinheiro da população local.  Sem memória, como se defender disso ou resgatar essa dívida tão ampla? 

 


A relação desse personagem, Pedro Chão (Felipe Camargo) com a mulher, a filha e toda a comunidade local é o fio central da narrativa de “Filhos do Mangue”, dirigido por Eliane Caffé, com base no livro Capitão, de Sérgio Prado, lançado em 2011.  A ação se passa em Barra do Cunhaú, Rio Grande do Norte, conhecida como o Caribe do Nordeste.  Isso se evidencia na filmagem, que nos mostra uma beleza cênica, única, e o encontro do rio com o mar.  A fotografia acentua e valoriza a beleza do lugar e movimentos de câmera convidam à contemplação e ao deleite.  Isso combinado com um som magnificamente construído, que destaca tudo o que acontece na natureza e com as pessoas: movimento das águas, chuva, vento, pássaros e outros animais, caminhadas, gritos e discussões, mas também sussurros e palavras quase inaudíveis, indicando a distância e a imprecisão da percepção.  Um trabalho primoroso.

 

O roteiro da diretora e de Luís Alberto de Abreu privilegia a discussão do poder na vida comunitária numa vila de pescadores e, especialmente, a questão feminina, a opressão que se abate contra as mulheres, o uso, o abuso, a desvalorização e a violência que atingem o gênero feminino.  Por outro lado, mostra os caminhos da união entre elas, para se empoderarem e resistirem, a sororidade como necessidade e cooperação mútua.  E, ainda, a separação dos homens que as violentam, a busca de uma vida mais livre e respeitosa, quando necessário.  Não há que se suportar calada uma situação que não se sustenta e que não traz sinais de prazer e felicidade.  Enfim, os personagens são representativos do ambiente social de uma pequena comunidade, mas as questões que aparecem têm uma dimensão maior do que essa, a de um caráter universal.

 

A cineasta Eliane Caffé já nos deu filmes importantes, como “Os Narradores de Jafé”, 2003, e “Era o Hotel Cambridge”, 2016.  Conseguiu reunir um elenco competente para contar essa história, com destaque para o protagonista Felipe Camargo, que dá conta muito bem do seu complicado papel.  E alcança um alto nível estético, com esse filme.




domingo, 13 de julho de 2025

2 FILMES

                      

Antonio Carlos Egypto


   


         

YÖG ÃTAK: MEU PAI KAIOWÁ.  Brasil, 2024.  Direção: Sueli Maxakali, Isael Maxakali, Roberto Romero e Luísa Lanna.  Documentário.  94 min.

 

“Meu Pai Kaiowá” não é apenas um filme sobre indígenas, mas também feito por eles próprios.  A direção do filme, que é um documentário, é dos indígenas Sueli Maxakali e Isael Maxakali, com a colaboração do antropólogo Roberto Romero e da montadora e professora Luísa Lanna.  A história recuperada agora remete aos tempos da ditadura militar, que promovia deslocamentos indígenas à força, separando-os de suas bases originais e de suas famílias.  Isso foi feito por agentes do então chamado (imaginem!) Serviço de Proteção aos Índios.  No caso, a cineasta Sueli e sua irmã Maíza saíram em busca de reencontrar o pai, Luiz Kaiowá, separado delas há 40 anos.  O reencontro é difícil, porque ele já havia deletado a própria família, envergonhado e raivoso pelo que lhe sucedeu.  Recluso e resistente, ele acaba conversando sobre a sua história cheia de medo e dor.  Sua vida durante a ditadura militar partiu da região que hoje é Mato Grosso do Sul, passou por São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e fixou-se por 15 anos no Posto Indígena de Minas Gerais, onde casou-se e teve as duas filhas.  Em seguida, houve novo deslocamento forçado à sua terra de origem, sem a família.  Esse tipo de ação da ditadura é pouco conhecido e divulgado.  É apenas mais uma das atitudes desumanas, maldosas, que vigoraram naquele período autoritário que durou 21 anos e deixa estragos até o dia de hoje.  Quanto ao filme, é corajoso na denúncia, tem o ritmo de vida dos indígenas, soluções cinematográficas algo estranhas, mas merece ser conhecido, antes de mais nada, por sua autenticidade.

 




F1 (F1, The Movie).  Estados Unidos, 2025.  Direção: Joseph Kosinski.  Elenco: Brad Pitt, Javier Bardem, Damson Idris. 156 min.

 

Não é preciso gostar de automobilismo ou de Fórmula 1 para curtir o espetáculo das corridas no cinema.  Não só das corridas, mas das relações que se estabelecem nesse ambiente onde a grana dá o tom.  As disputas fora das pistas, a tentativa de colaborar como equipe num contexto que é eminentemente competitivo, o que se dá quando um veterano volta e um jovem talento já vai conquistando seu espaço.  Tudo isso num esporte que mobiliza equipamentos caros, complicados e sujeitos às perdas decorrentes de acidentes que, claro, fazem parte integrante desse esporte.  Para quem gosta de ação, é um prato cheio.  Para quem quer aprender um pouco sobre as regras da Fórmula 1, também.  Os atores que protagonizam o espetáculo merecem cumprimentos pelo belo desempenho.  A começar por Brad Pitt, que exerce um chamariz comercial para o filme por sua história como ator e seu charme. Ele está ótimo como o veterano que volta a correr na Fórmula 1, depois de um bom tempo.  Damson Idris, o novato, está muito bem no papel.  E o contratante dos pilotos, com seus problemas financeiros e expectativas, é ninguém menos do que o excelente ator espanhol Javier Bardem.  Por outro lado, o filme apresenta velhos clichês, como o daquele que já se sente quase aposentado que é impelido à volta às pistas e ao confronto com o novato que não domina tão bem seus limites.  Por ser jovem, arrisca-se demais.  Experiência versus juventude.  A previsibilidade do desfecho também é um elemento que incomoda, embora haja alguma inovação aí.  Mas o filme resiste por seu caráter de espetáculo, muito bem realizado.