quarta-feira, 26 de março de 2025

O TURISTA APRENDIZ

Antonio Carlos Egypto

 



MÁRIO DE ANDRADE, O TURISTA APRENDIZ.   Brasil, 2024.  Direção: Murilo Salles.  Elenco: Rodrigo Mercadante, Dora Freind, Dora de Assis, Lorena da Silva.  92 min.

 

O escritor Mário de Andrade (1893-1945) fez uma viagem pelo rio Amazonas em 1927, um ano antes de lançar Macunaíma, a saga do herói sem nenhum caráter, seu mais famoso romance.  Fez muitas anotações sobre essa aventura, mas só as retomou 16 anos depois, em 1943.  “O Turista Aprendiz”, as anotações, viraria livro em 1976.

 

O filme de Murilo Salles, “Mário de Andrade, o Turista Aprendiz”, é uma homenagem ao grande escritor modernista que pensou o país, buscou compreender e elaborar sobre a construção da identidade cultural brasileira.  Um filme concebido para expor o que se passa na cabeça do escritor, incorporando fatos documentados da vida dele.  São seus textos, anotações, trechos literários, reflexões sobre o Brasil o que importa, suas preocupações, mas também seu bom humor.  Sua poesia, a dimensão da sua obra para a cultura brasileira, tem muito mais peso do que uma cinebiografia do personagem.

 

O ponto de partida é, naturalmente, o livro O Turista Aprendiz, recompondo a jornada amazônica do escritor, suas memórias, particularidades, contradições, numa concepção cinematográfica visualmente arrojada, clean, moderna como o espírito do autor retratado.  Esteticamente não realista, inventiva, teatral, focada num personagem magnificamente interpretado, vivido na perfeição. 

 

Rodrigo Mercadante dá vida a Mário de Andrade, dissolvendo-se no personagem.  Reconstrói a figura física, gestual, movimentos, vestimentas, detalhes da aparência de época.  Compõe um Mário completo.  Não chega a surpreender, porque o ator trabalhou durante 26 anos no teatro, na música, no audiovisual, no show, com o personagem Mário de Andrade.  Dedicou uma vida a revivê-lo.  O resultado é impressionante. 

 


O filme explora também o inusitado das situações, brinca com o personagem na composição das cenas, nos movimentos de câmera, no jogo visual e na versatilidade do desempenho de Rodrigo Mercadante.  A música, ainda que em pouco destaque, está em sintonia com o trabalho de Mário de Andrade na área, seu interesse em temas folclóricos e na elaboração de uma música eminentemente nacional, inclusive no campo erudito.

 

No elenco estão também Dora Freind, Dora de Assis e Lorena da Silva.  Todas em perfeita sintonia com Rodrigo, entre si e com a concepção da obra cinematográfica, estilosa e sensorial.

 

O desafio de abordar com inteligência e criatividade uma figura como Mário de Andrade é enorme.  Basta ver como ele é apresentado: poeta, contista, cronista, romancista, musicólogo, historiador de arte, crítico e fotógrafo.  É pouca coisa?

 

FESTIVAL INTERNACIONAL DE DOCUMENTÁRIOS É TUDO VERDADE

 

É Tudo Verdade, It's All True, o mais importante festival de documentários da América Latina, completa 30 anos e acontecerá de 03 a 13 de abril de 2025, em São Paulo e no Rio de Janeiro.

 

Serão exibidas, sempre em sessões gratuitas para o público, 85 produções, entre longas e curtas, de 30 países.  A programação inclui conferências, debates e sessões em streaming.

 

O circuito de exibição em São Paulo contará com o Cinesesc, a Cinemateca Brasileira, o Instituto Moreira Salles/IMS Paulista e o Centro Cultural São Paulo, além dos curtas disponibilizados no Itaú Cultural Play, de 14 a 30 de abril.

www.etudoverdade.com.br



 

 

sábado, 22 de março de 2025

SEX e LOVE


Antonio Carlos Egypto

 

A trilogia norueguesa de filmes de Haugerud, que aborda vida e relacionamentos, com ênfase em gênero, desejo, sexualidade, é cinema que busca reflexão e profundidade: SEX, LOVE e DREAMS.  Os dois primeiros filmes da trilogia já estão em cartaz nos cinemas brasileiros.  Vale muito a pena conhecer esse trabalho.

 


SEX, Noruega, 2024.  Direção: Dag Johan Haugerud.  Elenco: Jan Gunnar Roise, Thorbjorn Harr, Siri Forberg.  125 min.

 

“Sex” põe em questão a masculinidade e suas relações com sexualidade, gênero e identidade.  Mostra o relacionamento de dois amigos e colegas de trabalho que trocam suas experiências e se surpreendem com o que lhes acontece.  Ambos homens em casamentos heterossexuais.  Um tem um encontro sexual fortuito com outro homem, sem considerar que isso tenha qualquer importância na vida dele.  Tanto que comenta naturalmente o fato com a mulher.  O outro se sente confuso ao se ver como mulher em seus próprios sonhos.  E por aí o filme levanta questões muito interessantes para os dias de hoje.  Os atores protagonistas são muito bons, entram no clima com talento.  

 

LOVE, Noruega, 2024.  Direção: Dag Johan Haugerud.  Elenco: Andrea Braein Hovig, Tayo Cittadella Jacobsen, Marte Engebrigtsen, Thomas Gullestad, Lars Jacob Holm.  119 min.

 

Em “Love”, a médica Marianne e o enfermeiro Tor, ela, solteira, ele, gay, atendem homens que passam por tratamentos de câncer de próstata e buscam relacionamentos não convencionais na vida.  Costumam utilizar uma balsa em que pesquisam quem está on line, em busca de contato por lá.  Abrem-se, então, diferentes possibilidades.  Amor, aqui, não é sexo, nem sexo casual, não é amizade, nem piedade, nem casamento ou filhos.  Pode-se revelar como encontro, aproximação, experiência inesperada, solidariedade, simples conversa.  Apoio moral ou físico, também.  Bela reflexão sobre o sentido do amor na contemporaneidade, que dispensa moralismos e convenções.

 

 

terça-feira, 18 de março de 2025

BITUCA e GIRASSOL

Antonio Carlos Egypto

 



MILTON BITUCA NASCIMENTO.  Brasil, 2024.  Direção: Flávia Moraes.  Narração: Fernanda Montenegro.  Documentário.  110 min.

 

O documentário “Milton Bituca Nascimento” partiu da turnê internacional e nacional de despedida dele dos palcos, acompanhada pela diretora Flávia Moraes, durante dois anos.  Muita coisa importantíssima resultou desses encontros musicais, gerando, para a cineasta, uma questão: como explicar o fascínio que o músico causa no Brasil e no mundo com sua obra?  Uma obra que motiva estudo, pesquisas, aulas, debates universitários, em todos os lugares a que ela chega.  Não sei se precisa, nem sei se dá para explicar.  Há coisas que são autoexplicáveis.  A música de Milton fala por si: músico, compositor, cantor, de qualidades excepcionais, facilmente constatáveis.  Enfim, o documentário vai por aí, mostrando essa obra fantástica do Bituca e engrenando 40 entrevistas, que vão de Quincy Jones, Spike Lee e Paul Simon a Gilberto Gil, Chico Buarque, Mano Brown, Djamila Ribeiro e toda a turma do Clube da Esquina.  A música de Milton nesse derradeiro palco soa magnífica, com a colaboração de outros intérpretes e músicos, como a cantora portuguesa Carminho, por exemplo.  Claro que a voz maviosa de Bituca já não pode tanto, não é mais a mesma.  Mas o encanto está lá e a emoção é tanta que contagia.  O filme é, evidentemente, uma celebração dessa grande obra.  E é mesmo importantíssimo celebrar esse artista gigante que, segundo a diretora, é o Brasil profundo.  Mas é incrível como uma obra mineira, brasileira, popular, se insere de forma tão impressionante e reverenciada no mundo do jazz.  Milton Nascimento é festejado pelos músicos mundo afora, das mais variadas tendências, idades e gêneros musicais.  O adjetivo está para lá de banalizado, mas como evitá-lo?  Realmente, Milton Nascimento, o Bituca, é um gênio da música e um orgulho do Brasil.  Ouvi-lo, relembrar sua história e sua trajetória, sob a narração da grande Fernanda Montenegro, incluindo as perguntas que nem precisariam ser feitas, é uma experiência bem gratificante.



 

GIRASSOL VERMELHO.  Brasil, 2024.  Direção: Éder Santos.  Elenco: Chico Diaz, Daniel de Oliveira, Luah Guimarães, Luiza Lemmertz, Mariano Matos, Bárbara Paz.  110 min.

 

“Girassol Vermelho”, filme de abertura e destaque da 28ª. Mostra de Cinema de Tiradentes, é inspirado em contos de realismo fantástico do escritor mineiro Murilo Rubião (1916-1991).  Dirigido por Éder Santos, também mineiro, com uma carreira marcada pela fusão entre artes plásticas, teatro, cinema e TV.  Codirigido por Thiago Villas Boas e com roteiro do diretor e de Mônica Cerqueira, relata uma aventura do senhor Romeu (Chico Diaz), em busca da liberdade, ainda que sacrificando o seu passado.  A trama remete a uma situação kafkiana, em que o cidadão em questão, após uma parada forçada do trem, caminha por uma estranha cidade enfumaçada, fazendo perguntas para entender o que está acontecendo.  Vai preso, sendo seguidamente interrogado e torturado, e só então descobre que ali há a impossibilidade de questionar, não se podem fazer perguntas. Um sistema que oprime, em nome da máquina, que se materializa em engradados e grandes blocos de vidro fechados, por onde vertem-se a fumaça, a areia, o pó, a água, como elementos destruidores, no mínimo, do moral da pessoa.  Se até aí já há estranheza suficiente, a inclusão do conto Os Comensais na aventura de Romeu, para mim destoou da narrativa, acrescentando ainda mais estranheza ao conjunto.  Sem necessidade.  Tudo isso, no entanto, é uma oportunidade para uma experimentação visual muito instigante.  Além disso, o elenco, brilhantemente liderado por Chico Diaz, retrata personagens que se comportam na base do non sense, rejeitando qualquer resposta ou pergunta racional, lógica.  Ou seja, estamos diante de uma mistura do absurdo com o onírico.  Em que o que se perde é justamente o que se procurava: a liberdade.





terça-feira, 11 de março de 2025

VITÓRIA e SPECTATEURS!

         

 Antonio Carlos Egypto

 



VITÓRIA.  Brasil, 2024.  Direção: Andrucha Waddington.  Elenco: Fernanda Montenegro, Alan Rocha, Linn da Quebrada, Thawan Lucas, Laila Garon.  112 min.

 

“Vitória” trata de uma surpreendente história real, a de uma mulher idosa que, filmando da janela de seu apartamento em Copacabana, desafiou o crime organizado, revelando uma trama de traficantes e policiais corruptos.

 

As mudanças urbanas do Rio de Janeiro através dos tempos fizeram com que D. Nina, de seu pequeno apartamento, antes cercado do verde do morro, ficasse cara a cara com uma favela, de onde partiam tiros, brigas que terminavam em morte, crianças portando armas, consumo e venda de drogas a céu aberto.

 

Com muita coragem, determinação e de forma resiliente, Nina, que depois se chamaria Vitória, foi à luta e acabou por contar com o apoio de um jornalista, detonando uma investigação que levou muitos à prisão, mas colocou em risco a vida dos denunciantes.  Marcada de morte, ela teve de desaparecer por muitos anos, ostentando nova identidade, em um novo lugar.  Quem eram os personagens reais ficou em segredo, até que acontecesse a morte de Nina/Vitória, quando já estavam em andamento as filmagens deste longa-metragem.

 

O roteiro de Paula Fiúza se baseou no livro Dona Vitória da Paz, do jornalista Fábio Gusmão.  A trama do filme é muito bem construída, é uma história que prende a atenção o tempo todo, porque tem uma personagem fascinante e conta com o desempenho de ninguém menos do que Fernanda Montenegro, aos 95 anos.

 

Nenhum adjetivo que eu possa escolher para aderir a Fernanda Montenegro dá conta do que ela é.  Ela é o máximo!  Acho que basta isso para revelar que “Vitória” é ela, dominando a cena, do princípio ao fim do filme, tornando-o uma peça de rara beleza.  Sim, ela é a protagonista full time, não um pequeno papel ou participação especial.  Ela é a dona e razão de ser do filme.  O elenco que interage com ela está muito bem.  Alan Rocha em destaque no papel do jornalista, Linn da Quebrada como Bibiana, amiga e vizinha trans que a ajuda, Thawan Lucas, o menino Marcinho da favela, que carrega pacotes, ganha uns trocados, comida e o afeto dela, enquanto se insere no tráfico, consumindo drogas e portando armas.

 

O filme tem como um dos produtores Breno Silveira, que seria o diretor, mas faleceu de mal súbito no início das filmagens de “Vitória”, que acabou sendo dirigido, com muito talento, pelo genro de Fernanda, Andrucha Waddington.  Mais um belo produto do cinema brasileiro atual, que cresce a olhos vistos.

 

  


 

  

LOUCOS POR CINEMA! (Spectateurs!).  França, 2024.  Diretor: Arnaud Desplechin.  Elenco: Mathieu Amalric, Salif Cisse, Sam Chemoul, Sandra Laugier, Françoise Lebrun.  88 min.

 

Os cinéfilos, frequentadores habituais das salas de cinema, geralmente gostam de assistir a filmes que tratam de cinema. Por que a cinefilia é uma paixão, um encantamento com a magia da imagem em movimento projetada numa tela grande. “Loucos por Cinema!” é um desses filmes que celebram a sétima arte, do ponto de vista dos espectadores.

 

O que é essa paixão?  Como ela se estabelece?  O que é importante no ato de ver os filmes no cinema?  Qual o seu significado para os diferentes tipos de espectadores, com diversas inclinações e preferências?  O lugar na sala é muito importante?  Por quê?

 

Questões como essas vão aparecendo, enquanto um personagem, Paul Dedalus, espectador, avança na experiência de frequentar as salas de cinema, entender e se aprofundar na arte cinematográfica, ao longo do tempo e nas diferentes idades. Inspirado pela própria experiência do diretor Arnaud Desplechin enquanto espectador, ao menos como referência geral, não como paradigma.

 

A descoberta da sala de cinema, que sempre foi arrebatadora para as crianças, hoje é precedida pela oportunidade de ver filmes na TV, no computador, no celular.  Mesmo assim a experiência é outra, não se compara. É por aí que “Loucos pelo Cinema!” caminha, mencionando, citando filmes, comentando alguns, entrevistando espectadores. Abordando, inclusive, o hábito de ver cinema na TV.  Produz assim um híbrido de ficção e documentário.

 

No filme, quando o cinema se faz história e paixão, a coisa flui muito bem.   Quando focaliza alguns filmes como “Shoah”, de Claude Lanzmann, com suas 9 horas e meia de projeção, o interesse cai, a cena se dispersa, porque a sensação de compartilhamento é mais difícil, mais específica.  Particulariza-se o que deveria continuar amplo e geral, a meu ver.  O conjunto da obra, no entanto, se salva.  Claro, especialmente para os cinéfilos.  Que também vão gostar de ver Mathieu Amalric, ainda que num pequeno papel, como participação especial.




terça-feira, 4 de março de 2025

O OSCAR DO BRASIL

 Antonio Carlos Egypto




                                   

“AINDA ESTOU AQUI”, o filme de Walter Salles, faz história, quando conquista o primeiro Oscar para o cinema brasileiro, o de melhor filme internacional.  E o primeiro Oscar a gente nunca esquece, ou esquecerá.  Mais duas indicações ao Oscar: festejamos o de melhor atriz para Fernanda Torres e a inédita indicação entre os 10 melhores filmes do ano.  Antes disso, Fernanda Torres já tinha abocanhado o Globo de Ouro e o filme já teve cerca de 40 prêmios nos festivais mundo afora.  Lembrar que tudo começou no Festival de Veneza, uma consagração para o roteiro do filme e 10 minutos de aplausos efusivos (ou seriam 14 minutos, como diz a Fernandinha num comercial?).

 

Bem, o fato é que o filme encantou todo mundo, a começar pelo povo brasileiro, que se emocionou: riu, chorou, aplaudiu nas sessões de cinema, festejou nas ruas em pleno Carnaval e torceu pelo Oscar como se fosse uma final de Copa do Mundo disputada pelo Brasil.  O maior prêmio foi a afluência aos cinemas: mais de 5 milhões de pessoas viram o filme nas telonas, em todo o Brasil.  O sucesso de “Ainda Estou Aqui”, no entanto, é realmente amplo e internacional.  Já conquistou grandes plateias nas Américas e Europa, o reconhecimento da crítica e uma mensagem de liberdade e resiliência frente ao autoritarismo, representada pela figura de Eunice Paiva, símbolo da democracia, dos direitos humanos e da diversidade.

 

Um filme nunca é só um filme.  Ele reflete o seu tempo, reflete o momento, dialoga com a realidade, ainda que de modo fantástico.  Pode falar do passado, de um passado que não foi elaborado, superado.  De um passado que assombra e alimenta o presente.  De um passado que ameaça voltar, na forma de farsa ou não, mas ameaça.  De um passado tenebroso, que também se mostra no presente e precisa ser vencido.

 


“Ainda Estou Aqui” é uma pérola de concepção cinematográfica.  Exala verdade, sem se valer de artifícios, mostra o que foi, o que é, como lidar com a opressão, o desrespeito aos mais comezinhos valores civilizatórios.  Sequestro, prisão clandestina, tortura, morte, desaparecimento do corpo (ocultação de cadáver), ausência de informações, não-reconhecimento do assassinato por décadas, inviabilizando a existência civil do cidadão.  São tão graves esses crimes perpetrados pelo Estado durante a ditadura militar que um filme que trate disso pode se tornar algo intragável.  Absolutamente, não é o caso de “Ainda Estou Aqui”.  Pela via da pessoa de Eunice é a família que vive tudo isso no seu dia-a-dia, tentando sobreviver.  E com dignidade.

 

A tentativa de destruição de uma família e o modo como ela subsiste, ainda que perdendo seu vigor e alegria em algum nível, mas ainda assim sorrindo e acreditando que a vida vale a pena, é um trunfo narrativo do filme de Walter Salles, brilhantemente protagonizado por Fernanda Torres, Selton Mello e Fernanda Montenegro.  Um filme que, mesmo com essa temática triste, consegue ter luminosidade, amor, humor.  É mesmo um filme excepcional, que até já provocou mudanças na sociedade brasileira, na política e nas leis.  O país não será mais o mesmo depois desse filme emblemático e monumental em sua aparente simplicidade.  O cinema brasileiro deu um passo gigantesco para o seu reconhecimento internacional.  Que já está acontecendo, no Oscar ou fora dele.  Viva nosso cinema!   



     

terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

FLOW

Antonio Carlos Egypto

 


FLOW (Straume).  Letônia, 2024.  Direção: Gints Zilbalodis.  Roteiro do diretor e de Matiss Kaza.  Animação.  85 min.

 

Uma animação da Letônia vem se destacando no cenário cinematográfico, venceu o Globo de Ouro da categoria e está indicada para o Oscar não só como animação, mas também como filme internacional. “Flow” é um desenho fascinante, que deve encantar as crianças, mas se comunica bem com os adultos.

 

Trata-se de um pequeno gato preto, de fortes olhos de cor amarela e preta, que vê seu mundo, seu refúgio, destruído por uma grande inundação, que não para de crescer e vai cobrindo de água tudo o que vê.  Uma consequência do desequilíbrio climático e dos problemas com o meio ambiente, um tsunami?

 

Seja como for, o gato, isolado e independente como é, se vê acuado e posto em perigo a todo instante.  E os espectadores vivem a ansiedade e os riscos pelos quais o gato passa e acompanham toda sua aventura de sobrevivência tensos.

 


Não é comum que seres humanos se identifiquem, se projetem, num personagem felino, que emite sons, mas não fala.  No entanto, isso acontece.  O filme não tem diálogos, afinal, os animais soam, mas não falam.  E não há seres humanos entre os personagens de “Flow”.  Mas há, sim, outros personagens do reino animal que acabam reunidos pelas circunstâncias, tendo de conviver num barco e colaborar entre si, apesar das diferenças.  Unidade na diversidade, para sobreviver.  Amizades improváveis de espécies tão diferentes, que se expressam efusivamente nos sons, mas cada qual com o seu.  Há comunicação possível?  Parece que sim, nessa improvisada arca de Noé.

 

O barco segue à deriva, enquanto a água ocupa o cenário da natureza, até então exuberante, e inclusive com toques mágicos.  A fábula da comunicação entre as espécies, do valor da diversidade e da adaptação necessária às circunstâncias, como forma de sobrevivência diante do inesperado, se realiza, explorando cada um dos diversos personagens da história.

 

Se de início o gato corre, foge da perseguição dos cães e outros animais, agora o seu mundo se fará do convívio pacífico com os diferentes, que antes o assustavam.  A gente acaba se acostumando com o que é desconhecido.  E aprende a conviver com o que antes soava misterioso e perigoso.  O filme nos diz que com os animais e com os seres humanos pode ser assim.  Diante do mal maior, todos caminham juntos.  Uma boa proposta, muito bem realizada.




domingo, 23 de fevereiro de 2025

O BRUTALISTA

Antonio Carlos Egypto

 


 O BRUTALISTA (The Brutalist).  Estados Unidos, 2024.  Direção: Brady Corbet.  Elenco: Adrien Brody, Felicity Jones, Guy Pearce, Raffey Cassidy, Alessandro Nivola.  215 min. com intervalo.

 

“O Brutalista” é uma peça de ficção roteirizada pelo diretor Brady Corbet e por sua esposa Mona Fastvold.  O personagem central é László Tóth (Adrien Brody), um arquiteto judeu húngaro, que sobreviveu ao Holocausto nazista, escapou do domínio soviético em Budapeste, durante a Segunda Guerra Mundial e imigrou para os Estados Unidos, em busca do chamado sonho americano.

 

O filme explora, em toda sua longuíssima duração, uma série de questões ligadas à imigração: a difícil sobrevivência inicial, mesmo contando com um parente no local, a oportunidade que surge, sim, na figura de um mecenas que reconhece o talento do arquiteto e lhe oferece uma grande obra a ser feita, ao mesmo tempo em que desfila preconceitos diversos e desrespeitos flagrantes à figura de László. É o papel de Harrison Van Buren, vivido com brilhantismo por Guy Pearce.  A batalha para conseguir trazer para a América a mulher, Erzsébet (Felicity Jones), e a sobrinha Zsófia (Raffey Cassidy), os problemas com as doenças e a dependência de drogas necessárias para aguentar o tranco.  Enfim, o sonho americano pode ser muito amargo e estranho, como a figura, óbvia, da Estátua da Liberdade de cabeça para baixo.

 

A questão do judaísmo e o então recém-fundado Estado de Israel visto como o lar “obrigatório” dos judeus cria conflitos familiares, que voltam a separar a família que acabara de se reunir nos Estados Unidos.  A religiosidade também se destaca na criação do arquiteto para uma capela em que uma cruz se forma, a partir dos reflexos do sol no teto da obra.  Judaísmo e cristianismo perpassam a vida e o trabalho do arquiteto, mesmo ele não sendo uma pessoa religiosa.

 


A arquitetura está no foco central de tudo, desde o primeiro trabalho de László na América, ao criar uma formidável biblioteca, de início rejeitada. Trata-se aqui da arquitetura brutalista, de formas geométricas gigantes, ousadas, de concreto bruto e aparente.  Uma estética crua e muito resistente, sobreviveu à própria guerra, conforme comenta o personagem do arquiteto.  É uma espécie de design para a reconstrução sólida da Europa do pós-guerra, de inspiração germânica, que remete ao passado, mas com toques modernistas.  Vem daí o nome do filme. Mas há um brutalismo simbólico fluindo também pelo filme.

 

Outro ponto de destaque é a relação entre o artista criador e seu mecenas, seus patrocinadores.  Essa relação é sempre marcada pelo choque de visões, pelo poder que tanto impulsiona quanto censura ou destrói a criação. As idas e vindas, negociações e concessões e até mesmo humilhações que daí resultam, são a base de um conflito permanente em que os sucessos e fracassos se alternam continuamente.  E os limites, tanto de um lado quanto do outro, são postos à prova.  Pesando mais contra o artista, evidentemente.

 

É, sem dúvida, um trabalho competente, uma história contada de uma forma adequada e envolvente, especialmente na primeira parte, onde o convívio ainda corre bem, apesar dos ruídos.  Na segunda parte, quando os conflitos se projetam, as coisas ameaçam passar um pouco do ponto, aproximando-se dos excessos tão característicos do cinema atual.  No entanto, a eficácia do discurso prevalece. 

 

A estupenda trilha sonora se destaca, assim como uma bela fotografia, dão a “O Brutalista” um salto de qualidade que valoriza ainda mais o excelente elenco, liderado por Adrien Brody, em grande desempenho, o que pode lhe valer o Oscar 2025 de ator.  Além dele, o filme concorre em outras 9 categorias: melhor filme, diretor, ator e atriz coadjuvantes, roteiro original, trilha sonora, fotografia, montagem e design de produção.




sábado, 15 de fevereiro de 2025

PRÊMIO ABRACCINE - MELHORES FILMES 2024

 

Antonio Carlos Egypto

 

 

Associadas e associados da Abraccine, Associação Brasileira de Críticos de Cinema, elegeram seus filmes favoritos do ano nas categorias Melhor Longa Brasileiro, Melhor Curta ou Média Brasileiro e Melhor Longa Estrangeiro. Os vencedores foram definidos em votação realizada entre mais de 180 críticas e críticos de todas as regiões do país.

AINDA ESTOU AQUI, de Walter Salles, venceu na categoria Melhor Longa Brasileiro. Em um empate, os curtas EU FUI ASSISTENTE DO EDUARDO COUTINHO, de Allan Ribeiro, e QUANDO AQUI, de André Novais Oliveira, foram premiados na categoria Melhor Curta ou Média Brasileiro. E a produção francesa ANATOMIA DE UMA QUEDA, de Justine Triet, venceu como Melhor Longa Estrangeiro.

 

A Abraccine também divulgou a lista dos 10 mais votados de cada categoria: os TOP 10.

 

 


TOP 10 -- Longa-metragem brasileiro (em ordem alfabética):

 

“Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles
“Cidade; Campo”, de Juliana Rojas
“O Dia que te Conheci”, de André Novais Oliveira
“Estranho Caminho”, de Guto Parente
“A Filha do Palhaço”, de Pedro Diógenes
“Greice”, de Leonardo Mouramateus
“Malu”, de Pedro Freire
“Motel Destino”, de Karim Aïnouz
“Saudade Fez Morada Aqui Dentro”, de Haroldo Borges
“Sem Coração”, de Nara Normande e Tião

 

TOP 10 -- Curta ou média-metragem brasileiro (em ordem alfabética):

 

“Cavaram uma Cova no meu Coração”, de Ulisses Arthur
“Dona Beatriz Ňzîmba Vita”, de Catapreta
“Eu Fui Assistente do Eduardo Coutinho”, de Allan Ribeiro
“Fenda”, de Lis Paim
“Kabuki”, de Tiago Minamisawa
“A Menina e o Pote”, de Valentina Homem
“Quando Aqui”, de André Novais Oliveira
“Samuel Foi Trabalhar”, de Janderson Felipe e Lucas Litrento
“A Sua Imagem na Minha Caixa de Correio”, de Silvino Mendonça

 “Vollúpya”, de Éri Sarmet e Jocimar Dias Jr.

 



TOP 10 -- Longa-metragem estrangeiro (em ordem alfabética):

 

“Anatomia de uma Queda”, de Justine Triet
“Dias Perfeitos”, de Wim Wenders
“Jurado Nº 2”, de Clint Eastwood
“Pobres Criaturas”, de Yorgos Lanthimos
“O Quarto ao Lado”, de Pedro Almodóvar
“Rivais”, de Luca Guadagnino
“A Substância”, de Coralie Fargeat
“Tudo que Imaginamos como Luz”, de Payal Kapadia
“Vidas Passadas”, de Celine Song
“Zona de Interesse”, de Jonathan Glazer

 

 



 


quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

ANORA e CALLAS

Antonio Carlos Egypto

 

 


ANORA, produção estadunidense, dirigida por Sean Baker, chegou à 48.a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo com a chancela da Palma de Ouro no Festival de Cannes.  Mas a gente se surpreende com essa escolha.

 

A história envolve uma prostituta do Brooklin que vê a chance de mudar de vida ao se casar em Las Vegas com o filho de um oligarca russo, totalmente sem noção, que queima dinheiro nos Estados Unidos em sua temporada por lá, e se comporta como um tresloucado, obcecado pelos prazeres do sexo, recém descobertos.  Claro que seu “casamento” será posto à prova pela família do “noivo”.  E a profissional do sexo, naturalmente, lutará para mantê-lo.

 

  O filme é uma comédia amalucada, em que os excessos estão visíveis: quebradeiras, gritarias, xingamentos, vômitos, destruições.  Há que se reconhecer que a comédia funciona, produz risadas, tem sacadas interessantes aqui e ali, mas, no conjunto, beira o nada.  O que terá acontecido com o Festival de Cannes?  Não tinha nada melhor para premiar?

  

Acrescento agora minha surpresa ao ver que o filme também está bem cotado para melhor filme no Oscar 2025. Não o revi , nem teria interesse, mas começo a me questionar o que foi que eu não vi, ou não notei como mérito  em  “Anora”.

 

Bem, além de reconhecer que como comédia ele funciona, a atriz principal Mikey Madison é mesmo muito boa. Seu desempenho é forte e marcante. Mas o filme é um entretenimento que peca pelo excesso e não tem nada de importante a dizer. E, com certeza , há sim, filmes melhores do que esse na lista dos 10 indicados ao Oscar na categoria principal. A começar, é claro, pelo brasileiro “Ainda Estou Aqui”. Torcidas, à parte. 138 min.



 


 

MARIA CALLAS (Maria), produção internacional que envolve Itália, Alemanha e Estados Unidos, dirigido pelo conceituado diretor chileno Pablo Larraín, é um espetáculo cinematográfico/musical de peso.  Dá o devido e merecido destaque ao canto daquela que foi a maior na ópera em todo o mundo: Maria Callas (1923-1977).  O foco do filme, porém, é o período de decadência, de perda progressiva da voz de Callas, associado a seus problemas de saúde, em grande parte decorrentes do uso abusivo de remédios e, claro, dos excessos da profissão.  O brilhantismo vem dos flash-backs e das gravações.  Angelina Jolie vive muito convincentemente a diva do canto lírico, ao lado de outros colegas do elenco, como Pierfrancesco Favino e Alba Rohrwacher.  Foi o filme de abertura da Mostra 48. Concorre apenas ao Oscar 2025 de melhor fotografia.  123 min.

 

 

 

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

EMILIA PÉREZ

          

 Antonio Carlos Egypto

 



EMILIA PÉREZ.  França, 2024.  Direção: Jacques Audiard.  Elenco: Karla Sofia Gascón, Selena Gomez, Zoe Saldaña, Adriana Paz.  130 min.

 

“Emilia Pérez” é um filme ousado, que causa impacto, que tem uma forma moderna de expressão e que mescla e funde diferentes gêneros cinematográficos, com esmero visual.  Alguns o classificam como comédia musical de suspense e ação.  Tem humor, mas não é uma comédia, a meu ver.  E um thriller  que envolve crime e violência, drama e crítica social, onde cabe um inusitado musical.  Um filme em que todo cambia todo el tempo.  Mudança é o mote da empreitada francesa, dirigida por Jacques Audiard, cuja trama se passa no México, com o filme falado em espanhol.

 

“Emilia Pérez” me parece ser um representante da ideia de modernidade líquida, do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, na sociedade da pós-verdade, em que tudo se dissolve, se liquefaz: o trabalho, a família, o amor e a própria identidade.  E com a marca do medo de não pertencer, de não se encaixar num mundo de violência e terrorismo, que produz angústia e muda velozmente.  Todo cambia.

 

Os personagens mudam, de corpo, de gênero, de identidade, de comportamentos, de valores, de papéis familiares.  Nada permanece sólido.  Consequentemente, as instituições ruem também.  Desafiador, assustador, caótico? Não sei, cada um faça a sua aposta.  Perdemos o controle, isso já faz tempo e tudo, absolutamente tudo, está agora em questionamento.  Um filme que nos traz esse retrato do nosso tempo tem valor, ainda que também tenha problemas.


Uma produção francesa que aborda a guerra do narcotráfico no México, sem ser filmada lá e praticamente sem mexicanos na produção e elenco, está naturalmente sujeita aos tradicionais estereótipos que, nós latinos, conhecemos bem.

 


Por outro lado, valer-se de uma atriz trans como Karla Sofia Gascón para o papel central de Emilia dá força e credibilidade à incrível história que ela vive. Tudo nela se liquefaz, inclusive o modo de viver e de encarar o mundo, não só o gênero ou a identidade.  Com a personagem de Rita, da ótima Zoe Saldaña, passa-se o mesmo, sua capacidade e talento profissional mudam de vetor, de campo, se liquefazem.  A família de Emilia, ex-mulher e filhos, desfaz-se, embaralhando os papéis familiares.  Vira uma família líquida.  E por aí vai.

 

Enfim, é um filme que dá o que falar.  Tem um maravilhoso quarteto feminino: Gascón, Saldaña, Selena Gomez e Adriana Paz, e uma equipe de produção para lá de competente.  Do trabalho do diretor aos criadores das músicas, coreografias e danças bem atraentes, “Emilia Pérez” é  um produto cinematográfico respeitável.

 

Agora, algumas considerações extra-filme.  Ele concorre ao Oscar nas mesmas categorias em que o brasileiro “Ainda Estou Aqui” foi indicado: melhor filme, melhor filme internacional e atriz.  Só que tem ainda mais 10 indicações, alcançando 13 no total. Um evidente exagero.  Sinal de que é o grande favorito do Oscar do ano?  Ou corre o risco de flopar legal? Aí vai muito da campanha, do trabalho de divulgação.  Da briga midiática e das redes sociais que já, ao que parece, causaram danos a Karla Gascón por surpreendentes manifestações preconceituosas, em passado recente.  Logo ela, que representa pela primeira vez uma transexual com chances?

 

As disputas paralelas das redes sociais nada acrescentam ou significam às qualidades ou problemas dos filmes, mesmo que interfiram nas decisões finais dos votantes da Academia.  Não farão de “Emilia Pérez” uma obra-prima, o que ela não é, mas também não transformarão um filme relevante e significativo em algo a ser rechaçado ou ignorado.  Aliás, é muito difícil ignorar um filme como esse.