terça-feira, 21 de junho de 2011

POTICHE – ESPOSA TROFÉU

Antonio Carlos Egypto

POTICHE – ESPOSA TROFÉU (Potiche). França, 2010.. Direção e Roteiro: François Ozon. Com Catherine Deneuve, Gérard Depardieu, Fabrice Luchini, Jerémie Renier. 103 min.

O cinema de François Ozon costuma trazer mistérios, surpresas e reviravoltas na sua narrativa. Vale-se também de elementos inusitados ou fantásticos, quando necessário. Visa, porém, a refletir sobre questões importantes da vida e dos relacionamentos humanos. Faz um trabalho bastante consistente.

“Potiche” é a reafirmação da consistência do cinema de Ozon. É um filme que, por meio de seus bem elaborados personagens, trata da evolução das relações de gênero, focando a mudança e o avanço das mulheres. A história de “Potiche” parte do estereótipo tradicional, o da esposa e mãe, dona de casa submissa, que tem sua vida decidida e manejada pelo marido. Ou, se não é assim, parece ser assim.

As mulheres passarão por grandes mudanças, ao adentrarem firmemente no mundo do trabalho profissional, até alcançar o poder político, instância decisória, coletiva e pública, não mais do terreno privado, doméstico e familiar. Para chegar lá, tiveram que enfrentar muitos e decisivos obstáculos, a começar por sua própria educação e formação, direcionadas para o papel restrito da condução da casa e da família, geralmente excluindo-se o manejo do dinheiro. Para encarar o mercado de trabalho, tiveram de aprender quase tudo de novo, preparar-se para o desafio, muitas vezes mimetizando o modelo masculino de atuação, porque era o que existia, e também para serem aceitas pelos homens no trabalho. Foram estudar muito, trabalhar com afinco, mostrar competência e enfrentar a dupla jornada, já que as tarefas anteriores permaneceram. Com a “ajuda” dos homens, mas ainda sendo responsabilidade delas. A conquista do poder político viria com o tempo, seria inevitável. Mas, ainda hoje, é uma conquista incompleta, restrita a uma parcela pequena do universo feminino.

A história de Suzanne Pujol (Catherine Deneuve) sintetiza na personagem esse processo todo das conquistas femininas, com muita clareza. E se vale dessa grande atriz, que consegue transmitir o que se passa com essa mulher, em cada etapa vivida, tornando o processo inteiramente palpável. Até mesmo didático, eu diria. Dá para estudar as questões de gênero a partir de “Potiche”, tranquilamente.

O que o filme vai mostrando, à medida que evolui? Roberto Pujol (Fabrice Luchini) é dono de uma fábrica de guarda-chuvas, capitalista convicto, que procura reger com pulso firme e, sem concessões, sua indústria e seus empregados. Procura fazer o mesmo em casa. Trata-se de um self-made-man típico? Menos, menos. Na real, ele herdou a fábrica que era do pai de Suzanne. Casar-se com ela foi o grande mérito e negócio do cara. Ainda assim, Suzanne é a tal da esposa troféu, que usufrui de vida confortável, mas não conta para nada. É fácil imaginar que esse marido deve viver estressado e isso acaba trazendo, inevitavelmente, consequências para a saúde. Chega uma hora em que Suzanne tem de entrar em cena e trabalhar na fábrica. É quando tudo começa a mudar.

Reivindicações por melhores salários e condições de trabalho, greve. Não dá para levar a ferro e fogo. É uma ousadia, mas quem sabe um velho amigo político comunista possa ajudar? Oportunidade para Ozon satirizar as práticas políticas e o que pode estar por trás delas.

Tem muito mais: o filho (Jerémie Renier) também vai participar da fábrica, mas seu negócio é arte. Como se coaduna com uma empresa tão tradicional? Será que ela pode incorporar o espírito da era hippie? E a filha careta, como pode entrar na história? Novos conflitos irão surgindo.


Mas quem vai revelando suas camadas, como casca de cebola, é mesmo Suzanne, essa mulher maravilhosa, complexa, esperta, que vai surpreender a todos, nos mais diversos sentidos. Impossível não se apaixonar pelo personagem: Catherine Deneuve está fantástica no papel. Se a juventude já passou, o talento só se lapidou e a beleza permanece. E ainda tem Gérard Depardieu no papel de Maurice Babin, o deputado–prefeito comunista.

O período focalizado é o ano de 1977, depois da grande onda de protestos e mudanças que foram os anos 1960. No entanto, a cenografia optou por mostrar os Pujol num mundo tão arrumado, que remete aos anos 1950. Um retorno ao modelo de vida conservador? Ou não tinham nem notado que o sonho existiu, portanto, não sabem que o sonho acabou? A fábrica de guarda-chuvas também é emblemática, porque estaria vivendo seus derradeiros dias de glória. Em breve, os chineses irão torná-los objetos descartáveis.

É de um mundo que começa a se renovar e a se modificar mais rapidamente que se está falando. A mulher, como propulsora e realizadora de grandes mudanças, terá papel central nesse novo mundo, muito melhor do que o de antes. “Potiche” é um filme que celebra isso com alegria,em tom de comédia.

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