terça-feira, 27 de agosto de 2024

O BASTARDO + OTHELO

Antonio Carlos Egypto

 


O BASTARDO (Bastarden).  Dinamarca, 2023.  Direção: Nikolaj Arcel.  Elenco: Mads Mikkelsen, Simon Bennebjerg, Amanda Collin, Kristine Kujath Thorp, Melina Hagberg.  127 min.

 

O ditado “Fazemos planos e Deus ri” é uma ótima síntese para “O Bastardo”, drama histórico, épico, que representa a Dinamarca na disputa pelo Oscar de filme internacional.  Dirigido por Nikolaj Arcel, com passagens por Hollywood, mas de volta a seu país, roteirizado por ele e por Anders Thomas Jensen, com base no romance de Ida Jessen, nos remete à Dinamarca do século XVIII, mais especificamente, a uma região considerada inóspita e infértil, na Jutlândia. 

 

O filme conta a saga do capitão Ludvig Kahlen, brilhantemente interpretado pelo grande ator Mads Mikkelsen, em busca de colonizar e cultivar uma terra renegada, que pertence ao rei, mas é dominada pelo nobre Federik De Schinkel (Simon Bennebjerg), com quem travará uma verdadeira guerra.

 

Apoiado pelo rei, quando conquista avanços inesperados, e por Ann Barbara (Amanda Collin), e cuidando de uma menina cigana, rejeitada e preconceituosamente tratada como amaldiçoada, Anmai Mus (Melina Hagberg), ele enfrenta todo tipo de problemas e questões que, inevitavelmente, não será capaz de controlar, apesar de sua determinação e capacidade de resistir.

 


A terra prometida ou a terra do rei foram usadas também como título para esse filme, já que é igualmente dela que se trata em toda a trama.

 

Por que, apesar de fazermos grandes planos e sermos capazes de lutar bravamente por eles, Deus ri?  Desejos e ambições são importantes, mas falham, porque a vida é um caos, dolorida, feia e bela, ao mesmo tempo, extraordinária, como se explicita ao longo do filme.  Ou seja, somos impotentes para controlar a vida, ela nos escapa.  Os sucessos podem chegar quando menos se espera e fora de hora.  Os esforços serão recompensados, algumas vezes, mas em momentos decisivos, não.  Há interesses por todos os lados, maldades, violência, intempéries.  As agruras exigem decisões que podem se revelar ingênuas ou equivocadas, em alguns casos.  Perigosas ou inadequadas, em outros.  Felizes, também.

 

Enfim, “O Bastardo” nos leva a um drama histórico, uma aventura épica, plasticamente bonita, que tem tudo a ver com a nossa existência humana, em qualquer canto e em qualquer época.  Um filme que estimula os sentidos e dá o que pensar.  Vale a pena conferir.

 

 


Também está entrando em cartaz nos cinemas o ótimo documentário “Othelo, o Grande”, de Lucas H. Rossi, sobre um dos maiores atores e comediantes do Brasil de todos os tempos: Grande Othelo (1915-1993).  O filme se vale de um vasto material de arquivo para compor a figura artística de Sebastião Bernardes de Souza Prata, que rompeu todas as barreiras do racismo estrutural para vir a ser o nosso ícone do cinema e de outras mídias.

 

O documentário utiliza o recurso de contar a vida e a história de Grande Othelo somente a partir dele mesmo, de suas falas, reflexões, entrevistas e de seu desempenho artístico inesquecível, no cinema, no palco do teatro ou na TV.  O que emerge daí é uma figura pequena em estatura, mas muito grande na vida e na arte.  83 min.




 

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

MOTEL DESTINO

Antonio Carlos Egypto

 


MOTEL DESTINO.  Brasil, 2024.  Direção: Karim Aïnouz.  Elenco: Iago Xavier, Nataly Rocha, Fábio Assunção.  115 min.

 

O diretor Karim Aïnouz, brasileiro, cearense, é um dos nossos mais importantes cineastas, com reconhecimento internacional e uma obra sólida e farta.  Basta citar alguns de seus filmes para evidenciar isso: “Madame Satã”, 2000; “Praia do Futuro, 2016; “A Vida Invisível”, 2019; “Marinheiro das Montanhas”, 2023.  Outro de seus filmes é “O Céu de Suely”, de 2006, realizado inteiramente no Ceará.  Pois, após 16 anos de carreira internacional, Karim volta a filmar no seu Ceará natal “Motel Destino”.  E se diz feliz com isso.

 

Segundo suas palavras: “Depois de tantos anos longe do Brasil, ainda mais tempo longe do Ceará, colocar esse filme no mundo é, para mim, uma felicidade imensa.  Os últimos anos foram muito difíceis, em que sobrevivemos a uma pandemia e a um governo fascita.  ‘Motel Destino’ é uma ode ao desejo como motor da vida”.  Colocar o filme no mundo, como ele diz, não é exagero.  O filme concorreu em Cannes e conta com coprodução da Alemanha, da França e do Reino Unido.

 


O curioso é que a volta à terra natal, embora explore também a beleza praiana e os espaços abertos, concentra-se num espaço fechado: o do motel de beira de estrada do litoral cearense.  Aqui se desenvolvem os jogos perigosos de desejo, poder e violência, que incluem o casal de proprietários/administradores do local.  Ele, Elias (Fábio Assunção), ela, Dyana (Nataly Rocha).  Nesse universo fechado eles vivem um casamento tóxico, em que Dyana está presa numa situação abusiva.


Tudo começa a mudar quando um jovem da periferia, perseguido pela polícia, aparece e se esconde, trabalhando por lá.  Heraldo (Iago Xavier), como uma espécie de sedutor/desagregador, similar ao de “Teorema”, de Pier Paolo Pasolini.  E toda uma trama policial e de suspense se estabelece.  O filme é, na realidade, um thriller erótico. Se as cenas eróticas se sobressaem, o confinamento no motel nos remete ao lockdown dos tempos recentes da pandemia de Covid19. 

 


A concentração das ações no espaço fechado do motel potencializa o drama e as reações dos personagens da trama.  É um filme que tem ritmo, ação, e que flui muito bem nesse contexto claustrofóbico e de prazer.  O que é um grande mérito do diretor e também do elenco.  A concentração do espaço parece tê-los ajudado a se aprofundar em seus personagens e no convívio entre eles. 

 

Destaque para o jovem cearense Iago Xavier, que atua como veterano, com muita força em cena.  Do mesmo modo, a atriz, cearense também, Nataly Rocha tem grande presença e força dramática na narrativa.  Quem aparentemente encontraria mais dificuldade nessa história cearense seria Fábio Assunção, ator muito conhecido no Sudeste. Ele se complicou mesmo com algumas expressões do linguajar local, segundo seu próprio depoimento, mas está perfeitamente integrado em seu papel e no relacionamento com seus parceiros de cena, também com ótima atuação.

 

As vantagens de uma filmagem restrita a um local assim determinado são a otimização do tempo, a redução do custo e a abertura de muitas possibilidades de situações.  Um filme coral num motel pode ser uma boa ideia ou, possivelmente, uma ampliação ou continuidade dessa história.  Não estou propondo nenhum Motel Destino 2, até porque não sou entusiasta dessas ondas comerciais de continuação.  Mas nas mãos de Karim Aïnouz, quem sabe, pudesse sair muita coisa boa. Estou-me referindo a isso porque o próprio diretor expressou a satisfação que sentiu e a vontade de, talvez, fazer mais, já que encontrou um caminho muito favorável.  Veremos, então.

 

 

quinta-feira, 15 de agosto de 2024

O ÚLTIMO PUB

Antonio Carlos Egypto

 


O ÚLTIMO PUB (The Old Oak). Reino Unido, 2023.  Direção: Ken Loach.  Elenco: Dave Turner, Ebla Mari, Claire Rodgerson, Col Tait.  113 min.

 

A obra cinematográfica do diretor britânico Ken Loach é de uma consistência e coerência absolutas.  Seu talvez último filme, realizado no ano passado aos 87 anos de idade, é “O Último Pub”.  Baseado em roteiro de Paul Laverty, colaborador de Loach pelos últimos trinta anos, uma vez mais joga luzes na vida dos trabalhadores, dos excluídos, dos que são vítimas dos preconceitos.  Procurando sempre entender as razões econômicas e coletivas dos fatos.  Fazendo da forma mais simples possível um cinema complexo, porque a vida é complexa.  E ele não quer trapacear.  Muito menos a essa altura da sua existência.

 

“O Último Pub” vai a uma pequena cidade, que já foi muito próspera no passado, mas, com o fechamento das minas e das indústrias locais, produziu um êxodo e quem restou amarga uma decadência, falta de emprego e de perspectivas.  

 

Para cidades como essa, são levados os imigrantes, que fogem de condições de vida insuportáveis em seus países.  No presente caso, imigrantes sírios, fugindo da guerra que destruiu suas casas, seu trabalho, suas comidas, sua condição de vida.  Esses imigrantes pouco ou nada têm a oferecer, nem sequer dominam o idioma.  São, portanto, rejeitados, discriminados.

 

Ocorre que a população local tende a vê-los como os responsáveis pela sua decadência, esquecendo-se de todo o processo histórico-econômico que esvaziou essas cidades.  O estrangeiro é o culpado.  É simples.  Mas falso, muito falso.

 

É da vida dessas pessoas, as locais e os imigrantes, em convívio e conflito, que se alimenta a história desenvolvida pelo filme.

 


O dono do último pub, que resiste na cidade, no entanto, é capaz de se aproximar e quer ajudar esses sofridos sírios.  E se lembrando de um aforismo materno de que o fundamental é comer junto para viver bem, organiza refeições coletivas, reunindo os recursos dele e de todos, para que todos possam comer e existir de uma forma melhor.  Só que essa solidariedade à base da comida incomoda outros, que não aceitam que o pub tenha esse papel e quer os imigrantes longe dali.  Passando fome, não importa.

 

Ao mostrar todo esse processo e relacionamento, Ken Loach reafirma seu humanismo e sua crença na união dos trabalhadores e de todos que se sentem excluídos.  Mas, ao mesmo tempo, parece um pouco desanimado quanto ao êxito dessas lutas na atualidade. 

 

O momento mundial não é mesmo muito animador, com tanta opressão e tantas guerras.  Com o declínio do Estado de Bem-Estar Social na Europa, isso agudizou todo o problema dos imigrantes, hoje uma grande chaga não só no Reino Unido, mas na Europa toda e por aqui também, em escala menor.

 

Mais uma vez, o cineasta nos dá um belo filme político, dentro de uma narrativa dramática muito bem estruturada e trabalhando também com atores não profissionais, sírios que vivem ou viveram o drama que estão representando.  Algo que só solidifica e adensa a sinceridade e a verdade dos fatos.  Cinema da melhor qualidade. Se for mesmo o último filme dele, será uma pena.  O trabalho de Loach no Reino Unido tem uma grandeza que deixará uma lacuna, fará muita falta.

 

Quem não conhece a obra cinematográfica de Ken Loach e quiser ler minhas críticas a muitos dos filmes que ele fez, aqui no cinema com recheio, basta escrever o nome dele no campo de pesquisa, no formato web do blog, e terá muita coisa para ler.  Entre eles, os ótimos e mais recentes “Você Não Estava Aqui”, de 2019, e “Eu, Daniel Blake”, de 2016.  É uma obra maravilhosa, de um grande mestre do cinema.




 

terça-feira, 13 de agosto de 2024

O DIABO NA RUA NO MEIO DO REDEMUNHO

Antonio Carlos Egypto

 

 



O DIABO NA RUA NO MEIO DO REDEMUNHO.  Brasil, 2023.  Direção e roteiro: Bia Lessa.  Elenco: Caio Blat, Luiza Lemmertz, Luísa Arraes, Leonardo Miggiorin, Clara Lessa, José Maria Rodrigues.  121 min.

 

“O Diabo na Rua no Meio do Redemunho”, adotando esse título, o filme já mostra a que veio: produzir uma imersão na linguagem e no universo de Guimarães Rosa, a partir do seu Grande Sertão Veredas.

 

Uma vez mais, essa obra-prima da literatura brasileira é encarada pelo cinema, por meio do trabalho de Bia Lessa.  Trabalho que se iniciou no teatro, com ela mesma dirigindo esse elenco que está no filme.  E Caio Blat encarna novamente o jagunço Riobaldo, como fez na peça e no filme de Guel Arraes “Grande Sertão”, já comentado aqui no cinema com recheio.

 

A versão cinematográfica de Bia Lessa vale-se do texto de Guimarães Rosa, do seu universo original, destacando toda a dimensão que a profundidade da obra contém, fazendo-nos mergulhar naquela linguagem tão própria e marcante do sertão mineiro que ele recria. 

 

Ela o faz com grande inventividade, como se estivesse no palco, mas num imenso e vazio palco cinza, que será preenchido pelos atores e atrizes em atuações capazes de criar tanto a guerra quanto os pássaros, tanto a vida e o amor quanto a morte.  E contando com adereços cênicos encenar uma batalha de dois grupos em confronto, um rio ou um campo de morte.

 


É teatro da mais alta estirpe, muito bem captado pela técnica cinematográfica.  Bem distante do teatro filmado que, via de regra, resulta em produtos tediosos.  Mas é assumidamente teatro.  Isso nos mostra quanto uma concepção cênica pode se reinventar para se expressar por diferentes meios e linguagens.

 

A narrativa de Riobaldo frente a Deus e ao diabo, confundindo-se no amor a Diadorim e no sentido mutante do bem e do mal, ganha uma força imensa nessa adaptação ao cinema.  Uma força que se multiplica com a música intensa e marcante de Egberto Gismonti.

 

O filme é todo intensidade, emoção e reflexão.  Sua linguagem nos provoca pelas palavras e pelas imagens o tempo todo, do começo ao fim.  Mas é um desafio que nos engrandece, nos modifica para melhor, se nos dispusermos a entrar nesse universo fascinante de Guimarães Rosa, que Bia Lessa explora de forma tão criativa e competente.

 

Após ter sido lançado em mostras e festivais nacionais e internacionais, entra no circuito cinematográfico a partir de São Paulo, agora em 15 de agosto de 2024, e vai em seguida receber lançamentos no Rio de Janeiro, Belo Horizonte, São Luís, Salvador, Fortaleza e Porto Alegre, com exposições, debates e oficinas, com a participação da diretora e do elenco, em diferentes eventos pelo país.



sábado, 3 de agosto de 2024

CARTAS OBSCENAS E O MAL

Antonio Carlos Egypto

 


PEQUENAS CARTAS OBSCENAS (Wicked Little Letters).  Reino Unido, 2023.  Direção: Thea Sharrock.  Elenco: Olivia Colman, Jessie Buckley, Anjana Vasan, Timothy Spall.  101 min.

 

“Pequenas Cartas Obscenas” é uma comédia bem característica do humor inglês.  Focaliza uma pequena localidade litorânea nos anos 1920. Uma sociedade tradicional, conservadora, dominada pela visão religiosa do mundo. Ainda assim, há espaço para uma jovem mulher de hábitos mais livres e um linguajar chulo, que inclui palavrões no seu dia-a-dia.  Algo que incomoda a comunidade e que é mal tolerado.  Esse é o papel da jovem e talentosa atriz Jessie Buckley, a personagem Rose.  Já Olivia Colman, excelente e talentosa atriz já experiente, faz o papel central da trama, o de Edith.  Edith recebe cartas obscenas e injuriosas, curtas e incômodas, que abalam a ela e a seus pais.  Eles reclamam na polícia local e estão certos de que tal coisa se deve a Rose.  Mas a policial local Gladys, vivida pela jovem e muito boa atriz Anjana Vasan, não está convencida disso e resolve investigar, mesmo contrariando a orientação de seus superiores, homens.  O mistério será desvendado.  A história, inspirada em fatos reais, é tão estranha que parece uma ficção exagerada.  Reflete, no entanto, o que o ser humano que não está em paz consigo mesmo é capaz de fazer.  Além do belo elenco, que tem também o conhecido e notável ator Timothy Spall, o clima e os diálogos do filme valem a pena. É uma produção bem cuidada, clássica, sem inovações formais.  Acaba sendo um bom entretenimento, que respeita a inteligência do público.

 


O MAL NÃO EXISTE (Aku Wa Sonzai Shinai) é o novo filme de Ryusuke Hamaguchi, do Japão, que esteve na # 47 Mostra. Quem viu “Drive My Car”, um filme espetacular, e também “Roda do Destino”, sabe que se trata de um talento indiscutível de cineasta.  Daí ser imperativo conhecer seu novo filme. Só que “O Mal Não Existe” nos prega uma grande peça.  O filme é hermético, no sentido de incompreensível.  Não está nas imagens, nem nas falas, nem no inexistente nexo causal entre as sequências, o significado da obra. Cabe ao espectador desvendar a esfinge.  Enquanto isso, assiste-se a uma filmagem bonita, com belas locações, bons atores e tudo o mais. E vê-se muita maldade, ou intenções escusas, num filme que se chama “O Mal Não Existe” .  Como assim?  É só uma ironia ou ele seria uma representação, uma performance teatral? Ou ele está lá e a gente faz de conta que não vê? Poderíamos até fazer uma pesquisa sobre o que cada um achou que era, interpretou, complementou, inventou.  Quando algo não está claramente dado, a tendência é preenchermos as faltas com a nossa própria visão do mundo e das coisas.  Ou simplesmente abandonar o desafio e rejeitar o filme.  O problema é que ele é muito bem feito e está muito longe de ser uma bobagem qualquer.  106 minutos.