Antonio Carlos Egypto
O
HOMEM CORDIAL. Brasil, 2019. Direção: Iberê Carvalho. Elenco: Paulo Miklos, Dandara de Morais,
Thaíde, Felipe Kenji, Thalles Cabral, Theo Werneck. 82 min.
Uma característica
constante de narrativa de “O Homem Cordial”, de Iberê Camargo (“O Último Drive-
In”, 2015), é a fragmentação, a incompletude, os aspectos misteriosos que estão
presentes nas situações. Como se
dissesse: não sabemos bem o que está acontecendo e por que está acontecendo,
mas experimente ir por aqui, que alguma coisa se esclarecerá. Mas, mesmo ao final do filme, não vai ficar
tudo compreensível, não.
Na
verdade, a realidade, sobretudo a social, é apreendida assim. Por elementos soltos, notícias que aparecem,
julgamentos peremptórios a partir das redes sociais, gabinetes do ódio,
cancelamentos, efeitos manada. Que
produzem injustiças brutais, destruição de biografias de um modo inaceitável,
para um povo civilizado. A barbárie
entrando pelas frestas e ocupando a cena.
“O Homem Cordial” se nutre de questões como essas, que refletem o
momento que se vivia no Brasil e que já, felizmente, está sendo superado. Mas não está fácil reencontrar o que seria o
sentido comum da cordialidade, ou seja, a amabilidade, a leveza e a gentileza,
tão necessárias. Todavia, o filme remete
mais ao conceito de cordial de Sérgio Buarque de Holanda, que significa
passional, do coração, que age pelo afeto.
E o afeto escamoteia, mascara, o conflito.
A
verdade é que Aurélio, vocalista e líder da banda de rock fictícia Instinto
Radical, vivido em belo desempenho de Paulo Miklos (já que tem bastante a ver
com a sua própria vida artística), é uma mistura de passionalidade e
amabilidade, amalgamando os dois sentidos que se pode dar à palavra cordial.
Aurélio é o protagonista de uma trama em que se sabe que um policial morreu (acidentalmente?). Aurélio é acompanhado o tempo todo pela câmera, que nunca se desliga dele. Com isso, acompanhamos o eventual que se liga ao trágico, o julgamento, o linchamento e a tentativa genuína de ajudar, em relação ao mesmo personagem.
Ele é
um jovem branco, de classe média/média alta, que tem todas as condições de se
expressar livremente, num período pós-ditadura que, no entanto, esbarra na
barbárie saindo do armário, nostálgica, na polícia que garante o privilégio da
branquitude, mas é implacável diante da negritude e da pobreza. É aí que o garoto negro, que sumiu na
confusão em que estava envolvido o roqueiro, ganha força e o filme busca o
indispensável combate ao racismo estrutural.
É um
filme que lança muitas questões, reflete com vigor a sociedade brasileira, seus
caminhos, descaminhos e perplexidades, mas que não se peja em também se
apresentar confuso, como todos nós.
Olhando pelas frestas para tentar ver o todo. E sem conseguir,
naturalmente.
Em
tempos de mudança, num momento pós-traumático, livrando-se de um golpe e da
perspectiva de um fascismo rasteiro e incompetente, dá vontade de olhar para a
frente e esquecer esse passado recente.
Mas é bom não minimizar o perigo, já que as chamadas elites, ainda
nutridas de espírito escravista, parece que arriscam de tudo para salvar seus
privilégios. Como diria Mino Carta,
dialogando com seus botões, casa grande e senzala continuam por aí,
incólumes. “O Homem Cordial” reafirma
isso no cinema, embora menos convicto do que o texto jornalístico, com sua
modernidade em fragmentos.
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