quarta-feira, 10 de maio de 2023

O HOMEM CORDIAL

Antonio Carlos Egypto

 

 



O HOMEM CORDIAL.  Brasil, 2019.  Direção: Iberê Carvalho.  Elenco: Paulo Miklos, Dandara de Morais, Thaíde, Felipe Kenji, Thalles Cabral, Theo Werneck.  82 min.

 

Uma característica constante de narrativa de “O Homem Cordial”, de Iberê Camargo (“O Último Drive- In”, 2015), é a fragmentação, a incompletude, os aspectos misteriosos que estão presentes nas situações.  Como se dissesse: não sabemos bem o que está acontecendo e por que está acontecendo, mas experimente ir por aqui, que alguma coisa se esclarecerá.  Mas, mesmo ao final do filme, não vai ficar tudo compreensível, não.

 

Na verdade, a realidade, sobretudo a social, é apreendida assim.  Por elementos soltos, notícias que aparecem, julgamentos peremptórios a partir das redes sociais, gabinetes do ódio, cancelamentos, efeitos manada.  Que produzem injustiças brutais, destruição de biografias de um modo inaceitável, para um povo civilizado.  A barbárie entrando pelas frestas e ocupando a cena.  “O Homem Cordial” se nutre de questões como essas, que refletem o momento que se vivia no Brasil e que já, felizmente, está sendo superado.  Mas não está fácil reencontrar o que seria o sentido comum da cordialidade, ou seja, a amabilidade, a leveza e a gentileza, tão necessárias.  Todavia, o filme remete mais ao conceito de cordial de Sérgio Buarque de Holanda, que significa passional, do coração, que age pelo afeto.  E o afeto escamoteia, mascara, o conflito.

 

A verdade é que Aurélio, vocalista e líder da banda de rock fictícia Instinto Radical, vivido em belo desempenho de Paulo Miklos (já que tem bastante a ver com a sua própria vida artística), é uma mistura de passionalidade e amabilidade, amalgamando os dois sentidos que se pode dar à palavra cordial.

 




Aurélio é o protagonista de uma trama em que se sabe que um policial morreu (acidentalmente?).  Aurélio é acompanhado o tempo todo pela câmera, que nunca se desliga dele.  Com isso, acompanhamos o eventual que se liga ao trágico, o julgamento, o linchamento e a tentativa genuína de ajudar, em relação ao mesmo personagem.

 

Ele é um jovem branco, de classe média/média alta, que tem todas as condições de se expressar livremente, num período pós-ditadura que, no entanto, esbarra na barbárie saindo do armário, nostálgica, na polícia que garante o privilégio da branquitude, mas é implacável diante da negritude e da pobreza.  É aí que o garoto negro, que sumiu na confusão em que estava envolvido o roqueiro, ganha força e o filme busca o indispensável combate ao racismo estrutural.

 

É um filme que lança muitas questões, reflete com vigor a sociedade brasileira, seus caminhos, descaminhos e perplexidades, mas que não se peja em também se apresentar confuso, como todos nós.  Olhando pelas frestas para tentar ver o todo. E sem conseguir, naturalmente.

 

Em tempos de mudança, num momento pós-traumático, livrando-se de um golpe e da perspectiva de um fascismo rasteiro e incompetente, dá vontade de olhar para a frente e esquecer esse passado recente.  Mas é bom não minimizar o perigo, já que as chamadas elites, ainda nutridas de espírito escravista, parece que arriscam de tudo para salvar seus privilégios.  Como diria Mino Carta, dialogando com seus botões, casa grande e senzala continuam por aí, incólumes.  “O Homem Cordial” reafirma isso no cinema, embora menos convicto do que o texto jornalístico, com sua modernidade em fragmentos.




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