sexta-feira, 23 de setembro de 2022

O PERDÃO

    Antonio Carlos Egypto

 

 



O PERDÃO (Ballade of a White Cow).  Irã, 2020.  Direção: Maryam Moghadam e Behtash Sanaeeha.  Elenco: Maryam Moghadam, Alireza Sani Far, Pouria Rahimi Sam, Lili Farhadpour.  105 min.

 

 Moisés disse ao seu povo:

Allah ordena que se mate uma vaca.

Ao que todos responderam: Você zomba de nós? 

Alcorão  (A sura da vaca)

 

Daí vem o estranho título do filme iraniano, Ballade of a White Cow, aqui chamado de “O Perdão”, dirigido pelo casal Behtash Sanaeeha e Maryam Moghadam.  Um filme que, embora inspirado de perto na realidade vivida em parte pelos próprios diretores, é uma ficção dramática, que traz para o centro da narrativa a questão da pena capital.

 

A pena de morte, adotada em alguns países, como o Irã, se reveste de um sentido fatal e irreversível diante do erro.  Da possibilidade de sentenciar um inocente à perda da própria vida.  Já não importará quando, depois da execução, houver o esclarecimento do caso, incluindo o reconhecimento de culpa de outra pessoa por um assassinato, por exemplo.  Algumas pessoas atuaram como juízes, votando pela condenação máxima, em função de possíveis provas e da convicção que se estabeleceu no processo.  É ainda pior nos casos em que não há um processo com as garantias amplas à defesa e ao contraditório.  Por perseguição política, como em várias situações veio a acontecer.

 

Um juiz que se vê na situação de ter contribuído para a morte de um inocente, como se sente?  Poderia fazer algo para reparar tal conduta?  Há reparação possível para a morte de alguém, a partir de uma injustiça, mesmo que realizada sem más intenções ou premeditação?  Há reparação possível diante da morte?  E o que pode dar a um grupo de pessoas o direito de decidir sobre a interrupção da vida de alguém?  Em nome de quê?

 

No caso de uma sociedade guiada pelo autoritarismo religioso, a redução da dissonância pode se dar com a crença de que, se assim aconteceu, foi pela vontade de Deus, que está acima da compreensão dos seres humanos. O que, evidentemente, não soluciona a questão, nem aplaca a consciência de fato.

 





Ocorre que, para além da eliminação de alguém do mundo dos vivos, ficam as situações dos familiares e amigos que aqui permaneceram.  Em particular, no caso abordado no filme, como o condenado era um homem casado e com uma filha com deficiência auditiva, sobra muito para a mulher.  Claro, em primeiro lugar tentando lutar por justiça e procurando sobreviver com dignidade, apesar de tudo.  Mas se ela encontrar apoio de algum homem nessa situação poderá ser condenada pela vizinhança, que representa um meio de controle social muito eficaz, em nome da sociedade.  E mais, coisas práticas podem agravar o quadro, quando a mulher pode ser posta sumariamente na rua, desalojada do local de moradia que alugava, por ter recebido em sua casa um homem que não conhecia e que não é seu parente.  O moralismo rígido complica ainda mais as já suficientemente grandes dificuldades de uma mulher tornada viúva por uma decisão do Estado.

 

Isso é o que se encontra no filme iraniano “O Perdão”, que corajosamente põe em questão a legislação que contempla a pena de morte e a situação da mulher na sociedade, extremamente agravada em casos como esse.  Chama a atenção para o fato de que, se há pena de morte, essa decisão é tomada por pessoas que estabelecem o veredito e que outras pessoas terão a obrigação legal de executar.  O que acontece a essas pessoas, como manter a saúde mental e física, diante de um erro fatal?  Seria preciso muito cinismo para continuar achando que tudo segue bem.  E não viver um turbilhão dentro de si.

 

Por tudo isso que escrevi, dá para ver que é importante assistir a filmes como “O Perdão”, porque nos fazem pensar em coisas muito importantes.  E aplaudir pelo êxito de conseguir realizar uma produção que, como todos os filmes do país, parte de uma autorização inicial de uma comissão de censura, que tem de aprovar o roteiro para obter permissão para filmar.  E que está sujeita a proibição posterior de exibição no país, se o resultado não for do agrado da censura oficial.

 

Que o cinema iraniano siga sendo tão fértil e tão presente no mundo, apesar de tudo o que já aconteceu com seus cineastas, da prisão ao exílio de tantos, chega a ser um milagre.  A verdade é que a arte se alimenta da própria tragédia dos autoritarismos para exercer a resistência em nome de seu povo.  E é capaz de colocar em dúvida certas certezas e antigos dogmas, mesmo à custa de muito esforço e sacrifício.  Rompendo barreiras.

 

 

 

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