Antonio Carlos Egypto
O PERDÃO (Ballade of a White Cow).
Irã, 2020. Direção: Maryam
Moghadam e Behtash Sanaeeha. Elenco:
Maryam Moghadam, Alireza Sani Far, Pouria Rahimi Sam, Lili Farhadpour. 105 min.
Moisés
disse ao seu povo:
Allah ordena que se mate uma vaca.
Ao que todos responderam: Você zomba de
nós?
Alcorão
(A sura da vaca)
Daí vem o estranho título do filme
iraniano, Ballade of a White Cow,
aqui chamado de “O Perdão”, dirigido pelo casal Behtash Sanaeeha e Maryam
Moghadam. Um filme que, embora inspirado
de perto na realidade vivida em parte pelos próprios diretores, é uma ficção
dramática, que traz para o centro da narrativa a questão da pena capital.
A pena de morte, adotada em alguns
países, como o Irã, se reveste de um sentido fatal e irreversível diante do
erro. Da possibilidade de sentenciar um
inocente à perda da própria vida. Já não
importará quando, depois da execução, houver o esclarecimento do caso,
incluindo o reconhecimento de culpa de outra pessoa por um assassinato, por
exemplo. Algumas pessoas atuaram como
juízes, votando pela condenação máxima, em função de possíveis provas e da
convicção que se estabeleceu no processo.
É ainda pior nos casos em que não há um processo com as garantias amplas
à defesa e ao contraditório. Por
perseguição política, como em várias situações veio a acontecer.
Um juiz que se vê na situação de ter
contribuído para a morte de um inocente, como se sente? Poderia fazer algo para reparar tal
conduta? Há reparação possível para a
morte de alguém, a partir de uma injustiça, mesmo que realizada sem más
intenções ou premeditação? Há reparação
possível diante da morte? E o que pode
dar a um grupo de pessoas o direito de decidir sobre a interrupção da vida de
alguém? Em nome de quê?
No caso de uma sociedade guiada pelo
autoritarismo religioso, a redução da dissonância pode se dar com a crença de
que, se assim aconteceu, foi pela vontade de Deus, que está acima da
compreensão dos seres humanos. O que, evidentemente, não soluciona a questão,
nem aplaca a consciência de fato.
Ocorre que, para além da eliminação de
alguém do mundo dos vivos, ficam as situações dos familiares e amigos que aqui
permaneceram. Em particular, no caso
abordado no filme, como o condenado era um homem casado e com uma filha com
deficiência auditiva, sobra muito para a mulher. Claro, em primeiro lugar tentando lutar por
justiça e procurando sobreviver com dignidade, apesar de tudo. Mas se ela encontrar apoio de algum homem
nessa situação poderá ser condenada pela vizinhança, que representa um meio de
controle social muito eficaz, em nome da sociedade. E mais, coisas práticas podem agravar o
quadro, quando a mulher pode ser posta sumariamente na rua, desalojada do local
de moradia que alugava, por ter recebido em sua casa um homem que não conhecia
e que não é seu parente. O moralismo
rígido complica ainda mais as já suficientemente grandes dificuldades de uma
mulher tornada viúva por uma decisão do Estado.
Isso é o que se encontra no filme
iraniano “O Perdão”, que corajosamente põe em questão a legislação que
contempla a pena de morte e a situação da mulher na sociedade, extremamente
agravada em casos como esse. Chama a
atenção para o fato de que, se há pena de morte, essa decisão é tomada por
pessoas que estabelecem o veredito e que outras pessoas terão a obrigação legal
de executar. O que acontece a essas
pessoas, como manter a saúde mental e física, diante de um erro fatal? Seria preciso muito cinismo para continuar
achando que tudo segue bem. E não viver
um turbilhão dentro de si.
Por tudo isso que escrevi, dá para ver
que é importante assistir a filmes como “O Perdão”, porque nos fazem pensar em
coisas muito importantes. E aplaudir
pelo êxito de conseguir realizar uma produção que, como todos os filmes do
país, parte de uma autorização inicial de uma comissão de censura, que tem de
aprovar o roteiro para obter permissão para filmar. E que está sujeita a proibição posterior de
exibição no país, se o resultado não for do agrado da censura oficial.
Que o cinema iraniano siga sendo tão
fértil e tão presente no mundo, apesar de tudo o que já aconteceu com seus
cineastas, da prisão ao exílio de tantos, chega a ser um milagre. A verdade é que a arte se alimenta da própria
tragédia dos autoritarismos para exercer a resistência em nome de seu
povo. E é capaz de colocar em dúvida
certas certezas e antigos dogmas, mesmo à custa de muito esforço e sacrifício. Rompendo barreiras.
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