Antonio Carlos Egypto
O ACONTECIMENTO (L’événement). França,
2021. Direção: Audrey Diwan. Elenco: Anamaria Vartolomei, Luana Bajrani,
Louise Orry-Diquero, Kacey Mottet Klein, Sandrine Bonaire. 100 min,
A questão do aborto envolve muita
polêmica e quando se discute em tese, a discussão se torna abstrata, deixando
de levar em conta os muitos sofrimentos, a angústia, o desespero que podem
estar presentes na decisão de interromper voluntariamente uma gravidez que não
foi planejada.
Quando, por força de lei, esse
procedimento é considerado proibido, a alternativa para a mulher se resume à
busca de soluções arriscadas por conta própria, à prática clandestina perigosa,
tanto para a saúde quanto pela possibilidade de levar à prisão a grávida e quem
a atendeu na ilegalidade.
O filme “O Acontecimento”, de Audrey
Diwan, focaliza de forma absolutamente realista, a experiência concreta do
aborto numa jovem prestes a entrar na universidade que, numa única relação
sexual, fortuita, engravidou e se viu sozinha para enfrentar a situação. A decisão de abortar seria um imperativo para
ela, dadas as suas circunstâncias de vida, com moradia num centro estudantil,
tendo que se dedicar muito aos estudos.
Sua família, que poderia ser considerada de classe média baixa, não
disporia de recursos para ajudá-la e, se informada, provavelmente não aceitaria
a situação.
O filme é baseado no livro de Annie
Ernaux, que relata sua própria experiência, quando engravidou e praticou o
aborto, em 1963, numa época em que a França ainda não legalizava esse direito
às mulheres.
“O Acontecimento” apresenta, passo a
passo, a dinâmica desse processo angustiante e solitário, como uma experiência
física, carnal. O que exige da atriz
Anamaria Vartolomei, como protagonista no papel de Anne, uma exposição e
dedicação extremas. E ela se sai muito
bem.
A narrativa, esturricada de realismo,
incomoda, mas também sensibiliza. É
muito fácil se identificar com essa jovem e sua busca labiríntica de uma
solução para um problema para o qual a sociedade dá as costas e ainda
criminaliza.
Se na França a questão, tal como aparece
no filme, é passado, isso não está superado num grande número de países pelo
mundo, incluindo o Brasil. Por aqui, o
aborto legal é restrito à gravidez por estupro, que envolva risco de vida para
a mãe ou em casos de anencefalia do feto.
Mesmo nesses casos, como temos visto no noticiário e nas declarações
públicas de autoridades, a sua prática tem exigido enormes esforços para
acontecer.
Quando “O Acontecimento” nos põe frente
a frente com a realidade nua e crua do aborto clandestino, expõe com clareza
que a questão não se resume à moral, à religião ou às preferências
políticas. É mesmo uma questão de saúde
pública e envolve sofrimento, traumas, sequelas e mortes que podem ser
evitadas. “L’événement” dialoga, nesse
sentido, com o belo filme romeno, de Cristian Mungiu, “4 Meses, 3 Semanas e 2
Dias”, de 2007.
Vencedor do Leão de Ouro de Veneza 2021,
“O Acontecimento” é um filme de mulheres na sua concepção, na direção, no
elenco, reflete o ponto de vista feminino sobre o tema. E quem melhor do que elas para tratar desse
assunto, ainda tabu em tantos aspectos, e que merece ser discutido? O cinema traz a possibilidade de conhecê-lo
também por meio das emoções que o envolvem, o que pode nos ajudar a tomar
posições com mais clareza e conhecimento de causa.
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