domingo, 6 de dezembro de 2020

TODOS OS MORTOS

Antonio Carlos Egypto

 



TODOS OS MORTOS.  Brasil, 2019. Direção de Caetano Gotardo e Marco Dutra.  Com Mawusi Tulani, Clarissa Kiste, Carolina Bianchi, Thomás Aquino, Thaia Perez e o menino Agyei Augusto.  120 min.

 

 “Todos os Mortos”, o filme dirigido por Caetano Gotardo e Marco Dutra nos leva à São Paulo do final do século XIX (1899-1900), no período logo após o fim do regime escravista no Brasil, país que foi o último do Ocidente a aboli-lo.  Isso, evidentemente, tem um custo, que pagamos até hoje, na forma de um racismo estrutural, tão odiento quanto negado.  A casa grande e a senzala estão entre nós, atavicamente, mal encobertas por uma suposta democracia racial.

 

Pois bem, o filme focaliza, por meio das mulheres, uma aristocracia que se percebe decadente, com o fim do modelo econômico da escravidão.  Os símbolos da ruína são evidenciados pela família branca dos Soares, por meio de doenças mentais (demência precoce, histeria, hipocondria, loucuras diversas) e desagregação familiar.  As mulheres na cidade, o pai, na fazenda.  Há uma falta de perspectivas e uma tentativa de se agarrar a privilégios que já não estão disponíveis.

 



Enquanto isso, a família negra dos Nascimento, escravizados por muito tempo, tenta juntar os cacos, reconstruir uma história, encontrando um lugar para viver com decência, um modo de sobreviver pelo trabalho livre e reencontrar o pai que está distante, veio para São Paulo e não deu mais notícias. A verdade é que não há lugar para eles na sociedade paulistana.  São excluídos, largados à própria sorte.

 

O canto da sereia vem da casa grande, buscando reavê-los, de alguma forma.  O menino, que nasceu livre, até se encanta com o ambiente e quer ficar muito tempo por lá, sem perceber que sua presença traz de volta a subserviência escravista.

 

Há também o confronto de crenças, cantos, danças, tradicionais, de diferentes origens africanas, discriminadas, ao mesmo tempo que domesticadas, postas a serviço das classes dominantes e do catolicismo que as representa, por meio da freira que pertence à família Soares. O filme abre, lindamente, com uma canção em dialeto africano, entoada por Alaíde Costa, em participação especial.

 



Mergulhar nesse mundo é visitar as origens dos problemas intensos que vivemos hoje, em busca de uma democracia que só será plenamente possível se, finalmente, formos capazes de enfrentar o racismo que produz assassinatos como o de João Alberto, no Carrefour de Porto Alegre, e põe em risco toda a população jovem, preta e parda, que vive majoritariamente na periferia das grandes cidades como São Paulo.

 

“Todos os Mortos”, os fantasmas da escravidão, estão à solta no competente trabalho de Gotardo e Dutra que, apoiados num elenco maravilhoso de atrizes e atores que a gente percebe bem empenhados no projeto, lança luz a uma história, que o próprio filme de época nos remete aos dias de hoje.


(crédito das fotos Hélène Louvart)



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