domingo, 12 de janeiro de 2020

RETRATO DE UMA JOVEM EM CHAMAS


  Antonio Carlos Egypto




RETRATO DE UMA JOVEM EM CHAMAS (Portrait de la Jeune Fille em Feu).  França, 2019.  Direção: Céline Sciamma.  Com Noémi Merlant, Adèle Haenel, Luána Bajrami, Valeria Golino.  121 min.


“Retrato de Uma Jovem em Chamas” é um filme que vem recomendado pela conquista de melhor roteiro e Palma Queer do Festival de Cannes, indicação ao Globo de Ouro de filme estrangeiro e boa recepção do público nos festivais do Rio e Mix Brasil.  Sua diretora, Céline Sciamma, já nos deu, pelo menos, um filme muito inteligente e sensível: “Tomboy”, em 2011.

Este trabalho, que respira feminilidade por todos os poros, mostra-se de uma sutileza, delicadeza e refinamento, que merece atenção.  Além do talento da diretora, um elenco de mulheres sensacional dá força incomum a uma narrativa que envolve oposição, contraste e aproximação, amor.

Adèle Haenel, no papel de Héloise, uma mulher da segunda metade do século XVIII, que sai do convento para um casamento arranjado, sem conhecer o pretendente nem saber nada da vida afetiva, amorosa ou de obrigações matrimoniais.  Um retrato dela deve ser pintado para ser enviado a seu futuro marido, mas uma tentativa com um pintor fracassou. É aí que entra em cena Noémi Merlant, no papel de Marianne, uma pintora firme, decidida e livre, tanto quanto isso era possível na época para as mulheres.

Do contraste entre uma mulher que luta para conquistar um espaço próprio na vida e a que está oprimida nos limites determinados ao feminino na época, estabelece-se um clima, uma tensão sutil.




Do insucesso do pintor anterior deriva a situação de que Marianne deve pintar Héloise sem que ela saiba que é essa sua verdadeira função e sem que ela pose, obviamente.  Essa situação acaba fazendo com que Marianne se valha de olhares furtivos e observações cuidadosas do rosto, das mãos, do corpo e dos movimentos de sua retratada.  Daí para um flerte, uma aproximação afetiva maior e a eclosão do amor é um caminho que Céline Sciamma explora em clima suave e delicado, quase silencioso.  O filme trata muito de arte, mas praticamente não usa música.

A caracterização de época se vale não só das vestimentas múltiplas, pesadas e enfeitadas, sem exageros, mas do ambiente de uma ilha isolada, aonde só se chega de barco, e de um castelo preservado, que nunca chegou a ser habitado, nem restaurado, segundo a diretora.  Essa locação bela e isolada contribui muito para o clima da história.

A questão artística da pintura, que era o meio de produzir retratos, põe em relevo o que se pode captar da figura humana, como reproduzi-la fielmente e o que seria isso.  Ver não é compreender, não é possível enxergar sem interagir, sem captar o que vai pelo psiquismo, por melhor que seja a técnica empregada.  É na relação que se constrói a verdade de cada uma e se dissolvem as diferenças do modo de estar no mundo.  Da troca resulta sempre algo novo, possível ou não de se desenvolver e de subsistir.  A natureza está também em transformação, como as pessoas.  Da terra que sustenta, do ar que dá a respiração para viver.  Do mar, que leva e traz ondas vivas, para onde se pode correr ou morrer e do fogo que queima em desejo.




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