GRAÇAS A DEUS (Grâce à Dieu). França,
2018. Direção: François Ozon. Com Melvil Poupard, Denis Ménochet, Swann
Arland, Josiane Balasko, Bernard Verley.
137 min.
O assunto é explosivo, já foi tratado algumas
vezes pelo cinema, mas está longe de ser solucionado. Trata-se do abuso sexual praticado por padres
na forma de pedofilia, que sempre foi muito encoberto, negado, não admitido,
nem punido. Até que os primeiros casos fossem
denunciados, sempre dezenas de anos depois do ocorrido, e aí a bola de neve
cresceu de forma assustadora. Sob o
comando do papa Francisco, vem sendo, finalmente, encarado de frente. Mas ainda falta muito para que essa chaga do
catolicismo seja curada. Se é que é
possível, dada a vigência do celibato para os sacerdotes, o gigantismo e a
existência milenar da igreja católica, com seus conflitos internos.
Em “Graças a Deus”, uma narrativa ficcional
baseada em fatos reais, ocorridos na cidade de Lyon, na França, o diretor
François Ozon faz uma exposição clara e metódica de como é difícil lidar com
esse assunto. Quanto desgaste produz,
como mexe em estruturas poderosas, envolve e compromete muita gente.
O caso tratado foi o do padre Preynat, que
desde os anos 1980, trabalhando na paróquia, no catecismo, em eventos, viagens
e acampamentos, abusou de centenas de crianças.
Apesar disso ter sido conhecido pela cúpula da igreja de Lyon, e quando
questionado nunca negado pelo próprio abusador, nada foi feito de
relevante. O de sempre: mudança de local
ou função e tudo acaba voltando ao que era e a acontecer novamente.
Um dos principais personagens retratados pelo
filme é um homem hoje casado, com cinco filhos, que se surpreende revendo o seu
abusador atuando com crianças, trinta anos depois do que ele viveu. Apesar do trauma, do tabu que engoliu os
fatos, formando uma cortina de silêncio, resolve agir. A partir de seus movimentos, reabre um caso
por todos aparentemente esquecido e as vítimas começam a aparecer. O cardeal Philippe Barbarin não corresponde
ao que seria de se esperar de um superior que fosse informado de fatos tão
graves, tantos anos depois.
Simplesmente, porque já sabia e deixou seguir. A maioria dos casos já prescreveu, devido ao
tempo, e ele comete o ato falho de dizer que graças a
Deus isso aconteceu. Daí o nome do filme.
Como se caminha da denúncia à igreja para
atingir a justiça comum, fazer a difusão dos fatos pela mídia, organizar um
grupo de apoio e institucionalizá-lo é do que trata o filme, num passo a passo
importante de ser relatado, para que o público possa entender todo o processo e
as enormes dificuldades que são geradas.
Os sentimentos e sofrimentos estão presentes,
assim como a descrição das situações de abuso.
Mas tudo isso é mostrado de forma discreta, ou por meio de sintomas, o
abuso sexual nunca é encenado. Não há a
mais remota intenção de explorar o tema para chocar, fazer sensacionalismo ou
destacar o escândalo sexual. O trabalho
de Ozon em “Graças a Deus” vai ao ponto de forma clara, direta, racional. A abordagem é política, claro, mas sem
proselitismo ou moralismo de nenhuma espécie.
Grande mérito do toque de Ozon, principal cineasta francês da
atualidade. Favorece antes e acima de
tudo a reflexão.
O caso de Lyon é único, mas representativo de
uma realidade que se multiplicou amplamente pelo mundo, colocando em xeque a
igreja e sua omissão, que favoreceu a perpetuação do crime.
Em cada um dos personagens tratados na trama,
vão se desvelando questões relevantes para a existência deles, de seu entorno e
da sociedade, que esquadrinham muito bem o problema. O filme tem mais de duas horas, um pouco
longo para uma temática pesada. Porém,
muito bem conduzido e interpretado por um elenco bastante uniforme nos seus
desempenhos, bem convincentes. Com
destaque, naturalmente, para os três protagonistas principais: Melvil Poupard,
como Alexandre, Denis Ménochet, como François, e Swann Arland, como Emmanuel.
O filme levou o Urso de Prata do Festival de
Berlim, o Grande Prêmio do Júri. Méritos não
faltam a esse novo trabalho de François Ozon, de “Frantz”, 2017, “O Amante
Duplo”, 2016, “Uma Nova Amiga”, 2014, “Dentro da Casa”, 2012, “Potiche – Esposa
Troféu”, 2011 e “O Refúgio”, 2010. É uma
obra de peso. Todos os filmes citados
têm críticas aqui, no Cinema Com Recheio, para quem quiser conferir.
“Graças a Deus” entra em cartaz regularmente
no dia 20 de junho, mas é um dos principais destaques do Festival Varilux de
Cinema Francês, que acontece em mais de 80 cidades brasileiras, de 06 a 19 de
junho de 2019, antecipando o lançamento comercial dos filmes.
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