terça-feira, 4 de junho de 2019

GRAÇAS A DEUS

Antonio Carlos Egypto





GRAÇAS A DEUS (Grâce à Dieu).  França, 2018.  Direção: François Ozon.  Com Melvil Poupard, Denis Ménochet, Swann Arland, Josiane Balasko, Bernard Verley.  137 min.


O assunto é explosivo, já foi tratado algumas vezes pelo cinema, mas está longe de ser solucionado.  Trata-se do abuso sexual praticado por padres na forma de pedofilia, que sempre foi muito encoberto, negado, não admitido, nem punido.  Até que os primeiros casos fossem denunciados, sempre dezenas de anos depois do ocorrido, e aí a bola de neve cresceu de forma assustadora.  Sob o comando do papa Francisco, vem sendo, finalmente, encarado de frente.  Mas ainda falta muito para que essa chaga do catolicismo seja curada.  Se é que é possível, dada a vigência do celibato para os sacerdotes, o gigantismo e a existência milenar da igreja católica, com seus conflitos internos.

Em “Graças a Deus”, uma narrativa ficcional baseada em fatos reais, ocorridos na cidade de Lyon, na França, o diretor François Ozon faz uma exposição clara e metódica de como é difícil lidar com esse assunto.  Quanto desgaste produz, como mexe em estruturas poderosas, envolve e compromete muita gente.

O caso tratado foi o do padre Preynat, que desde os anos 1980, trabalhando na paróquia, no catecismo, em eventos, viagens e acampamentos, abusou de centenas de crianças.  Apesar disso ter sido conhecido pela cúpula da igreja de Lyon, e quando questionado nunca negado pelo próprio abusador, nada foi feito de relevante.  O de sempre: mudança de local ou função e tudo acaba voltando ao que era e a acontecer novamente.




Um dos principais personagens retratados pelo filme é um homem hoje casado, com cinco filhos, que se surpreende revendo o seu abusador atuando com crianças, trinta anos depois do que ele viveu.  Apesar do trauma, do tabu que engoliu os fatos, formando uma cortina de silêncio, resolve agir.  A partir de seus movimentos, reabre um caso por todos aparentemente esquecido e as vítimas começam a aparecer.  O cardeal Philippe Barbarin não corresponde ao que seria de se esperar de um superior que fosse informado de fatos tão graves, tantos anos depois.  Simplesmente, porque já sabia e deixou seguir.  A maioria dos casos já prescreveu, devido ao tempo, e ele comete o ato falho de dizer que  graças a Deus  isso aconteceu.  Daí o nome do filme.

Como se caminha da denúncia à igreja para atingir a justiça comum, fazer a difusão dos fatos pela mídia, organizar um grupo de apoio e institucionalizá-lo é do que trata o filme, num passo a passo importante de ser relatado, para que o público possa entender todo o processo e as enormes dificuldades que são geradas.

Os sentimentos e sofrimentos estão presentes, assim como a descrição das situações de abuso.  Mas tudo isso é mostrado de forma discreta, ou por meio de sintomas, o abuso sexual nunca é encenado.  Não há a mais remota intenção de explorar o tema para chocar, fazer sensacionalismo ou destacar o escândalo sexual.  O trabalho de Ozon em “Graças a Deus” vai ao ponto de forma clara, direta, racional.  A abordagem é política, claro, mas sem proselitismo ou moralismo de nenhuma espécie.  Grande mérito do toque de Ozon, principal cineasta francês da atualidade.  Favorece antes e acima de tudo a reflexão.

O caso de Lyon é único, mas representativo de uma realidade que se multiplicou amplamente pelo mundo, colocando em xeque a igreja e sua omissão, que favoreceu a perpetuação do crime.




Em cada um dos personagens tratados na trama, vão se desvelando questões relevantes para a existência deles, de seu entorno e da sociedade, que esquadrinham muito bem o problema.  O filme tem mais de duas horas, um pouco longo para uma temática pesada.  Porém, muito bem conduzido e interpretado por um elenco bastante uniforme nos seus desempenhos, bem convincentes.  Com destaque, naturalmente, para os três protagonistas principais: Melvil Poupard, como Alexandre, Denis Ménochet, como François, e Swann Arland, como Emmanuel. 

O filme levou o Urso de Prata do Festival de Berlim, o Grande Prêmio do Júri.  Méritos não faltam a esse novo trabalho de François Ozon, de “Frantz”, 2017, “O Amante Duplo”, 2016, “Uma Nova Amiga”, 2014, “Dentro da Casa”, 2012, “Potiche – Esposa Troféu”, 2011 e “O Refúgio”, 2010.  É uma obra de peso.  Todos os filmes citados têm críticas aqui, no Cinema Com Recheio, para quem quiser conferir.

“Graças a Deus” entra em cartaz regularmente no dia 20 de junho, mas é um dos principais destaques do Festival Varilux de Cinema Francês, que acontece em mais de 80 cidades brasileiras, de 06 a 19 de junho de 2019, antecipando o lançamento comercial dos filmes.





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