quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

DE MENINO E DE CORVOS

Antonio Carlos Egypto



QUERIDO MENINO (Beautiful Boy).  Estados Unidos, 2018.  Direção: Felix Van Groeningen.  Com Steve Carell, Timothée Chalamet, Maura Tierney, Amy Ryan.  111 min.




Se há um adjetivo que cabe para o filme “Querido Menino”, dirigido por Felix Van Groeningen, é honesto.  É um trabalho que foca na dependência química de drogas na adolescência, a partir do livro de memórias de um pai, que viveu esse drama, e também do livro do filho, que foi o protagonista da situação. O fato de combinar duas narrativas complementares, a do pai, David Sheff, e a do filho, Nic Sheff, cria algum ruído na comunicação.  No entanto, a combinação das duas visões torna o problema exposto muito autêntico, verdadeiro.

A trajetória do pai, sempre muito presente na vida do filho, que acaba por desconhecê-lo e de não ser mais capaz de ajudá-lo, gerando uma angústia brutal, é algo vivido intensamente pelos familiares do dependente.  No filme, a mãe e os irmãos sofrem igualmente.  Não há quem possa ficar ileso à situação.  Pode contribuir, porém, entender a droga, o prazer que ela traz e a consequente busca permanente por maiores doses, tentando desfrutar de novo daquele prazer inicial.

Entender de que droga se está falando é igualmente importante.  No caso, o que dominava era a metanfetamina, que acabou sendo a responsável pelos maiores estragos na vida do jovem.  Mas ele passou por quase todas as drogas disponíveis, na busca desse prazer.  E depois, para não ter de viver a dor, o desprazer da síndrome de abstinência, na ausência da droga.  É isso que acaba produzindo uma ciranda interminável de consumo de psicoativos, indo de um a outro, dependendo das circunstâncias de vida, das necessidades do momento e da disponibilidade dos produtos.




Percebe-se como tudo isso é misterioso, tanto para o consumidor, quanto para os que o veem de fora.  Como é possível a um pai esclarecido, de ótimo nível educacional e intelectual, desconhecer essa ciranda toda, a ponto de só agir quando a coisa já passou dos limites?  Como é possível que um jovem experimente de tudo, no impulso, sem nunca usar sua inteligência e capacidade de discernimento para tentar algum controle sobre a situação?  Como é difícil ajudar assim, e mais: como é difícil que o dependente admita que precisa de apoio, tanto das pessoas próximas quanto de especialistas.

Todas essas questões “Querido Menino” suscita e, nesse sentido, é um filme que colabora bastante para que se conheça melhor o problema.  O que ajuda, também, é o tom adotado na trama.  Optou-se pela intensidade dramática baixa, apesar da gravidade do assunto. Isso produz reflexão.  Há momentos em que o envolvimento emocional nubla a possibilidade de compreensão.  Dois ótimos atores, Steve Carell, o pai, e Timothée Chalamet, o filho, com seus desempenhos precisos e contidos, trazem para o espectador a verdadeira dimensão do problema.

Sem desespero, escândalo ou apelo melodramático, tudo fica mais claro e a porta de saída parece finalmente se abrir.  Essa é a realidade da maioria dos casos dos que não sucumbiram diante da vida e sobreviveram a esse pesadelo.  É dificílimo e demorado.  Mas é possível.  “Querido Menino” trilha esse caminho mais equilibrado enquanto cinema e faz um trabalho relevante.  E honesto.

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LEMBRO MAIS DOS CORVOS. Brasil, 2018.  Direção: Gustavo Vinagre.  Com Júlia Katharine. Documentário.  82 min.

“Lembro Mais dos Corvos” é um documentário em forma de monólogo, estimulado por perguntas, realizado da forma mais simples possível.  Uma conversa filmada no apartamento de uma pessoa trans.  No caso, a atriz e diretora Júlia Katharine.  Ela vai falando de si, dirigida por Gustavo Vinagre, num roteiro construido pelos dois.  Conta as suas experiências, suas histórias, e como ela preenche suas noites de insônia.  O que resulta daí é um retrato corajoso da vida difícil dos transexuais, dos transgêneros, a partir de uma situação particular.  Que deve ter muito a ver com a de grande parte de seus pares. 




O filme é uma oportunidade de penetrar no mundo íntimo de alguém que se apresenta ao espectador com uma experiência de vida bem diferente da habitual, da esperada.  Sem medo de parecer ridícula, superficial ou esquisita.  Ou melhor, driblando esse medo de modo muito competente, Júlia se expõe e conquista o respeito dos que a assistem.

Na mesma sessão que exibe “Lembro Mais dos Corvos”, de 82 minutos de duração, é exibido o curta de 25 minutos “Tea for Two”.  Realizado por Júlia Katharine, com Gilda Nomacce, a própria Júlia e Amanda Lyra.  Uma ficção concebida e dirigida por uma pessoa trans não deixa de ser uma boa novidade no cinema brasileiro.  Merece ser conferida.



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