segunda-feira, 5 de junho de 2017

FRANTZ


Antonio Carlos Egypto



FRANTZ (Frantz).  França, 2016. Direção e roteiro: François Ozon.  Com Pierre Niney, Paula Beer, Ernst Stötzner, Marie Gruber, Johann von Bülow, Anton von Lucke, Cyrelle Clair.  113 min.



Alemanha, 1919.  As marcas da Primeira Guerra Mundial, com uma mortandade incrível, são trágicas para as famílias europeias.  Anna (Paula Beer), que vive numa pequena cidade alemã, perdeu seu noivo na guerra, na França.  Ela vai levar flores ao seu túmulo, no cemitério local, regularmente.  Até o dia em que se depara com um jovem francês fazendo o mesmo.  O que significa isso?  Quem é ele, o que está fazendo aqui? 

É bom lembrar que as sequelas do conflito com os franceses alimentam um preconceito contra eles e um desejo de vingança.  A Alemanha se sente humilhada pelo Tratado de Versalhes.  A história pesa, mas Adrien (Pierre Niney) está apenas depositando flores na tumba de Frantz (Anton von Lucke), o soldado alemão que se casaria com Anna se sobrevivesse ao conflito mundial.

Esse é o mote inicial do filme de François Ozon, “Frantz”, e daí vai partir uma incrível história que será tão revolvida a ponto de não restar certeza sobre o que aconteceu, como interpretar e relatar os fatos e se se deve, ou não, procurar uma verdade ali.  Mais: se encontrada essa verdade, ela merece ser revelada?  A quem interessaria saber?




Segundo o próprio diretor, o filme é sobre mentiras, embora também envolva culpa e perdão.  Mentiras que fazem bem, podem até curar feridas.  Destruí-las pode ser arrasador, demolidor.  Mas para alimentá-las também é preciso crer em algo, que pode ser ilusório, embora reconfortante.  Quando entra em cena o envolvimento amoroso, o desejo, a paixão, a realidade se nubla e, afinal, o que é o quê?

O filme se chama “Frantz”, o soldado morto, que só aparece em flash-backs, mas o ponto de vista adotado pelo roteiro é o de Anna.  É a partir do que ela sabe, sente, deseja, e de como ela se move, que a trama acontece e se desenvolve, com nuances de todos os tipos e surpresas que vão emergindo das situações narradas.  Ozon deixa que a nossa imaginação corra solta e tente interpretar o que vê.  As coisas podem ser bem distintas do que a gente pensou.  Ou não.

O diretor optou por um preto e branco luminoso, que dá à trama um realismo que combina perfeitamente com o momento narrado.  Afinal, que imagens temos da Primeira Guerra que não sejam em preto e branco?  É como se caminhássemos naquela pequena cidade e convivêssemos com seus habitantes, em suas roupas austeras, suas casas, bares e cemitério.  Mas há algumas cenas coloridas, que mostram um pouco de felicidade, dão um respiro à situação, fazendo um contraponto dramático mais leve à narrativa.  Podem estar revelando um passado mais afetivo ou, quem sabe, um desejo, fantasia ou imaginação, apenas?




A origem dessa história está numa peça teatral escrita logo após a Primeira Guerra Mundial, por Maurice Rostand, que foi adaptada para o cinema, em Hollywood, em 1931, pelo grande diretor, de origem germânica, Ernst Lubitsch (1892-1947).  Sim, ele mesmo, o grande diretor de comédias sofisticadas que marcaram época.  Só que esse filme dele, “Não Matarás” (Broken Lullaby) é seu único drama e não fez qualquer sucesso, acabou esquecido.  Ozon ampliou a trama de Lubitsch e propôs novos dilemas à protagonista.  A ação se passa antes na Alemanha e o filme é falado em alemão, depois vai à França e passa a ser falado em francês.  Na verdade, as duas línguas se alternam, porque há sempre em cena elementos das duas nações em contato.

O diretor fez uma adaptação livre do filme e conseguiu um resultado nada menos do que brilhante.  Tomou uma história de época e fez um filme que é a cara do século XXI,  com seus questionamentos aos fatos, às interpretações, às narrativas que vingam ou não, ao papel que a mentira pode desempenhar na vida, à própria noção de verdade.

O desempenho do elenco é outro ponto alto do filme.  Atores e atrizes trabalham fora dos clichês, com ambiguidade, sombras e sutilezas nos personagens, o que põe de pé uma história que caminha na corda bamba da realidade e dos sentimentos.  A receita poderia facilmente desandar se algum desempenho entregasse o que está oculto.  Isso não acontece.




François Ozon, na minha opinião, é o mais importante cineasta francês da atualidade.  Seu trabalho tem uma consistência e uma criatividade marcantes e geralmente seus filmes têm muito a dizer, além da beleza visual, curiosamente muito associada às cores, até mesmo nessa produção quase toda em preto e branco.  Vamos apenas lembrar de seus últimos filmes, são todos muito bons: “Uma Nova Amiga”, de 2014, “Jovem e Bela”, de 2013, “Dentro da Casa”, de 2012, “Potiche – Esposa Troféu”, de 2010, “O Refúgio”, de 2009, “Ricky”, de 2008.  Vários deles têm críticas aqui no cinema com recheio.  Quem ainda não conhece esse cineasta não perca mais tempo, vá atrás.  Comece por esse “Frantz”, que é um filme soberbo, talvez o melhor de sua filmografia.

“Frantz” está presente no Festival Varilux de Cinema Francês que, de 07 a 21 de junho de 2017, exibe 19 longas-metragens em 55 cidades brasileiras.  Em seguida, entra em cartaz nos cinemas.



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