Antonio
Carlos Egypto
A safra de filmes latino-americanos, Brasil à parte,
exibida na 39ª. Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, foi o grande
destaque do evento. Nem tanto pela
quantidade, mas pela alta qualidade que apresentou. É bom ficar atento, porque os filmes devem
entrar em cartaz nos cinemas a seguir.
Espero que brevemente, mas nunca se sabe.
O BOTÃO DE PÉROLA |
O BOTÃO DE PÉROLA (Chile, 2014, 82 min.)
A água vem do espaço, cria a vida, alimenta e serve
de rota para povos indígenas da Patagônia e navegadores estrangeiros, forma a
fronteira mais longa do Chile e é cemitério de “desaparecidos”
do regime de Pinochet. Os oceanos contêm
história e memória, podem também ter voz.
O botão de pérola encontrado no fundo do mar é uma dessas vozes
eloquentes.
O filme de Patricio Guzmán, um dos maiores
documentaristas da atualidade, é extraordinariamente bem construído, de uma
beleza plástica incontestável e não deixa um fio solto. Todos os elementos levantados são muito bem
amarrados e integrados num todo não só compreensível como inovador,
surpreendente, até.
No cinema contemporâneo, a gente admite micro
histórias, excertos, fios narrativos, ideias soltas ou sugeridas. É um caminho alternativo. Mas quando se vê um filme tão bem planejado e
realizado como O BOTÃO DE PÉROLA, fica evidente a superioridade de um produto
estruturalmente completo. Trata-se de um
documentário astronômico, etnológico, histórico, geográfico e político, que nos
dá uma dimensão ampla e abrangente do Chile, em múltiplos aspectos do país.
Apenas para lembrar, é de Patricio Guzmán a trilogia A
BATALHA DO CHILE, de 1975, 1977 e 1979, e o espetacular NOSTALGIA DA LUZ, de
2010 (Veja crítica de fevereiro de 2015, no cinema
com recheio). Com O BOTÃO DE PÉROLA,
ele reafirma sua capacidade de construir obras complexas, plasticamente
arrebatadoras, que são verdadeiras maravilhas do cinema documental.
IXCANUL |
IXCANUL (Guatemala, 2015, 91 min)
IXCANUL significa vulcão,
na língua falada por uma comunidade de camponeses de origem indígena, num
vilarejo à beira de um vulcão ativo, na Guatemala. Às suas costas, estão os Estados Unidos, o
protótipo do desejo daqueles que buscam escapar de seu destino. Mais do que a cidade da Guatemala ou de
qualquer outra no país.
Nesse universo cultural tradicional, um casamento
arranjado aparece como algo natural. Mas
não corresponde aos desejos de uma adolescente, que busca alguém mais jovem e
ambicioso que pretenda se evadir para a América e, quem sabe, levá-la.
O filme mostra como se dão as relações familiares, as
tradições e a religiosidade da localidade, mas, diante de uma gravidez
inesperada, novas questões se colocam, incluídas formas abortivas com base em
plantas e rituais e o que pode acontecer com um bebê que está para nascer. Passa pelo atendimento médico na cidade,
dificultado pelo idioma, e muitas outras coisas. O filme guatemalteco tem uma história muito
bem construída, de concepção moderna, que não se alimenta do exótico, mas do
dilema moral e de aspectos políticos nada óbvios.
Um surpreendentemente grande filme, de um diretor
estreante em longas-metragens, Jayro Bustamante, de um país com pouca tradição
cinematográfica. A Guatemala o indicou
para representá-la na disputa pelo Oscar de filme estrangeiro. Sem nenhum favor, um dos melhores da 39ª.
Mostra.
CINEMA COLOMBIANO
Da Colômbia pude ver dois belos filmes: A TERRA E A
SOMBRA e O ABRAÇO DA SERPENTE. E quem viu ALIAS MARIA gostou muito desse filme
também.
A TERRA E A SOMBRA é um filme-denúncia, triste e
pungente, sobre a plantação de cana-de-açúcar e suas queimadas predatórias, que
destroem o meio ambiente e matam tudo à sua volta, inclusive seus próprios
trabalhadores.
A história é contada a partir de uma família que
permanece em sua pequena propriedade, imersa numa nuvem de poeira e cinzas,
convivendo com a doença e a falta de esperança.
O clima é obviamente sombrio, mas o filme tem muita beleza e talento nos
enquadramentos e movimentos de câmera, nesse cenário desolador. Sua denúncia é muito forte. O diretor César Augusto Acevedo faz, assim,
seu primeiro longa, com muita competência.
O filme ganhou o prêmio Caméra D’Or no Festival de Cannes 2015.
A TERRA E A SOMBRA |
O ABRAÇO DA SERPENTE, terceiro longa do diretor
colombiano Ciro Guerra, nos remete ao coração da Amazônia, com uma bela
fotografia em preto e branco, para contar a história de um xamã, último
sobrevivente de sua tribo, isolado e esquecido, que, junto a um pesquisador
norte-americano, embarcará numa jornada, em busca de uma planta sagrada, em que
passado, presente e futuro se conectam.
Também recebeu um prêmio importante no Festival de Cannes.
CINEMA DA VENEZUELA
Da Venezuela, destaque para DESDE ALLÁ, primeiro
longa de Lorenzo Vigas, vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza. O filme navega num universo em que a
homossexualidade como desejo traz à tona uma série de questões e constrói uma
narrativa complexa, muito forte, que surpreende. Tem uma estrutura consistente, que inclui a
realidade social dos meninos de rua, mexe e brinca com preconceitos
estabelecidos. E tem elementos policiais
e de suspense. Tudo muito bem
concatenado. Ótimo filme.
DESDE ALLÁ |
Outro filme venezuelano, LO QUE LLEVA EL RÍO,
focaliza uma jovem que tem de enfrentar os rígidos ditames de sua cultura. Ela deseja crescer e viver uma vida rica de
possibilidades que a cidade lhe apresenta, sem perder o contato com sua
comunidade e sua história. Mais do que
isso: está disposta a estudar e escrever, difundindo sua cultura. O complicado é que seu marido e a comunidade
possam entendê-la. Primeiro longa de
Mario Crespo, de origem cubana, que vive na Venezuela. Bonito trabalho.
CINEMA MEXICANO
Do México há a destacar dois bons produtos. A ESTREITA FAIXA AMARELA, primeiro filme de
Celso García, é um road movie, construído
a partir de uma situação aparentemente banal.
Cinco homens estão a trabalho, em busca de sobrevivência, não de
resolver questões existenciais. O que
eles têm de fazer é pintar de amarelo a linha central de uma estrada de 200 km. de extensão, em quinze dias. O
convívio entre eles e as situações práticas que aparecem vão mudar suas vidas
ou, mesmo, abreviar uma delas. O clima é
afetivo, às vezes complicado, mas, envolvente.
O filme tem humor e é uma celebração da amizade e da solidariedade, sem
ingenuidades.
A ESTREITA FAIXA AMARELA |
CHRONIC, do cineasta mexicano
Michel Franco, focaliza a vida e o trabalho de um cuidador de doentes
terminais. Competente e dedicado ao seu
ofício, é desencontrado em sua própria vida pessoal. Desse mote, o diretor desenvolve longos
planos-sequência, mostrando o trabalho desse cuidador, em alguns casos se
alongando um pouco além do necessário. O
objetivo é preparar o nosso espírito para o final bombástico que ele produz. Funciona.
PAULINA (La
Patota)
Da Argentina veio não o melhor mas o mais polêmico
dos latino-americanos da Mostra.
Violência sexual, gravidez, aborto, são as questões que mobilizam esse
filme, em que a protagonista Paulina toma decisões inesperadas e
estranhas. Qual é a sua lógica? Tem sustentação? O que ela sente? Faz sentido?
Que clave moral a guia?
PAULINA |
Todas essas perguntas já mostram que PAULINA é um
filme eficiente, como provocação, para abrir debates, discussões acaloradas,
mobilizar questões de gênero importantes.
Identificar-se com a personagem certamente será algo muito raro para as
mulheres. Merece ser visto.
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