sábado, 24 de outubro de 2015

AS 1001 NOITES DE MIGUEL GOMES


Antonio Carlos Egypto




TRILOGIA -- AS 1001 NOITES. Portugal, 2015.  Direção e roteiro: Miguel Gomes.

AS 1001 NOITES: O INQUIETO, vol. 1.  Elenco: Crista Alfaiate, Adriano Luz, Américo Silva, Rogério Samora.  125 min.
AS 1001 NOITES: O DESOLADO, vol. 2.  Elenco: Crista Alfaiate, Chico Chapas, Luísa Cruz, Gonçalo Waddington.  131 min.
AS 1001 NOITES: O ENCANTADO, vol. 3.  Elenco: Crista Alfaiate, Américo Silva, Carloto Cotta, Jing Jing Guo.  125 min.

Muitas vezes, quando a gente se aproxima da chamada realidade, ela soa surreal.  Com humor e ironia, as desgraças se convertem em estranhamentos.  O excêntrico também pode ser visto como redentor.




É próprio do cinema mesclar o cotidiano e o sonho, o real e o imaginário, a verdade factual e a ficção, de modo que essas coisas se embaralhem e se tornem indiscerníveis.  Tempo e espaço perdem, ainda, seus limites.

Alguns cineastas trabalham, de modo evidente, com a realidade surreal, desestabilizam nossa percepção, exigem que deixemos de lado o conforto da narrativa clássica.  Estou pensando em realizadores como o norte-americano Wes Anderson, o sueco Roy Andersson, o chinês Jia Zhang Ke e o mestre espanhol Luís Buñuel, entre outros.  Pois o português Miguel Gomes é um lídimo representante dessa vertente.  Seus filmes “Aquele Querido Mês de Agosto”, de 2008, e sobretudo “Tabu”, de 2012, já eram demonstrações claras e bem sucedidas disso.  A trilogia de filmes “As 1001 Noites” sacramenta de vez a inovação narrativa do diretor, sem deixar margem a dúvidas.




Esclareça-se, de início, que são três filmes distintos, que resultaram de uma metodologia única e da mesma estrutura formal, no caso, emprestada das 1001 Noites, com Xerazade contando histórias ao rei, mas não é uma adaptação, nem tem nada a ver com os contos árabes.

O que Miguel Gomes e sua equipe fizeram foi contratar jornalistas para colher fatos importantes, surpreendentes, significativos ou relevantes, que estivessem acontecendo em qualquer parte de Portugal naquele momento e, a partir deles, construir uma história ficcional que, muitas vezes, é quase documental e, outras vezes, embarca fortemente na fantasia.  Quanto mais surreal, mais retrata Portugal em meio à crise de austeridade que assolou o país e a Europa.  Mas os momentos se alternam.




O primeiro filme, “O Inquieto”, dá conta das maldições que se abatem sobre o país, tem baleias que explodem, desempregados que contam suas histórias, o banho (coletivo) dos magníficos, promovido por um sindicalista em pleno inverno, e um galo que, de tanto exigirem que seja abatido, resolve falar e explicar o que acontece.  O mal estar civilizatório é muito claro e as coisas não são o que aparentam ser.

No segundo filme, “O Desolado”, o título já diz tudo: não parece haver solução, a desolação toma conta das vidas.  Até uma juíza se verá tão aflita que chorará, em vez de ditar a sua sentença, o suicídio se impõe na saga de um cão fiel, que muda de dono e permanece capaz de amar da mesma forma a todos.  Os animais acabam sempre abrindo o caminho da esperança, até na desolação.  Esse é o mais bem realizado da trilogia e foi indicado por Portugal para representá-lo no Oscar de filme estrangeiro.




O terceiro filme, “O Encantado”, descobre que há vida e esperança na simplicidade e na paixão: no caso dos passarinheiros, em que aprendemos que os tentilhões podem ser ensinados a cantar, os passarinhos não nascem sabendo, aprendem com os mais velhos e podem aprender o canto de outra espécie, se forem treinados para tal.  A poesia encontra seu lugar.  A revolução dos cravos é lembrada, as recompensas afetivas ganham destaque.

São as diversas faces dos homens e das suas circunstâncias, pensando em Sartre, o que Miguel Gomes mostra nessa trilogia, muito bem realizada, em que pesem alguns maus momentos, como “os homens de pau feito”, no primeiro filme.  Já o do “Simão sem Tripas” é uma das histórias saborosas que os filmes têm a contar.




Cada um dos filmes vale por si só, independe dos outros.  É possível assistir a eles isoladamente e em qualquer ordem.  Não são partes sequenciais.  São diferentes histórias que se relacionam a diferentes momentos e espaços da vida portuguesa atual.  Em conjunto, formam um painel amplo e diverso, bastante ilustrativo da sociedade que procuram retratar.

“As 1001 Noites” de Miguel Gomes é um dos principais destaques da 39ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.  Não pode faltar no cardápio dos cinéfilos, que se alimentam do cinema autoral do evento mais aguardado da cidade, todos os anos.




Nenhum comentário:

Postar um comentário