terça-feira, 3 de abril de 2012

AS NEVES DO KILIMANJARO

 Antonio Carlos Egypto


AS NEVES DO KILIMANJARO (Les Neiges du Kilimandjaro).  França, 2011.  Direção: Robert Guédiguian.  Com Jean-Pierre Darroussin, Ariane Ascaride, Gérard Meylan, Marylene Canto, Gregoire Leprince-Ringuet.  107 min.



O filme francês “As Neves do Kilimanjaro”, que está estreando nos cinemas, foi produzido em 2011 e não se trata de uma refilmagem.  O título é o mesmo do filme dirigido por Henry King, em 1952, com Gregory Peck, Susan Hayward e Ava Gardner, baseado no livro de Ernst Hemingway, mas não tem nada a ver com ele.  Pode causar alguma confusão no público.  Uns podem achar que é a mesma história, outros, que é o mesmo filme, em cópia restaurada.  Nem uma coisa, nem outra. Se eles têm algo em comum, é apenas a citação do monte permanentemente branco do Kilimanjaro, no Parque Nacional da Tanzânia, o ponto mais alto da África.  No filme atual, um lugar para onde se pode planejar uma viagem, por ocasião da aposentadoria, só isso.

“As Neves do Kilimanjaro” é, por sinal, não só um filme atual e novo, mas também contemporâneo na sua concepção. Baseado em um poema de Victor Hugo,ele se constrói por meio de uma série de dilemas que envolvem decisões a serem tomadas a cada passo, e para as quais é inevitável pensar, ponderar, avaliar prós e contras.  Implica reflexões que têm como base o senso de justiça e como cada um se relaciona com seus próprios princípios, na vida prática.


Vou descrever apenas o primeiro desses dilemas, que nos é apresentado nos primeiros minutos do filme.  Mas se você não quiser conhecê-lo antes de ver a fita, é só saltar o próximo parágrafo.

Michel (Jean-Pierre Darroussin) é um trabalhador que preside o sindicato de sua categoria.  Foi por meio dele, e do sindicato, que a empresa negociou a demissão de vinte pessoas, para que ela pudesse enfrentar a crise que atinge a economia europeia.  Ao invés de decidir quem seriam os demitidos, o acordo com o sindicato estabeleceu que se faria um sorteio entre todos os empregados.  Diante de uma urna com todos os nomes, os vinte papéis sorteados seriam os dos demitidos.  Michel, como líder sindical, estaria dispensado de entrar nesse sorteio, já que o próprio cargo lhe dá estabilidade no emprego, para que possa lutar pelos interesses da categoria enquanto estiver na função para a qual foi eleito pelos colegas.  Se ficar de fora do sorteio, seu emprego será preservado.  Mas seria isso justo?  Se entrar no sorteio, pode perder seu emprego, às vésperas da aposentadoria, não conseguir novo trabalho e, ainda, prejudicar sua própria atuação sindical.  O que fazer?

Isso que eu descrevi é só o começo do filme.  A partir desse dilema, muitos outros se colocarão, sempre com respostas difíceis de dar, envolvendo decisões delicadas como essa.  Não há cartilhas que possam dar conta de como alguém deve se comportar diante dos desafios da realidade.  Não existem fórmulas prontas que se possam aplicar, estejam elas na ideologia política, nos princípios filosóficos, nas religiões. Viver pode ser penoso e dolorido diante da consideração ética da administração da justiça.  Nem as leis, ou o arcabouço jurídico-constitucional de um país, conseguem dar conta disso.  E o que muitas vezes parece evidente, dependendo das circunstâncias, pode se revelar bem menos claro e nos surpreender, parcial ou completamente.


É disso que trata, com brilhantismo, o filme de Robert Guédiguian: da complexidade da vida e das relações humanas, especialmente aquelas que são tocadas pelas carências sociais, as que envolvem o mundo do trabalho e os valores da comunidade que o cerca.  Mais do que isso: a luta interior que temos de manter com nossos valores internalizados, nas decisões pessoais que tomamos.  E que, por certo, terão consequência para os outros, tanto os que estão ao nosso lado, como a família, quanto os que não conhecemos muito bem.

Não custa lembrar aqui uma frase do genial Millôr Fernandes (esse era gênio, mesmo, não é força de expressão), recém-falecido: “Como são admiráveis as pessoas que não conhecemos muito bem”.  E como também podem nos surpreender, para o bem e para o mal, não só essas pessoas, mas até aquelas que estão ao nosso lado.


“As Neves do Kilimanjaro” é daqueles filmes simples, na superfície, mas profundos, numa leitura mais atenta e cuidadosa.  Merece ser visto e, se possível, debatido.  Que o título homônimo do clássico hollywoodiano não atrapalhe sua carreira.  E seria bom, também, que as pessoas não entrassem no cinema em busca de um impactante drama romântico, recheado de belas paisagens, porque aí, certamente, iriam se frustrar.  Não que não haja um amor duradouro e companheirismo nas relações de Michel com Marie-Clare (Ariane Ascaride), mas o tom é completamente outro.

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