segunda-feira, 27 de junho de 2011

ROMA DE FELLINI

Antonio Carlos Egypto


ROMA DE FELLINI (Roma). Itália, 1972. Direção: Federico Fellini. Com Peter Gonzales, Fiona Florence, Marne Maitland, Britta Barnes, Renato Giovannoli. 128 min.




Quem gosta de cinema não pode deixar de ver e rever, de tempos em tempos, a obra de Federico Fellini, ainda que em DVD ou nas raras oportunidades em que a TV paga exibe alguma coisa dele. Afinal, é um dos cineastas mais criativos e inventivos de toda a história do cinema.

Revi agora, depois de muitos e muitos anos, seu filme “Roma”, uma viagem pelo que a cidade tem de marcante nas memórias do diretor, de infância, adolescência e vida adulta, mais aquilo que mais ou menos todo mundo conhece, ou sabe, sobre Roma. E, ainda, aquilo que é menos evidente ou que está sublinhado lá do que é mais típico do comportamento dos italianos, de modo geral. Se é que se pode falar assim.

Lá estão presentes os comportamentos histéricos diante dos espetáculos de variedades do tempo da Segunda Guerra Mundial; as muitas comemorações celebradas em torno da comida – das massas, dos vinhos – que são verdadeiros rituais circenses. Assim como os bordéis, populares ou de luxo, em que as mulheres desfilam sem qualquer pudor, propagandeiam a mercadoria, com chamamentos explícitos dos homens para a cama. São exemplos de cenas divertidas e excepcionalmente bem construídas da Roma felliniana.

A Roma histórica, com seus símbolos e lendas, está nas lembranças escolares, mas também magnificamente mostrada nas escavações do metrô, que encontram preciosidades embaixo da terra, a cada passo que dão, o que adia indefinidamente a obra a executar. Nada mais significativo do peso histórico que a cidade tem do que o que emerge dessas cenas.

Ao final, o filme vai se concentrar em Roma já deserta, pela madrugada, quando um conjunto de motos passeia por toda a pujança arquitetônica milenar de uma Roma iluminada, e seus grandes monumentos vão sendo mostrados rapidamente. Mas exibem uma beleza incrível e aí o peso da história se torna insuperável.

Estamos em 1972 e a atualidade mostra as praças da cidade ocupadas pelos jovens hippies, vivendo uma liberdade sexual que contrasta com a tradição e os valores religiosos que a cidade cultiva. Os jovens mensageiros da paz daqueles tempos são tirados pela polícia de espaços públicos, para atender às elites incomodadas.




Há uma sequência longa e inventiva, que dá conta do interesse pela moda e, sobretudo, do peso da igreja católica na cidade, onde está o Vaticano e vive o Papa. Uma mulher de alta estirpe sente saudade do tempo em que todo mundo se conhecia, numa Roma muito menor, em que era possível estar próximo, conviver, encontrar-se amiúde com as autoridades eclesiásticas. O que daqui se segue é impressionante: um desfile glamouroso de roupas para freiras, padres, coroinhas, bispos, cardeais e para o próprio Papa, em passarela da moda, cheia de luzes e brilhos, o que não deixa dúvida sobre a ostentação que se pratica ali. É uma sequência de grande beleza e ironia, que valeria pelo filme todo, se todas as outras não fossem igualmente bem trabalhadas, irônicas e de indiscutível beleza plástica. É que talvez aqui, nessa sequência dos religiosos, se possa perceber melhor o quanto Fellini era capaz de criar universos cinematográficos próprios – e corajosos.

Quando o filme termina, a sensação que bate é de que esse cinema não existe mais, essa explosão de criatividade em todos os sentidos, com forma e conteúdo perfeitamente integrados, perpassa uma película de mais de duas horas que deixa os sentidos embasbacados, sem precisar contar história nenhuma.

Há beleza, criatividade, inovação, em muitas cenas do cinema atual, mas nada que se possa comparar ao que Fellini conseguia fazer na Cinecittà, brigando e reclamando dos produtores, da concorrência da televisão, da imprensa que atrapalhava e queria explicações sobre tudo, do estrelismo de atores e atrizes. Mas ele fazia e como ninguém.




“Roma”, certamente, não é o melhor Fellini. Seria “La Strada”, “Noites de Cabíria”, “A Doce Vida”, “8 ½”, “E la Nave Va”, “Amarcord”? Não sei. Mas “Roma”, visto agora, é genial e é um registro magnífico de uma cidade apresentada a partir da ótica dos anos 1970, em que foi concebido o filme. Tem tamanha atualidade que poderia ser inserida na atual concepção da quebra de limites entre o documental e a ficção. “Roma” parece um documentário personalizado, na sua incrível e trabalhadíssima encenação das realidades da Roma que estão mais na imaginação do cineasta do que em qualquer outro lugar.



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