quinta-feira, 25 de março de 2010

DIÁRIO PERDIDO



Antonio Carlos Egypto


DIÁRIO PERDIDO (Mères et filles). França, 2009. Direção: Julie Lopes Curval. Com Marina Hands, Marie-Josée Croze, Catherine Deneuve e Michel Duchaussoy. 105 min.

Audrey (Marina Hands) é uma mulher na faixa dos 30 anos de idade, está grávida e em conflito com a perspectiva da maternidade. Ela vive em Toronto, no Canadá, e tem uma vida profissional ativa, distante dos pais, que continuam vivendo no interior da França, onde ela nasceu. A relação de Audrey com sua mãe, Martine (Catherine Deneuve), médica conceituada na pequena cidade, é fria, distante, marcada por agressividades mal-disfarçadas.

Quando resolve passar alguns dias com os pais, Audrey se instala na casa ao lado deles, onde viveram seus avós. O avô já falecera há algum tempo, mas a casa permanece desocupada, com todos os móveis e pertences.

Do passado, resta uma chaga: a avó, Louise (Marie-Josée Croze), abandonou a casa e os filhos e nunca mais deu notícias. Até então, era uma mulher bonita, vistosa, sempre bem vestida, com uma casa impecável, mas um tanto insatisfeita com a dependência que cabia às mulheres daquela época. Ansiava por maior autonomia e liberdade, embora tivesse sempre se submetido às decisões do marido, até porque não havia escolha.

Quem teria sido realmente essa avó, como ela vivia e o que poderia ter determinado o sucedido vem à tona tantos anos depois, porque Audrey (por conta da gravidez?) se conecta fortemente a esse passado. Vivendo na casa, ela “vê” sua avó em ação, como se sente, se comporta e vive naquele mesmo espaço, agora fora de moda e deteriorado, em que ela está neste momento.

Esse jogo entre presente e passado no mesmo local, à beira de uma praia onde parece sempre fazer frio e na residência orgulho de uma dona de casa de classe média alta até os anos de 1960, é muito bem realizado. A transição entre o hoje, vivido pela protagonista, e o imaginado por ela, onde quem domina a cena é a avó Louise, é muito eficaz. A beleza da casa, que hoje se vê velha, é perfeita. A direção de arte é impecável e a gente se sente vivendo nos dois tempos marcados por grande diferença de significado na vida das mulheres daquela família.

Na realidade, são três tempos, ou gerações. Da avó Louise, presa em gaiola de ouro, sem poder alçar voo, passando pela filha Martine, que já consegue se realizar como médica na pequena cidade, à neta Audrey, com vida profissional intensa e agitada, em outro país.

Como conceber a vinda de uma possível filha para Audrey? O que estaria reservado a ela? E como ser mãe nesse mundo tão profissionalizado e globalizado? O aborto é cogitado, assim como um casamento em que já não há mais qualquer glamour, ou amor. Imaturidade e despreparo, sim. Descrença na instituição familiar, também.

Com tudo isso, a diretora Julie Lopes Curval vai tecendo uma história das relações de gênero e do avanço das mulheres na conquista da liberdade. A relação entre mães e filhas vai constatando com tranquilidade os caminhos que se abrem, sem deixar de mostrar os conflitos e os custos, por vezes muito altos, dessas conquistas. Por aí se destaca como um filme muito competente para tratar das relações de gênero nos contextos doméstico e público, embora não chegue a tratar da questão do poder mais diretamente.

O diário perdido (ou escondido) dos títulos em português e em inglês é o meio pelo qual Audrey faz sua conexão com o passado da avó Louise. “Mães e filhas” é o título original, que é por onde as relações se estabelecem, construindo novas realidades para a mulher na sociedade.

Um problema a apontar no filme é: quem narra a história? Para deslindar fatos, é preciso ter dados, o que a protagonista colhe tanto no diário da avó como junto às pessoas que com ela conviveram: o pai, o tio, a vizinha, os comerciantes locais e Martine, ainda que esta a contragosto. A partir daí, Audrey levanta suas hipóteses e tira conclusões. Perfeito. Mas algumas cenas do passado, especialmente a do avô se interpondo à avó na cozinha, o que explica a existência do diário e do dinheiro descobertos por Audrey, não tem origem ou explicação. Ela não tem de onde tirar essa conclusão, pode apenas imaginá-la, supô-la. Mas não é assim que a cena aparece no filme. É como uma “verdade” que acaba esclarecendo tudo. Remete-nos, portanto, ao narrador onisciente do cinema clássico: Deus. Quem mais poderia ser?

A “solução” de Audrey morar na casa dos avós por um par de dias é muito vantajosa para o roteiro, mas pouco provável no contexto. Só que, sem ela, o filme não seria possível. A compra de equipamentos de cozinha, como um lava-louças, para tão pouco uso, mesmo vinculado à profissão da protagonista e a seus brinquedos infantis, também só se justifica para que a história possa caminhar. Já a profissão de médica que Martine exerce, enquanto uma gravidez decorre sem ser explicitada, é perfeita para revelar os meandros das relações mãe e filha.

O universo feminino em mutação, aqui tão bem retratado, compensa eventuais falhas e a presença luminosa de Catherine Deneuve no elenco é a cereja do bolo.

Um comentário:

  1. Olá. Um recheio de cinema, assim apresentado, é um franco convite à degustação. Parabéns pela rica apresentação do filme e pelo blog!
    Abraço com açúcar e com afeto, Eliene.

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