Antonio Carlos Egypto
Um destaque desta Mostra 46 é o filme palestino FEBRE DO MEDITERRÂNEO (Mediterranean Fever), da diretora Maha Haji, também roteirista. Ela constrói uma história cheia de meandros,
ambiguidades e surpresas, que é brilhante.
Nem dá para dizer muita coisa sobre ela para não atrapalhar a fruição do
espectador. Dá para apontar algumas
coisas que são interessantes. Por exemplo, os dois protagonistas masculinos do
filme são homens que passam mais tempo em casa do que fora. Waleed, de 40 anos, porque se considera
escritor, mas não consegue avançar no seu trabalho, enquanto a mulher trabalha
fora. Seu vizinho, com quem ele
estabelecerá uma amizade inesperada, já que ambos aparentemente são tão
diferentes, também fica em casa, é um trambiqueiro e faz tudo em matéria de
construções e consertos, a mulher dele também trabalha fora. Curioso que uma diretora mulher tenha criado personagens
homens que se relacionam a partir de seu convívio em casa. Quanto à
caracterização desses homens, há muitos elementos que destoam das expectativas,
gestos que soam dissonantes em relação aos dominantes, aparências que se
revelarão enganosas. Para isso, Maha
Haji precisava de atores capazes de passar essa sensação ao público,
independentemente dos diálogos. Amer
Hiehel e Ashraf Farah brilham nos seus papéis e dão uma dimensão especial à
narrativa. Os temas que vão aparecendo ao longo da história são psicológica e
socialmente complexos, vão da depressão ao suicídio, passando pela
possibilidade do assassinato, com diferentes tons de motivação e das
transgressões diversas que se insinuam o tempo todo. Tudo muito bem engendrado até o final e inclusive
o próprio final, bem verdadeiro. Quanto ao título do filme, pode-se comentar,
porque é uma brincadeira. A tal febre do
Mediterrâneo acomete o menino, filho de Waleed, somente às terças-feiras. Por que será? Isso tem a ver com a própria Palestina, que
não é o foco do enredo, mas está presente como moldura e pano de fundo das
situações. Com Amer Hiehel, Ashraf
Farah, Anat Hadid, Samir Elias. 108 min.
Outro destaque desta 46ª. Mostra é BOY FROM HEAVEN (Walad Min Al
Janna), embora não pareça, é um filme sueco, com a participação dos demais
países escandinavos e da França, na produção.
O diretor Tarik Saleh, apesar do nome, também é sueco, sua mãe é sueca,
seu pai, egípcio. É no Egito que se
passa toda a trama do filme, que não pôde ser filmado lá e foi, então,
realizado na Turquia. BOY
FROM HEAVEN é um magnífico thriller,
que mexe com todo o jogo de poder dentro de uma estrutura religiosa, no caso, a
do islamismo sunita. A instituição
retratada é a Universidade Al-Azhar, no Cairo, principal instituição mundial
dessa tendência, que parece ter um forte poder paralelo que tanto fustiga,
incomoda, quanto apoia o Estado egípcio. E é influenciada e manejada por esse
mesmo Estado, numa relação perigosa e conturbada. A trama se baseia num jovem
personagem decidido, mas simples, oriundo de uma aldeia de pescadores egípcia,
que recebe uma Bolsa para estudar em Al-Azhar e se mete no intrincado jogo
político para a escolha do novo Grande Imã, em substituição ao que acabou de
falecer. A eleição desse Imã acontece
por imposições pessoais, assassinatos, denúncias comprovadas que tiram do páreo
o favorito do momento, tudo numa espécie de concílio para lá de comprometido e
comprometedor. Toda uma teia de relações e acontecimentos vai sendo tecida,
pouco a pouco, por meio de um roteiro muito bem elaborado, reconhecido e
premiado em Cannes. Enquanto enlaça o
espectador na narrativa, o filme desnuda o sórdido esquema político, o jogo de
poder que está por trás, onde não se vê verdade alguma, lisura, comprometimento
espiritual e outras coisas que deveriam caracterizar uma instituição de ensino
e formação religiosos. Veem-se as relações do poder político com o poder
religioso, em confronto interno, por meio de suas linhas e divisões. Percebe-se
que o diretor e roteirista, Tarilk Saleh, conhece bem os meandros dessa luta
político-religiosa no Egito e nos ambientes muçulmanos, pelos elementos e
detalhes que aparecem na trama. Quanto à
crueldade e à barbárie que se esconde sob a capa da devoção a Alá, não são
muito diferentes das de outras crenças e instituições poderosas, religiosas ou
não, que comandam e sempre comandaram o mundo.
Shakespeare que o diga! Para não
entrar em questões mais próximas de nós, do que está por aqui mesmo.
Com Tawfeek Barhom, Fares Fares, Mohammad Bakri,
Makram Khoury, Mehdi Dehbi. Com 119 min.
Em matéria de documentário, merece toda a atenção o
filme italiano MARCHA
SOBRE ROMA (Marcia su Roma), de Mark Cousins, de origem irlandesa, que tem
outros dois trabalhos também nesta Mostra.
Aqui, lidando com materiais de arquivo, alguns bem raros, ele compõe por
meio de filmes a ascensão de Mussolini e do fascismo, na Itália. A famosa Marcha
sobre Roma, que faz cem anos, serve como elemento detonador de uma corrente
política que até que durou pouco na Itália, mas jamais deixou de assustar o
mundo e gerou uma extrema direita que se fortalece nos tempos atuais, inclusive
na Itália. Mas o filme vai além, faz
relações da história com outros países e no momento atual, em que o espírito
fascista segue atuante em termos institucionais, de governo ou de forma
sorrateira ou clandestina. As figuras mundiais ligadas ao fascismo são
lembradas e mostradas no filme, inclusive Jair Bolsonaro. O filme mostra também
que a filmagem da famosa Marcha sobre Roma foi manipulada e editada, para
produzir o resultado que produziu. Ou
seja, era um engodo, mas vingou. 98 min.
@mostrasp
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