quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

E ENTÃO NÓS DANÇAMOS

Antonio Carlos Egypto






E ENTÃO NÓS DANÇAMOS (And Then We Danced).  Suécia/Geórgia, 2019.  Direção e roteiro: Levan Akin.  Com Levan Gelbakhiani, Bachi Valishvili, Ana Javakishvili.  106 min.


A Geórgia (ex-União Soviética) tem entre suas principais tradições a dança.  Uma dança tradicional, com marcações fortes, firmes e intensas, que remetem a uma ideia de masculinidade.  Ou a um conceito algo rígido e preconceituoso do que seja a masculinidade.  O fato é que gestos leves, trejeitos, sorrisos de alegria e encantamento, são solenemente repreendidos, nos ensaios com os bailarinos, como se vê em algumas sequências de “E Então Nós Dançamos”.  O filme, roteirizado e dirigido por Levan Akin, georgiano, radicado na Suécia há muito tempo, é uma retomada por parte dele da arte das tradições de seu país de origem.  E representou a Suécia na indicação ao Oscar de filme internacional.

Se é preciso respeitar e valorizar tradições, em especial expressões artísticas consagradas, também é preciso avançar e superar preconceitos.  Do embate entre essas questões se alimenta o filme de Levan Akin.  Na história, é pela ótica de um bailarino jovem, Merab, vivido por Levan Gelbakhiani, que temos acesso ao cotidiano de alguém que aspira a esse caminho artístico, enquanto faz trabalhos pesados e mal remunerados para tentar sobreviver.  Acompanhamos seu esforço diário, sua paixão pela dança, conhecemos a jovem bailarina Mary (Ana Javakishvili), que é sua parceira constante nessa atividade, percebemos o que ela sente por ele, sem ser correspondida para além da dança.  E o vemos conhecendo e se envolvendo com o bailarino Irakli (Bachi Valishvili), com quem aprende técnicas, rivaliza e acaba por desenvolver um desejo homoerótico.

Na família, com um irmão prestes a se casar ou na dança que cultiva, Merab percebe que não há espaço para o reconhecimento do seu desejo e torna-se bastante complicado compatibilizar as coisas.  Por aí vai o drama que o filme explora, enquanto nos brinda com um musical, em que a dança tradicional georgiana se destaca.



O diretor tem claramente a intenção de valorizar essa tradição da dança e outras mais.  Por exemplo, nos mostra os rituais do casamento no país.  Mas coloca em questão, também, a necessidade de questionar e superar os ranços autoritários e os preconceitos que ajudam a sustentar essas tradições.  Até onde vale a pena ir na preservação da cultura local e quando é preciso mudá-la ou mesmo implodi-la, se for o caso?  Como os jovens podem se inserir nesse contexto cultural pós-União Soviética, com os elementos da globalização, da cultura pop e das mudanças comportamentais que os distinguem da velha geração?

O diretor fala, numa entrevista, da situação frágil da Geórgia e dos antigos países soviéticos, com suas singularidades, em contato com os valores da situação atual.  Como preservar a identidade cultural, como a língua, o alfabeto, a cultura do vinho e da gastronomia, ao mesmo tempo em que é imperioso se abrir para o mundo novo, em constante transformação? E dá um exemplo importante.  Quando trabalhava na concepção do filme, buscou a ajuda do famoso Balé Nacional da Geórgia, inclusive querendo contar com a participação de alguns de seus bailarinos.  O que lhe foi negado peremptoriamente, alegando que não existia homossexualidade na dança, na Geórgia.  E teve de conviver com uma grande sabotagem contra o trabalho que estava realizando.

Uma atitude como essa é a demonstração mais cabal de que não se pode, simplesmente, ficar cultivando uma tradição cultural sem nunca colocá-la em questão ou em dúvida.  Se é preciso negar a realidade para mantê-la como está, chegou a hora de revisá-la, reformá-la ou revolucioná-la.  Assim como não faz sentido destruir tradições culturais importantes, também não faz sentido mantê-las a qualquer preço, gerando sofrimento inútil e desnecessário às pessoas.




LEMBRETE
Já entrou em cartaz nos cinemas O PARAÍSO DEVE SER AQUI, de Elia Suleiman, o filme que mais me agradou na 43ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e que, mesmo sendo exibido nos estertores do ano, está seguramente entre os melhores de 2019.  Espero que as festas de fim de ano e as férias escolares não impeçam as pessoas de usufruir desse belo trabalho cinematográfico.  Veja crítica e comentários sobre o filme aqui, no cinema com recheio, postados em 25 de outubro e em 08 de novembro de 2019.





Um comentário:

  1. Olá, Egypto!
    Suas críticas são, como sempre, muito bem fundamentadas. O filme, descrito pelas suas palavras, nos leva ao telão sem te-lo diante dos olhos. Faltou apenas a pipoca e o refri para completar a experiência. Vou conferir a bela obra, certamente. Parabéns, Grego.

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