Antonio Carlos Egypto
NINFOMANÍACA, volumes I e II (Nimphomaniac). Dinamarca, 2013.
Direção e roteiro: Lars von Trier.
Com Charlotte
Gainsbourg, Stellan Skarsgard, Stacy Martin, Shia La Beouf, Christian Slater,
Jamie Bell, Uma Thurman, Willem Dafoe, Mia Goth, Sophie Kennedy Clark. Vol. I, 110 min. Vol. II, 130 min.
O diretor dinamarquês Lars von Trier tem, no cinema, uma
trajetória marcada pela polêmica e por espertos apelos de marketing. Com ele, a tendência é cair no tudo ou nada,
ou a gente ama ou detesta o que ele faz.
É difícil buscar uma avaliação equilibrada, até porque as coisas que ele
diz e faz fora da tela costumam ser um tanto despropositadas, sem medida. Mas
deixemos um pouco a figura do cineasta de lado e vamos ao filme.
“Ninfomaníaca” tinha, originalmente, mais de cinco
horas de duração, algo muito pouco viável, comercialmente. Os exibidores negociaram, então, uma redução
de mais de uma hora do filme e resolveu-se lançá-lo em duas partes, cada uma
com cerca de duas horas. Como a história
do filme é contada em oito capítulos, essas partes foram chamadas de volumes I
e II, uma linguagem mais adaptada aos
livros do que ao cinema. O filme tem
muito a dizer, é importante, mas de modo algum se justificaria tamanha
duração. Quatro horas divididas em dois
filmes já foi demais.
O que é “Ninfomaníaca”? É a narrativa da vida sexual de uma mulher:
Joe (Charlotte Gainsbourg), da infância aos 50 anos de idade. Ela vai contando o que viveu, como
experimentou e sentiu uma história marcada pela dependência em relação ao sexo,
que envolve uma tal gama de vivências das variações sexuais que nada parece ter
ficado de fora.
Do desejo exacerbado à incapacidade de tocar uma vida
minimamente estruturada, como conviver com marido e filho, à busca do prazer
pela violência, que confunde prazer e dor, passando pelos mais diversos tipos
de homens e chegando ao relacionamento homossexual, tudo coube no caldeirão
libidinoso de Joe. Assim como coube
também o uso “profissional” desse conhecimento sexual.
Como consta do poster do filme: Esqueça o amor. É de sexo
que se trata. Ou da ausência dele, da
busca de uma solução assexuada, tentada primeiro numa terapia comportamental do
tipo dos dependentes anônimos, chegando a uma elaboração mais profunda, que se
fará ao longo dos dois filmes, no relato de Joe a Seligman (Stellan
Skarsgard). Ele, que a recolheu
machucada da rua, é o seu ouvinte, que, apesar de se surpreender, não a
julga. Como é solteiro, celibatário e intelectual,
pontua o relato dela com informações históricas, culturais ou religiosas, o que
acaba conferindo um verniz sofisticado a um filme que mostra cenas explícitas
de sexo, nudez, closes de órgãos genitais e violência contra o corpo, em busca
de orgasmo. Foi a forma que o diretor
encontrou para provocar dúvidas, levantar questões pertinentes sobre as
pessoas, o desejo, a traição e a maldade humanas. Faz isso de forma densa e séria, enquanto
obriga o espectador a partilhar de um bom número de cenas desagradáveis e uma
apresentação problemática e complicada da sexualidade.
É certo que a sexualidade humana e a sociedade são
fontes de angústia, tormento e de uma busca incessante de satisfação, muitas
vezes inalcançável. São também fontes
generosas de prazer e geradoras de vida, mas não é fácil estar em paz com elas.
A ninfomania não é, simplesmente, uma patologia, é
uma revelação da falta, da frustração, da impossibilidade de alcançar
equilíbrio nas relações amorosas. Ou
seria melhor dizer relações libidinais?
Uma sexualidade selvagem não é sinal de preenchimento, muito ao
contrário, é desespero. O incontrolável
é o que não pode se aquietar.
Nunca.
Com lucidez e tirocínio, o filme envereda pelos
tortuosos caminhos da mente e do corpo de Joe, que se crê má e tenta nos
convencer disso. Uma mulher que inverte
em suas atitudes as expectativas de gênero, ela não quer vínculos, só
sexo. Tentando recuperar algo perdido lá
atrás. Algo que seria capaz de produzir
levitação, coisa de louco. Ou que Seligman
vai explicar em sua erudição aparentemente infinita. Mas não será ela uma vítima? E se for, de quê?
O olhar cético e cínico de Lars von Trier marcará sua
protagonista e não deixará dúvidas de que a crueldade e a maldade são
características inescapáveis da espécie humana.
Não é preciso assinar em baixo dessa conceituação para perceber que o
que o cineasta mostra aqui tem muita relevância e nos obriga a pensar sobre
aspectos significativos da vida que não se resumem ao enredo marcadamente
sexual da história.
A autência terapia que Joe realiza ao longo dos dois
filmes se concentra num dia, noite e madrugada, em que se dá a elaboração de
uma vida. Ficaremos sabendo de tudo o
que ela viveu. Mas de Seligman não
saberemos quase nada, o ouvinte intelectual é um pescador, parece um padre, da
igreja oriental, como ele mesmo explica no filme. Tem um quê de psicólogo pelo que propicia à
protagonista. Mas, de algum modo, se
revelará ao final da película. Nada
impediria, contudo, que seu personagem pudesse ser mais definido, ao longo do
filme.
Se o espectador é desafiado por “Ninfomania”, o que
dizer do elenco de atores e atrizes que se entregam literalmente, de corpo e
alma, a uma filmagem que beira o constrangedor?
Não só os dois protagonistas, Charlotte Gainsbourg e Stellan Skarsgard,
brilham, mas todos têm atuações à altura das exigências de seus papéis. E alguns deles, inclusive os de menor
expressão, pedem enorme empenho e dedicação, além de predicados geralmente mais
afeitos aos produtos pornográficos.
“Ninfomania” não é diferente, como se vê, de outros
trabalhos do diretor, que dividem a plateia ao meio. Será repugnante para muitos, altamente
estimulante e reflexivo, para outros tantos.
Eu confesso que gostei, mais do que poderia esperar. Relevei os exageros e a extensa duração do
filme, porque os acertos, desta vez, foram bem maiores do que os equívocos.
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