terça-feira, 11 de março de 2014

NINFOMANÍACA


 Antonio Carlos Egypto





NINFOMANÍACA, volumes I e II (Nimphomaniac). Dinamarca, 2013.  Direção e roteiro: Lars von Trier.  Com Charlotte Gainsbourg, Stellan Skarsgard, Stacy Martin, Shia La Beouf, Christian Slater, Jamie Bell, Uma Thurman, Willem Dafoe, Mia Goth, Sophie Kennedy Clark.  Vol. I, 110 min.  Vol. II, 130 min.


O diretor dinamarquês Lars von Trier tem, no cinema, uma trajetória marcada pela polêmica e por espertos apelos de marketing.  Com ele, a tendência é cair no tudo ou nada, ou a gente ama ou detesta o que ele faz.  É difícil buscar uma avaliação equilibrada, até porque as coisas que ele diz e faz fora da tela costumam ser um tanto despropositadas, sem medida. Mas deixemos um pouco a figura do cineasta de lado e vamos ao filme.

“Ninfomaníaca” tinha, originalmente, mais de cinco horas de duração, algo muito pouco viável, comercialmente.  Os exibidores negociaram, então, uma redução de mais de uma hora do filme e resolveu-se lançá-lo em duas partes, cada uma com cerca de duas horas.  Como a história do filme é contada em oito capítulos, essas partes foram chamadas de volumes I e II,  uma linguagem mais adaptada aos livros do que ao cinema.  O filme tem muito a dizer, é importante, mas de modo algum se justificaria tamanha duração.  Quatro horas divididas em dois filmes já foi demais.




O que é “Ninfomaníaca”?  É a narrativa da vida sexual de uma mulher: Joe (Charlotte Gainsbourg), da infância aos 50 anos de idade.  Ela vai contando o que viveu, como experimentou e sentiu uma história marcada pela dependência em relação ao sexo, que envolve uma tal gama de vivências das variações sexuais que nada parece ter ficado de fora.

Do desejo exacerbado à incapacidade de tocar uma vida minimamente estruturada, como conviver com marido e filho, à busca do prazer pela violência, que confunde prazer e dor, passando pelos mais diversos tipos de homens e chegando ao relacionamento homossexual, tudo coube no caldeirão libidinoso de Joe.  Assim como coube também o uso “profissional” desse conhecimento sexual.




Como consta do poster do filme: Esqueça o amor.  É de sexo que se trata.  Ou da ausência dele, da busca de uma solução assexuada, tentada primeiro numa terapia comportamental do tipo dos dependentes anônimos, chegando a uma elaboração mais profunda, que se fará ao longo dos dois filmes, no relato de Joe a Seligman (Stellan Skarsgard).  Ele, que a recolheu machucada da rua, é o seu ouvinte, que, apesar de se surpreender, não a julga.  Como é solteiro, celibatário e intelectual, pontua o relato dela com informações históricas, culturais ou religiosas, o que acaba conferindo um verniz sofisticado a um filme que mostra cenas explícitas de sexo, nudez, closes de órgãos genitais e violência contra o corpo, em busca de orgasmo.  Foi a forma que o diretor encontrou para provocar dúvidas, levantar questões pertinentes sobre as pessoas, o desejo, a traição e a maldade humanas.  Faz isso de forma densa e séria, enquanto obriga o espectador a partilhar de um bom número de cenas desagradáveis e uma apresentação problemática e complicada da sexualidade.



É certo que a sexualidade humana e a sociedade são fontes de angústia, tormento e de uma busca incessante de satisfação, muitas vezes inalcançável.  São também fontes generosas de prazer e geradoras de vida, mas não é fácil estar em paz com elas.

A ninfomania não é, simplesmente, uma patologia, é uma revelação da falta, da frustração, da impossibilidade de alcançar equilíbrio nas relações amorosas.  Ou seria melhor dizer relações libidinais?  Uma sexualidade selvagem não é sinal de preenchimento, muito ao contrário, é desespero.  O incontrolável é o que não pode se aquietar.  Nunca. 



Com lucidez e tirocínio, o filme envereda pelos tortuosos caminhos da mente e do corpo de Joe, que se crê má e tenta nos convencer disso.  Uma mulher que inverte em suas atitudes as expectativas de gênero, ela não quer vínculos, só sexo.  Tentando recuperar algo perdido lá atrás.  Algo que seria capaz de produzir levitação, coisa de louco.  Ou que Seligman vai explicar em sua erudição aparentemente infinita.  Mas não será ela uma vítima?  E se for, de quê?

O olhar cético e cínico de Lars von Trier marcará sua protagonista e não deixará dúvidas de que a crueldade e a maldade são características inescapáveis da espécie humana.  Não é preciso assinar em baixo dessa conceituação para perceber que o que o cineasta mostra aqui tem muita relevância e nos obriga a pensar sobre aspectos significativos da vida que não se resumem ao enredo marcadamente sexual da história.



A autência terapia que Joe realiza ao longo dos dois filmes se concentra num dia, noite e madrugada, em que se dá a elaboração de uma vida.  Ficaremos sabendo de tudo o que ela viveu.  Mas de Seligman não saberemos quase nada, o ouvinte intelectual é um pescador, parece um padre, da igreja oriental, como ele mesmo explica no filme.  Tem um quê de psicólogo pelo que propicia à protagonista.  Mas, de algum modo, se revelará ao final da película.  Nada impediria, contudo, que seu personagem pudesse ser mais definido, ao longo do filme.

Se o espectador é desafiado por “Ninfomania”, o que dizer do elenco de atores e atrizes que se entregam literalmente, de corpo e alma, a uma filmagem que beira o constrangedor?  Não só os dois protagonistas, Charlotte Gainsbourg e Stellan Skarsgard, brilham, mas todos têm atuações à altura das exigências de seus papéis.  E alguns deles, inclusive os de menor expressão, pedem enorme empenho e dedicação, além de predicados geralmente mais afeitos aos produtos pornográficos.

“Ninfomania” não é diferente, como se vê, de outros trabalhos do diretor, que dividem a plateia ao meio.  Será repugnante para muitos, altamente estimulante e reflexivo, para outros tantos.  Eu confesso que gostei, mais do que poderia esperar.  Relevei os exageros e a extensa duração do filme, porque os acertos, desta vez, foram bem maiores do que os equívocos.



Nenhum comentário:

Postar um comentário