Antonio Carlos Egypto
ALÉM DAS MONTANHAS (Dupã Dealuri). Romênia,
2012. Direção e roteiro: Cristian
Mungiu. Com Cosmina Stratan, Cristina
Flutur, Valeriu Andriuta, Dana Tapalaga.
155 min.
O diretor romeno Cristian Mungiu venceu a Palma de
Ouro de Cannes, em 2007, com seu segundo longa-metragem, “4 Meses, 3 Semanas e
2 Dias”, o melhor filme já feito sobre a questão do aborto na ilegalidade. Ele focalizava o período opressor de
Ceausescu como ambiente, mas acabou fazendo um filme universal. Dá conta da questão na sua complexidade em
qualquer contexto de repressão. Trabalho
brilhante.
Em 2009, coordenou um filme de episódios, dirigindo
um deles, uma comédia que desmoraliza o totalitarismo: “Contos da Era Dourada”
(veja crítica no cinema com recheio – outubro de 2010 ).
Seu novo trabalho é “Além das Montanhas”, também
premiado em Cannes como o melhor roteiro, além do prêmio duplo de atriz para as
duas protagonistas do filme. Mungiu fez
o roteiro, produziu e dirigiu “Além das Montanhas”, tomando por base o que está
sendo chamado de romances de não-ficção,
escritos por Tatiana Niculescu Bran. Ela
é jornalista da BBC de Bucareste e escreveu dois romances a partir de incidente
ocorrido em 2005, no monastério de Tanacu, na Moldávia romena e de um
julgamento que se seguiu aos fatos, em 2007.
O filme, portanto, parte dos romances que se valeram
dos fatos jornalísticos. Mas o roteiro é
uma recriação ficcional, que procurou não se prender somente ao que aconteceu,
mas acrescentou elementos que seriam pertinentes à situação, para gerar novos
questionamentos. A história é
impressionante e filmada da maneira mais intensa e profunda possível. Vamos apenas situá-la, para que se possa
saber do que se trata.
Duas amigas: Alina (Cristina Flutur) e Voichita
(Cosmina Stratan). Alina vem da
Alemanha, onde estava vivendo, em busca de Voichita, a única pessoa a quem amou
na vida e por quem foi amada. Só que
Voichita recolheu-se a um convento isolado nas montanhas e agora ama Deus acima
de todas as coisas. E está disposta a
qualquer sacrifício por Ele. Com um
concorrente assim, Alina perde o chão e as estribeiras. Será acolhida como visitante no convento,
onde tudo acontecerá.
De que amor estamos mesmo falando? O que significa o livre arbítrio na vida das
pessoas? Será a indiferença um mal maior
do que a própria intolerância? O que é
pecado? Que papel pode ter a fé, o
fanatismo, na produção de enormes erros cometidos em seu nome?
Bem e mal, afinal, são coisas relativas. Em princípio, ninguém agiria visando ao mal
em si. Talvez o seu bem, em detrimento
de outros, mas não o próprio mal. E,
paradoxalmente, a bondade e a crença podem ser altamente destrutivas. O que a experiência de vida e a religião têm
a oferecer diante de momentos de muito sofrimento? E como lidar com coisas demoníacas que podem
acometer as pessoas? A doença pode estar
na mente, no desejo não realizado? Pode
ser sobrenatural a sua origem?
São inúmeros os dilemas morais colocados pelo filme, que
nos fazem refletir calmamente sobre tudo, sem julgar, sem tomar partido,
revelando, mas deixando sempre a dúvida.
Cristian Mungiu constrói uma narrativa em que os
fatos, embora graves, importam menos do que a compreensão de cada aspecto
daquela vida, o que se experimenta, o que se pensa e, sobretudo, o que se sente
a cada passo. Penetramos no convento,
naquela montanha gelada, na pobreza da vida monástica, no desejo das criaturas,
nas convicções do padre e da madre superiora, e também nas suas hesitações, em
cada religiosa que presencia e participa de tudo. Conhecemos as vestes, a comida, os ambientes,
os hábitos. E, porque vivenciamos tudo
isso, o que se conta faz tanto sentido e chega tão fundo.
Cristian Mungiu |
Mais uma vez, estamos numa história romena da atualidade,
contada por uma jornalista/escritora romena, filmada por um cineasta romeno,
numa produção do país, com atores locais.
As duas atrizes principais, premiadas em Cannes, são da cidade natal do
diretor, Iasi. E o alcance desse
trabalho é universal. O filme é
envolvente, embora de ritmo lento, como a vida desse convento, antes da
correria que se formará diante dos fatos narrados. Quem não resistir à sua proposta e se entregar
ao sentimento e à reflexão que o filme apresenta, sairá gratificado, qualquer
que seja o seu posicionamento diante de Deus.
Obras de arte consistentes não fazem proselitismo. É esse o caso aqui.
“Além das Montanhas” foi lançado na 36ª. Mostra
Internacional de Cinema de São Paulo, sendo um dos maiores destaques desse
Festival.
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