quinta-feira, 15 de maio de 2008

O ÔNIBUS DO PADILHA

Antonio Carlos Egypto


ÔNIBUS 174
ÔNIBUS 174, Brasil, 2002. Direção, Roteiro e Produção: José Padilha. Fotografia: Cézar Moraes. Montagem: Felipe Lacerda. Documentário, 133 min.

No documentário Ônibus 174, de 2002, José Padilha reconstrói um assalto frustrado que se transformou no seqüestro de um ônibus de passageiros no Rio de Janeiro, em 12 de junho de 2000. Um episódio chocante que ganhou grande dimensão, em função das mortes de uma passageira, a professora Geisa Gonçalves, e a do próprio seqüestrador, pelo Batalhão de Operações Policiais Especiais (o BOPE) da Polícia Militar do Rio, que será em 2007 o tema de Tropa de Elite, uma espécie de “um outro lado da história”.

O episódio teve também grande repercussão porque as emissoras de televisão o transmitiram, quase que integralmente, em tempo real. Foram mais de quatro horas de agonia, deixando estupefatos os telespectadores. Medo, revolta, indignação contra as autoridades públicas e contra os “marginais” foram os ingredientes desse fato “policial” de relevo. Um dia, ou uma tarde, marcados pelo suspense, e um desfecho que alivia, mas não é feliz, pelas mortes, sobretudo da mulher inocente, já prenunciavam que também se tratava de coisa de cinema.

Enquanto reportagem televisiva, não havia como entender o que se passava. Quem era o seqüestrador? O que ele queria? Por que seqüestrou um ônibus de passageiros? Por que ele não fazia exigências? Por que anunciava que ia matar reféns? Por que mostrava a cara para as câmeras de TV? Afinal, o que é que estava acontecendo?

Sem as informações necessárias, não se pode concluir nada de relevante, não é possível compreender. Nem a mídia tem grande interesse nisso, nessas horas o que importa é espetacularizar a notícia para garantir a audiência e, quanto maior a exploração emocional do fato, melhor o resultado. Produz-se assim comoção social, não reflexão.

José Padilha, em seu brilhante documentário, foi às fontes de informação, realizou a pesquisa necessária para dissecar toda a história e trabalhou um colosso de imagens produzidas no momento dos fatos pela TV (cerca de 70 horas gravadas pelas TV Globo, Record e Bandeirantes), e fez um dos mais impressionantes e didáticos relatos para compreender as raízes da violência urbana.

Esse relato ganhou uma força muito grande pelo material visual bruto de que ele acabou dispondo, associado aos dados e depoimentos coletados e ao uso de imagens panorâmicas do Rio de Janeiro, seu mar, suas imagens de cartão postal, sua aglomeração urbana, ruas e favelas que denotam desde as primeiras cenas que é de uma situação coletiva que se trata, que esse caso é simbólico, sua particularidade revelando seu caráter geral, “universal”.

O seqüestrador do ônibus 174, soube-se depois, chamava-se Sandro do Nascimento. E quem era ele? As câmeras de José Padilha nos revelam sua trágica e representativa história pessoal. Aos 9 anos de idade, sem pai, vê sua mãe ser assassinada barbaramente, torna-se menino de rua, vive uma vida de invisibilidade, como bem define o antropólogo Luís Eduardo Soares, aprende a roubar e todos os macetes para sobreviver numa realidade que lhe é hostil, sem acesso nenhum à educação ou à saúde públicas.

Na marginalidade, ainda encontra seus parceiros de convivência, até que a chacina dos meninos de rua da Candelária, em 1993, o atinge em cheio. Sobrevive a ela e ao trabalho “sócio-educativo” das Febens da vida, onde os maus tratos e a violência fazem parte do cotidiano de todos. Já adulto, é preso e trancafiado em condições desumanas, até encontra algum apoio em uma tia e em uma mulher que ele “adota” como mãe, mas já não consegue mais mudar o seu destino.
O que se poderia esperar de Sandro do Nascimento? Ele mesmo explicita para as câmeras de TV que vai “matar geral” porque não tem nada a perder. Se naquele momento já se soubesse quem ele era seria muito fácil de entender. Mas já era perfeitamente possível intuir. O que o Ônibus 174 mostra claramente é que o que aconteceu é não só absolutamente previsível, mas esperado. A surpresa e a complexidade da situação que paralisou o país e emocionou a todos por horas naquele junho de 2000 se torna cristalina, evidente, por um trabalho cinematográfico que vai a fundo na questão.

Como diz Padilha em entrevista ao site do cineclick: “E não dá para entender nada de um dia para o outro, não dá para compreender algo tão complexo quanto o que aconteceu no ônibus 174, da noite para o dia. O universo tem uma maneira estranha de ser complexo em quase todos os seus aspectos”. Mas uma investigação bem feita revela que o que parecia misterioso estava lá muito evidente. Uma sociedade que produz, abandona e abomina os Sandros só pode gerar mais e mais violência, urbana especialmente, porque é nas grandes cidades que a invisibilidade, a batalha pela sobrevivência e a fome são mais cruéis e onde a solidariedade é mais escassa. De quem é a culpa? Da passividade e da pouca cobrança da sociedade, mas principalmente das pessoas que têm a caneta na mão, segundo Padilha.

Na mesma entrevista, ele diz ainda que não há correlação direta entre miséria e violência, porque os lugares mais miseráveis não são os mais violentos. O que importa mais, para ele, é a maneira como o Estado trata a questão dos meninos de rua e a maneira como lida com os presos. É assim que pequenos delinqüentes se tornam grandes criminosos. O caso de Sandro do Nascimento ilustra isso à perfeição, me parece. O descaso com os pobres e a má distribuição de renda são, porém, ingredientes importantíssimos, no sentido de detonar a crise da segurança pública e alimentá-la constantemente.

Segundo Neusa Barbosa, no cineweb, Padilha “assinou um filme que percorre sem meios tons as circunstâncias que conduziram ao final do episódio, olhando nos olhos de uma perversa estrutura social que fabrica incessantemente excluídos e vítimas”.

O desfecho trágico da situação naquele ônibus mostrou a pouca competência da elite da polícia militar carioca, o BOPE, para lidar com um seqüestro, que se tornou público. A partir daí o BOPE mudou seus rumos, incrementou e revisou treinamentos, criou novos métodos de negociação, abordagem, intimidação, invasão de locais e resgate de vítimas. Sofisticou seus métodos violentos de agir, enfim.

A respeito daquele desfecho, o major Ricardo Soares, oficial do BOPE que atuou na operação do ônibus 174, no Rio, declarou em uma palestra, em Porto Alegre, a outros policiais, segundo matéria da Folha de São Paulo de 10/11/2007, o seguinte, a respeito da morte de Sandro do Nascimento:

“Embarquei junto com o Sandro na viatura. Logicamente, eu vou ser sincero: entre ele e eu, vai ele, porque tenho muita vida pela frente, se Deus quiser. Então, de verdade, ele lutou muito conosco, dois camaradas, dois soldados estavam segurando as pernas dele, ele me mordeu, tentou se livrar do golpe e eu acabei apertando o pescoço dele, e aí ele desfaleceu. E eu não fiz questão realmente de ressuscitá-lo muito, não. Foi embora! A verdade é essa.”

A Anistia Internacional condenou as declarações, a assessoria do Governo do Estado do Rio diz ser frontalmente contra atos lesivos à lei e o próprio tenente-coronel Pinheiro Neto, comandante do BOPE, considerou a declaração infeliz, mas o policial foi julgado e inocentado por júri popular. Ações policiais violentas costumam ter respaldo popular.

Ônibus 174 traz depoimentos de um ex-capitão do BOPE, Rodrigo Pimentel, que havia sido de uma enorme lucidez no documentário Notícias de uma Guerra Particular, de João Moreira Salles. Ali ele mostrou como um policial se sente na guerra urbana travada contra o tráfico nas favelas dos morros cariocas. Aqui, suas análises sobre a ação da polícia, no caso do ônibus, ganham novamente espaço e ele será um dos roteiristas de Tropa de Elite. Luiz Eduardo Soares também colaborou no documentário de João Moreira Salles e escreveria depois, com André Batista, A Elite da Tropa, em trabalho paralelo à realização do filme com Padilha.

Assim, pode-se perceber a continuidade dos trabalhos de um grupo de realizadores preocupado em discutir a violência urbana que passa por Notícias de uma Guerra Particular, Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, para chegar ao Tropa de Elite, sem contar os subprodutos de menor relevância, ou feitos para a TV, como Cidade dos Homens.

Como se vê, José Padilha faz do cinema um meio de análise e reflexão sobre a realidade, e de provocação também, para colocar em evidência questões nacionais de grande relevo na atualidade, produzindo assim um cinema brasileiro fundamental e de urgência. Seus outros trabalhos como roteirista, produtor ou diretor de outros documentários, de valor similar, e a equipe que com ele atua nesse cinema de urgência, só confirmam que uma das vertentes mais sólidas do cinema brasileiro atual é a dos documentaristas. José Padilha e seu companheiro de trabalho, Marcos Prado, se inserem numa corrente que tem expoentes do calibre de um Eduardo Coutinho ou de João Moreira Salles, entre tantos outros.

Um comentário:

  1. Oi, Egypto
    Gostei muito da sua crítica ao filme do Padilha. Não assisti a ele, mas sim ao fato, como milhões de brasileirosna época, transmitido com muito sensacionalismo, levando os telespectadores à extrema emoção!O pior é que esse sensacionalismo aumentou e muito: veja o caso dos Nardone ou a novela Isabela! Que horror!Achei, também interessante, as informações que nos passou a respeito do fato de o Padilha pesquisar, pesquisar, para fazer o filme. Como você bem o disse, há milhares de Sandros que, marginalizados, violentados, nada têm a perder quando cometem atos como o descrito. E o pior, são as atitudes das pessoas que ainda condecoram o militar que apertou a garganta do rapaz, evando-o à morte. Pensa-se assim: um marginal a menos! Que tristeza! Parabéns! Você nos premiou com muitas reflexões.

    . Quanto ao filme Gritos e Sussurros, lembro-me que não gostei quando assisti na década de 70, talvez pela falta de entendimento da rica linguagem (ou ausência da verbal), acostumada com filmes de ação e muitas falas. Anos depois, entendendo um pouco mais de cinema, pude apreciar o filme com outros olhos. A sua crítica ajudou-me a compreendê-lo melhor ainda. Continue a escrever, ajudando-nos a entender, cada vez mais, essa arte maravilhosa que é o cinema.
    Um beijo, Deka

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