quinta-feira, 27 de outubro de 2011

A PELE QUE HABITO

Antonio Carlos Egypto





A PELE QUE HABITO (La Piel que Habito).  Espanha, 2011.  Direção: Pedro Almodóvar.  Roteiro de Pedro e Agustín Almodóvar.  Com Antonio Banderas, Elena Anaya, Jan Cornet, Marisa Paredes, Roberto Álamo.  120 min.


Sexualidade tem a ver com origem, identidade e desejo, além da reprodução.  Pode estar relacionada a poder, abuso, violência, e envolver vingança. 

Em “A pele que habito”, Almodóvar criou uma trama extraordinariamente bem urdida e surpreendente, que envolve todos os aspectos da sexualidade que acabei de apontar. Se ele sempre pautou suas histórias e personagens pelos mais variados aspectos da sexualidade, em especial da diversidade sexual, não é diferente aqui.  Mas ele amplia seu leque.

O roteiro dele e de seu irmão Agustín, também produtor do filme, foi baseado em “Mygale”, de Thierry Jonquet.  Mas, como sempre acontece quando ele faz adaptações de outros textos que não os seus, o material fica de tal modo almodovariano que as origens quase se perdem.  Assistindo ao filme, isso ficará mais do que claro, tenho certeza.  Mesmo a gente desconhecendo o texto de origem, como é o meu caso.

A trama incrível de que se compõe o filme, de que é bom se falar muito pouco, para não estragar o prazer de ninguém, parte de uma premissa de ficção científica. Dr. Robert Ledgard (Antonio Banderas), pesquisador médico e cirurgião plástico, faz experimentos com uma nova pele para o ser humano, sensível ao toque, mas protegida contra queimaduras e agressões, com base nas possibilidades da terapia celular.  É um profissional sem escrúpulos, que precisa de uma cúmplice e uma cobaia humana para seus experimentos.

A partir daí, o filme envereda pelo suspense, pelo terror, pelo drama, pela comédia.  O cinema de Almodóvar consegue transitar por praticamente todos os gêneros cinematográficos, subvertendo-os, como de costume. 

Trabalha com questões fundamentais, como a da identidade e a da vulnerabilidade, diante do avanço tecnológico.  E, também, da violabilidade da identidade, num mundo de câmeras em todos os cantos, e telões projetando tudo sobre tudo e todas as pessoas. Assim como em “Kika”, seu filme de 1993, um estupro é filmado e projetado, não mais precisando da mídia, da comunicação de massa, mas contando com os sofisticados equipamentos tecnológicos hoje disponíveis dentro de casa.O personagem do experimento tem sua vida toda controlada, durante todo o tempo, e observada por telões, mas algo sempre pode acontecer que acabe por romper esse controle todo.  É inevitável.






Há a questão dos caminhos sem volta, dos processos irreversíveis.  E também a da liberdade individual de escolha, elemento inalienável de qualquer plataforma liberal, seja no plano dos costumes, seja no do direito ou no da política.  E, é claro, o problema de até onde se pode chegar.  Qual é o limite?

O filme dá margem a um grande número de discussões, é profundo, mas não é intelectualizado.  É um filme que flui e desperta interesse o tempo inteiro, numa narrativa deliciosamente envolvente.  É dos melhores trabalhos do diretor, cuja obra autoral já é bastante extensa, a esta altura: 18 longas metragens, com alguns grandes sucessos de público, como “Mulheres à beira de um ataque de nervos”, de 1988, ou “Tudo sobre minha mãe”, de 1999.  Almodóvar faz um cinema popular de alta qualidade, criou um formato muito eficiente, que consegue abordar os temas mais complexos e inusitados com humor, poesia e grande capacidade de comunicação com o público.

Em “A pele que habito” sua mise-en-scène dispensa as cores fortes e quentes que costumam caracterizar o seu trabalho.  Prevalece o cinza no espaço do experimento, por exemplo.  As cores estão mais discretas em todo o filme.  Há também menos objetos em cena.  Mas não é por isso um filme soturno ou pesado, de modo algum.  O alto astral, os excessos, a diversão e a crítica corrosiva, às vezes exagerada, continuam lá.  E o humor, também.  Tudo que se espera do seu cinema está lá, e tem algo mais, que a maturidade lhe trouxe: um aprofundamento do enfoque.  Aqui envolvido em um estilo mais sóbrio, o que convém ao tema tratado.

A volta de Antonio Banderas ao cinema de Almodóvar, que o descobriu, se dá em grande estilo, mas não sem dificuldades.  O ator teve de encarar o papel de um personagem contido, cínico e brutal, mas sem sentimentos, uma espécie de psicopata manso e, ao mesmo tempo, refinado.  Muito diferente dos mocinhos e galãs heróicos que Hollywood tem oferecido a ele.  É bom vê-lo de volta a papéis densos e importantes.  Como grande ator que é, ele dá conta magnificamente do personagem do Dr. Robert.






Há Marisa Paredes, no papel da carcereira Marília.  Atriz habitual dos filmes de Almodóvar, o papel lhe cai como uma luva, mais uma vez.  Elena Anaya e Jan Cornet, muito bons, vivem papéis de destaque no filme.  Especialmente Elena, que atua intensamente e com uma entrega corporal muito grande.

Como sempre, podem-se apontar muitas referências cinematográficas a “A Pele que Habito”.  A mais óbvia é “Frankenstein”, filme de 1931, de James Whale, ou de muitos outros, como o “Frankenstein de Mary Shelley”, de Kenneth Branagh, de 1994.  Como a identidade é central, no filme de Almodóvar, é fatal lembrar “As três noites de Eva”, filme de Preston Sturges, de 1941, e de “Um corpo que cai”, do mestre Hitchcock, de 1958, com o duplo de Kim Novak.  Mas há muitas outras relações que podem ser encontradas.  É só ver o filme com atenção.  A história, no entanto, é original e inovadora.  Respira a século XXI.  O filme é uma preciosidade.


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