domingo, 8 de junho de 2008

O REALISMO ALEMÃO E A “CAIXA DE PANDORA”

Ed Anderson Mascarenhas

O expressionismo foi um movimento de vanguarda do final do século XIX que estava mais interessado na interiorização da obra artística do que na sua exteriorização, projetando na obra de arte uma reflexão individual e subjetiva. Anti-natural, anti-realista, onde não há subjetivismo, sendo caracterizado como extremamente pessimista e deformador de objetos ou detalhes destacando-os do conjunto. Ele existiu no cinema depois de atuar em todas as outras áreas, mas foi nesta onde ele melhor se instalou. Luiz Nazário em seu livro As Sombras Móveis destaca que “O termo expressionismo fora usado pelo crítico de arte Herwarth Walden para caracterizar toda arte oposta ao impressionismo. Mais tarde passou a definir toda a arte na qual a forma não nasce diretamente da realidade observada, mas de reações subjetivas à realidade”.
Convidado a dirigir o primeiro manifesto do expressionismo cinematográfico, Fritz Lang aceitou inicialmente o convite, desaprovando, porém a apresentação original de uma visão inteiramente expressionista do mundo, sugerindo modificar o desfecho. Lang acabou não dirigindo o filme, função assumida por Robert Wiene, mas sua sugestão foi mantida. O Gabinete do Doutor Caligari (1919) tornou-se um manifesto cinematográfico de tremendo impacto, graças a uma conjunção de elementos. O cinema expressionista alemão foi caracterizado com a presença destacada na decoração, iluminação e jogo de atores, tendo uma próspera produção iniciada com O Gabinete..., indo até 1926 com o seu declínio, apesar de alguns historiadores estenderem este período considerando o pré-guerra até a tomada de poder por Hitler em 1933.

Os filmes expressionistas apesar de terem vários gêneros e estilos tinham muitos elementos em comum ao expressar um sentimento de opressão e revolta em relação ao mundo com ênfase em elementos visuais trabalhados de forma a atingir o efeito de “choque”. Estes poderiam ser um personagem, uma interpretação, um tema , um cenário ou até mesmo todos eles, como em Caligari. O aspecto de “deformação” é deveras predominante.

Todos os elementos de cena são carregados de um sentido maior pertencente ao drama, tornando-se mais densos. As olheiras são marcantes neste cinema revelando um simbolismo (melancolia, estado da alma) bem como a utilização de máscaras brancas. A natureza é abolida e em seu lugar são utilizados cenários representativos. O herói expressionista enfrenta desarmado elementos obscuros (perigos invisíveis,ameaças impalpáveis).

Luiz Nazário em seu livro De Caligari a Lili Marlene: cinema alemão, descreve: “Paralelamente ao expressionismo, que nesta época já tem a sua linguagem plenamente desenvolvida, afirma-se a partir de 1924, com A Última Gargalhada, o chamado realismo alemão, com a técnica do `teatro de câmera`(kammerspiel), misturando conquistas expressionistas com formas consagradas do naturalismo, cuja temática centra-se na decadência do homem e da sociedade. (...) As paisagens imaginárias, os fenômenos paranormais, as olheiras filosóficas, os fenômenos sobrenaturais e delirantes do expressionismo são substituídos pelas locações exteriores, pela realidade nua e crua, pela análise científica da mente, pelo ‘socialismo branco’ e pela terapia eficiente: em Segredos de uma Alma(1926) de Pabst, o psicótico marido é curado pelo sábio psicanalista que o conduz a uma apoteose de normalidade`na última seqüência em que vemos o ex-impotente segurando um filho diante de um panorama de montanhas, ao lado da esposa querida.”.

Ainda em seu livro As Sombras Móveis, Nazário escreve “Aderindo à ideologia da Neue Sachlichkeitt (“Nova Subjetividade”) os artistas alemães passaram a ‘despertar” do pesadelo expressionista para espiar ‘a vida como ela é’. O austríaco G. W. Pabst realizou alguns dos filmes mais exemplares deste novo ‘realismo social’, pintando sere humanos como criaturas movidas por instintos primários, desde seu primeiro filme, Der Schatz (1923) sobre a cobiça humana pelo ouro”.

De fato, um dos maiores nomes desta fase responde pelo nome de George Wilhelm Pabst (1885-1967) que começou com ator em 1905 na Suíça e no Cinema em 1920 com produções de alta categoria nos cenários e atores. Pabst possuía uma direção política, não social. E tido como o lançador de Freud no cinema num filme científico que foi fracasso de público e crítica Tragédia de uma Alma. Mas, realizou obras-primas como O Tesouro (1923), A Rua das Lágrimas (1925), O Amor de Jeanne Ney (1927) e A Caixa de Pandora(1928). Esta última baseada em duas obras de Frank Wedekind e estrelada por Louise Brooks (1906-1985), que caracterizou uma interpretação espontânea em contraste com a artificialidade da época, é a obra tida como a sua consagração.

Em seu livro A Tela Demoníaca, Lotte H. Eisner afirma: “O caso de Pabst é extremamente curioso: trata-se de um diretor ao mesmo tempo espantoso e decepcionante. É de se perguntar como o autor de A Caixa de Pandora ou de A Ópera dos Três Vinténs pode fazer um filme tão sofrível quanto O Processo. (...) Pabst apresenta muitas contradições , alguns louvam a sua intuição, perspicácia,seu conhecimento perfeito dos fatores psicológicos e do subconsciente, que fazem com que se sirva da câmera como de um aparelho de raios-X. Há quem o considere um escrutador apaixonado da alma humana, que se deixa conduzir por suas descobertas; outros, como Pasinetti, vêm nele um observador guiado por cálculos frios”.

O fascínio de A Caixa de Pandora muito deve a Brooks que valorizou ao máximo a personagem diante da câmera eternizando a sua imagem erotizada desde o corte incomum de cabelo ao magnetismo da interpretação. No filme é denunciada a imagem da mulher como fonte de desagregação social acarretando a decadência masculina. Nele vê-se o prazer associado à morte.. Uma prostituta de luxo que se envolve com o filho de seu ex-gigolô e uma condessa lésbica numa sociedade alemã do final dos anos 20 .

Segundo Eisner em A Tela Demoníaca : “A Caixa de Pandora e Diário de uma Pecadora não nos mostram antes o milagre de Louise Brooks, cuja profunda capacidade de intuição é meramente passiva aos olhos do espectador ingênuo, mas que soube estimular ao extremo o talento de um diretor ademais desigual? A notável evolução de Pabst se verá reduzida, nestes filmes,ao encontro de uma atriz que bastava deixar se desnvolver na tela, sem que fosse necessário dirigí-la, e que realizava com sua simples presença a essência da obra de arte. Louise Brooks existe com uma insistência desconcertante, ela atravessa estes dois filmes sempre enigmadamente impassível. Sabemos hoje que Brooks é uma atriz espantosa, dotada de uma inteligência fora de série, e não somente uma criatura deslumbrante”..

Com o seu enfoque social e cunho freudiano Pabst rendeu-se ao realismo intimista precursor dos melodramas do cinema americano, condensa as duas peças de Wedekind protagonizadas por Lulu, precursoras do expressionismo no teatro. No filme é mantida a ambigüidade no comportamento de Lulu e a maleabilidade das figuras masculinas, que se colocam como vítimas dos poderes e caprichos da protagonista. Lulu é comparada ao mito grego de Pandora, a "insensata mulher" que abriu a caixa com todos os males do mundo. Revelando a ambigüidade de anjo e demônio.

Numa leitura conservadora o enredo de Pandora pode ser considerado politicamente incorreto, mas um fator a ser considerado a favor do maestream é a sutileza na linguagem cinematográfica. O erotismo acentuado da personagem título passa longe do lugar comum. Louise Brooks defende um olhar inocente e ao mesmo tempo lascivo nas cenas que provocam plena magnetização nos espectadores mais resistentes.. Enaltecendo a ambigüidade que compõe uma ambientação complexa .

A utilização de fumaça nos momentos de clímax e elementos figurativos para ilustrar determinada morte são características que conferem o charme e perenidade artística à obra. È interessante observar em uma das cenas a presença da sombra substituída pela silhueta de Jack, o estripador, diante do cartaz que enumera seus crimes. Os planos do filme são longos, com a reação psíquica dos personagens externadas e enquadramentos aproximados e entrecortados. Segundo Eisner, “Para resumir os componentes da técnica de Pabst: ele procura “ângulos psicológicos ou dramáticos” que revelem, ao primeiro olhar, o caráter, as relações psíquicas das personagens, uma situação, a tensão de uma atmosfera, o momento trágico. Quase sempre prefere este tipo de tomada à técnica de Mornau, que se delicia em acompanhar longamente uma cena, com o auxílio de uma câmera que se move por deslizamento. Para Pabst, pois, é finalmente a montagem que constrói a ação”.

Pabst adotará em suas últimas produções as análises psicológicas bastantes contrárias aos conceitos expressionistas, com teor naturalista. Para ele o rosto de um ator torna-se uma paisagem que a câmera explora minuciosamente. O cineasta segue em 1932 para a França e em 1934 para Hollywood, iniciando sua carreira internacional, embora sem o brilho alcançado no período pré-guerra alemão. Este diretor alemão deixou para a história do cinema mundial uma obra ímpar no quesito de simbologia visual, sedução e sutileza. Eis alguns segredos memoráveis da sua “Caixa”.


Assisti, há quase 20 anos, a uma montagem do texto A Caixa de Pandora, dirigida por Márcio Meireles, no Instituto Goethe da Bahia e fiquei magnetizado, na minha inocência de adolescente iniciando-se no mundo das Artes Cênicas, pela sedução do texto e interpretação dos atores, mas precisamente da atriz que fazia a Lulu, Maria Eugenia Millet. Lembro que, ao chegar em casa, voltei a ler o programa do espetáculo, mirei as fotos dos atores e fui dormir intrigado com o universo que havia visitado. O espetáculo havia me vencido e tornou-se algo que me marcou. Anos mais tarde, já adulto, formado como bacharel em Artes Cênicas, assisti ao filme de Pabst e adquiri nova cumplicidade com a imagem de Louise Brooks e as artimanhas do diretor, com seus aspectos dramáticos e psicológicos e precisas noções de sombreamentos, evocando possibilidades únicas de sensações em sua película.

Hoje, ao iniciar o curso de Critica de Cinema da FAAP, com as aulas do professor Máximo, abordamos o expressionismo. Então, eu não poderia escolher outro fato a discorrer do que o cinema alemão e a fase em que se encontra guardada a “Caixa de Pandora”. O conteúdo do filme muito me seduziu, talvez pela minha formação teatral, talvez pela minha memória que relembra aquela noite de vinte anos atrás em que eu, jovem, muito jovem, tive o privilégio de obter contato com a obra de Wedekind. Só uma coisa me causa remorso – não ter evitado, que Lulu fosse assassinada por Jack, o estripador. Ela poderia estar, ainda hoje, ensinando-me estratégias de sedução, em algum café de São Paulo, onde me encontro em certas noites de insônia, e cuidaríamos com sucesso da sua preciosa caixa.

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