sábado, 31 de outubro de 2020

DESTAQUES DA #44 MOSTRA

        Antonio Carlos Egypto

 

Entre os quase 200 filmes que fazem parte da 44ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo on line, acessados pelo site www.mostra.org, destaco aqui alguns importantes, que merecem a atenção dos cinéfilos, ainda que possam gerar reações bem diversas, de admiração ou desagrado, em função do estilo dos cineastas.

 



NADANDO ATÉ O MAR SE TORNAR AZUL é um dos grandes filmes da Mostra.  Jia Zhang-ke, um dos mais importantes cineastas em atuação no mundo, nos faz conhecer melhor a China, partindo da sua aldeia, como se diz.  Ele retornou à sua província para acompanhar um evento literário que aconteceu por lá em 2019 e reuniu escritores importantes, que trataram do tema de suas próprias origens.  Valeu-se das memórias de um grande escritor falecido, Ma Feng, e colheu testemunhos de três escritores de gerações diferentes, Jia Pingwa, Yu Hua e Liang Hong.  Explorou nessas memórias a vida, a opção pela literatura, a atuação e as questões políticas e econômicas que envolveram esse caminho, inclusive as de ordem familiar.  Por meio dessas memórias, emerge todo um país imenso, diverso e em constante mudança.  Percebe-se não só a sociedade em transformação, mas também a influência política intensa que acompanhou a atuação de cada um deles, moldando suas carreiras.  Da China pobre e rural, passando pela revolução cultural de Mao Tsé Tung, à China tecnológica e consumista dos dias de hoje, o autoritarismo mostra sua face opressiva de muitas maneiras, gerando sofrimento e produzindo criatividade. São figuras vencedoras as que falam no filme, mostrando que, por mais difícil que seja, sempre há caminhos para alcançar a sabedoria e realizar potencialidades.  Um documentário de grande alcance, que extrai de boas conversas, complementadas por imagens cuidadosamente produzidas ou recolhidas, um mundo inteiro a revelar.  Se você tem interesse em conhecer melhor a China, para além dos estereótipos, não perca esse filme. 111 minutos.

 




PAI, da Sérvia, dirigido por Srdan Golubovic, trata de uma história pungente que tem por base o desemprego, crescente no mundo.  O filme tem a força moral da solidariedade generosa dirigida aos despossuídos.  Ao contrário da atuação das autoridades que culpam o trabalhador por não ter emprego constante, não ter dinheiro para cuidar da casa e dos filhos, viver no limite da fome.  Até os vizinhos não conseguem apoiá-lo.  Aqui no Brasil vemos com frequência como a pobreza se apoia e se organiza para sobreviver melhor.  Ali, não é o que acontece, o individualismo é que dá as cartas.  O personagem Nikola, após um gesto desesperado de sua mulher, perde a guarda dos filhos, por não ter as condições adequadas para educá-los.  Mas não se conforma, luta com o que pode, principalmente ao descobrir que, por trás da insensibilidade das autoridades locais, há um esquema de corrupção.  Vai a pé até Belgrado, em busca de apresentar um recurso para reaver as crianças.  Mostra com seu sacrifício o que é ser verdadeiramente pai, na base do amor e do desespero, nas condições mais adversas.  A identificação com o personagem e a situação vivida por ele parecem inevitáveis, pelo sentido humano e também pelo desempenho contido e equilibrado do ator que interpreta Nikola.  Impossível sair indiferente de um filme como esse que, numa narrativa tradicional e até didática, mostra as feridas abertas que estão pelo mundo.  Um dos melhores da Mostra, sem dúvida.  120 minutos.

 




DIAS, do diretor malaio Tsai Ming-Liang, é um filme pungente sobre a solidão, mostrada por meio do cotidiano de dois homens, de classes sociais diferentes, que um dia se encontram num quarto de hotel.  Vemos, por exemplo, Kang numa casa grande, olhando o vento e a chuva balançando as árvores pelo reflexo da janela, por um bom tempo, em que aparentemente nada acontece.  Mas a água, um símbolo permanente nas cenas do cineasta, invade o interior.  De outro, vemos Non, lavando hortaliças e preparando comida no seu pequeno apartamento.  Ele procura manter uma chama fraca acesa.  O elemento fogo marcando sua presença e exigindo atenção.  O mal-estar está no corpo de Kang, que se submete a um tratamento do tipo ventosa, mas com fios e coisas que queimam sobre as suas costas, por cima de placas de madeira ou alumínio.  Quase tudo se passa entre quatro paredes, o ambiente externo aparece quando se caminha pela rua, em meio às pessoas, ao movimento urbano, o que reafirma a solidão no coletivo.  Não há contato.  Um contato se dará de forma física e afetiva entre os dois, num encontro homoerótico, em que os cuidados com o corpo são mostrados numa massagem prolongada.  Uma caixinha de música é um presente a quem dedicou tal atenção ao corpo do outro.  Enfim, há um conjunto de situações que transmitem sensações, sentimentos, nos dão tempo de ver até nuvens se deslocando lentamente, e pensar/experimentar o que se vê.  E também o que não se vê.  O filme não tem diálogos e, se algo é dito no burburinho da rua, não importa.  Durante duas horas, é um chamado à contemplação do mundo.  Quem é ansioso ou se prende ao enredo dos filmes, certamente não aguentará.  É preciso, antes de mais nada, se dispor a parar para ver e ouvir os sons, perceber as pessoas e sua solidão no mundo contemporâneo, tão cheio de gente.  Quem se dispuser a isso, perceberá que está diante de uma pérola cinematográfica.

 




GÊNERO, PAN, de Lav Diaz, das Filipinas, é um filme realizado em preto e branco, numa ilha mitológica, a de Hugaw.  Tudo começa a partir de uma mina de ouro em que, claramente, trabalhadores são explorados, fazendo trabalho pesado, em troca de um salário mínimo e incerto, além de restrito a alguns períodos do ano.  Para retornar de um desses períodos, três mineradores revolvem viajar pela selva da ilha, de volta à cidade, para reduzir gastos.  Essa viagem trará à cena mitos e crenças, como o do cavalo negro no rio, que traz a morte.  E a morte virá em forma de assassinato, gerando uma outra narrativa que se desloca para o desvendar do crime e suas consequências.  Histórias enterradas ou esquecidas vêm à tona e uma estranheza nas relações marca as ações.  Lav Diaz é conhecido por realizar filmes monumentalmente longos, com duração de até cinco ou sete horas, inviáveis para exibição sem fraciona-los. Neste caso, não, a narrativa coube em 157 minutos, em que pesem a mudança de rumo e de enfoque que acontece.  A filmagem é muito bonita e expressiva, ao mostrar tanto os personagens como a floresta e a ilha misteriosa.  Há algo hipnotizante no ar.  Vale a pena embarcar nessa aventura pouco convencional desse premiado diretor filipino. 

@mostrasp





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