sábado, 10 de novembro de 2018

COMENTANDO OS PREMIADOS DA 42ª. MOSTRA


Antonio Carlos Egypto

A 42ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, de 2018, acabou, em suas sessões regulares, em 31 de outubro.  Houve mais uma semana de repescagem, que se encerrou em 07 de novembro.  Foi preciso chegar à última sessão da repescagem para que eu conseguisse ver todos os filmes premiados do evento.  Quase.  Ainda acabou faltando um: o brasileiro SÓCRATES (Menção Honrosa do Júri Internacional).  E isso acontece mesmo eu tendo conseguido ver mais de 60 filmes no conjunto do evento.  Só um desses premiados entrou na minha lista dos dez melhores, mas reconheço em todos méritos evidentes para terem recebido o prêmio que lhes coube.


NUESTRO TIEMPO

NUESTRO TIEMPO, do México, prêmio da Crítica para melhor filme estrangeiro, é o que consta também na minha lista dos dez mais.  É um trabalho do diretor mexicano Carlos Reygadas (do belíssimo “Luz Silenciosa”, de 2007).  Um filme moderno, tanto na concepção quanto na temática.  Há uma trama central que aborda os novos conceitos éticos, morais e comportamentais, que nos colocamos neste nosso tempo de permanente mutação.  O curioso é que o contexto em que isso é colocado é tradicional: uma fazenda de gado, em que se vive em pleno campo, cercado de animais, se deslocando de carro ou a cavalo, mas com a presença indispensável dos celulares e do controle tecnológico que eles permitem às pessoas.  Várias sequências, todas muito bem construídas e impactantes, entram como apêndice, contraponto, comentário em relação à questão central.  Cada um pode interpretar como lhe parecer melhor.  Há força em todas elas, nas crianças que brincam e interagem intensamente umas com as outras.  Nos jovens que se relacionam fortemente, de forma amigável, amorosa, mas também bastante competitiva.  Nos touros, símbolos da fazenda, que se atracam, se enfrentam, com muita força.  Compreendemos que temos ali um universo marcado pela intensidade de movimentos e sentimentos.  O homem moderno se rege por novos padrões, mas o que vive internamente continua sendo marcado por suas vulnerabilidades.  Há a dominação, a manipulação, a perda de controle marcada pelo ciúme, pelo medo do abandono e da solidão, pela inveja e pelo desejo de ser genuinamente amado.  Questões ancestrais que têm de ser retrabalhadas no nosso tempo.  Mas como?  A que custo?  O filme nos coloca essa questão com belas sequências e desempenhos marcantes do elenco, de forma muito instigante.

O prêmio da Crítica para o melhor filme brasileiro da Mostra foi para TODAS AS CANÇÕES DE AMOR, de Joana Mariani.  De fato, o filme é muito charmoso, ao mostrar dois casais jovens, de classe média, que têm em comum um apartamento, onde residem em tempos diferentes, ou seja, um após o outro, e uma fita cassete gravada com as canções de amor, não todas, mas muitas.  A seleção musical ilustra a vida amorosa do casal Clarice e Daniel, revisitada por Ana e Chico, em sua própria vida amorosa.  Ela, tentando fazer literatura a partir da fita cassete das canções e do apartamento.  Um bom roteiro e uma ótima seleção musical de Maria Gadú, com direito a uma participação especial de Gilberto Gil, cantando Drão.  O filme já entrou em cartaz nos cinemas.



LAS SANDINISTAS


Dois prêmios foram conquistados por LAS SANDINISTAS, o troféu Bandeira Paulista, para novos diretores, e o prêmio do público, para melhor documentário.  O filme de Jenny Murray é brilhante, ao retratar o processo revolucionário que aconteceu na Nicarágua, em 1979.  A chamada Revolução Sandinista contou com a participação ativa, decisiva e na primeira linha, das mulheres.  Algumas delas, que se destacaram, estão no filme.  O problema é que elas foram perdendo a batalha da história, do registro de seus feitos, a do esquecimento.  E mesmo de seu pioneirismo ao implantar programas sociais, educacionais, de saúde, após a conquista do poder.  O machismo, que vigorava tradicionalmente na sociedade nicaraguense, se entranhou também no tecido revolucionário e no governo de Daniel Ortega.  A ditadura de Somoza se foi, mas os feitos das mulheres estão caindo e sendo esquecidos.  O documentário estadunidense busca resgatar essa verdade histórica e faz um belo libelo feminista, embora sem alarde, a partir disso.

O prêmio do público para ficção ficou para CAFARNAUM, do Líbano, direção de Nadine Labaki (de “E agora, aonde vamos?”, de 2011).  É o melhor filme dela, na minha opinião.  O resultado realista que ela obteve com um ator de 12 anos, Zain, ao longo de todo o filme, é notável.  Ele contracena boa parte do tempo com um bebê, o que funciona incrivelmente bem.  O que a mise-en-scène  mostra é uma vida de miséria absoluta, que acaba fazendo com que o menino processe seus pais por ter nascido (sic).  Isso é muito estranho.  Também é esquisito ver os pais do garoto tendo um monte de filhos, sem suprir nenhuma das necessidades básicas de nenhum deles, e dispostos a vender a irmã de Zain, assim que ela menstrua pela primeira vez.  Esses pais vivendo na miséria é que são os culpados ou o sistema que produz essa miséria toda também os vitimiza?  Isso não fica claro e o apelo por pôr menos filhos no mundo soa forte e, a meu ver, impreciso.  O filme é muito bem realizado e envolvente, recebeu aplausos ao final da sessão e tudo mais.  Tem, porém, esses problemas e alguns outros, menores.  Em compensação, tem sequências muito bem boladas, como o carrinho improvisado que Zain fez, para carregar o bebê pela rua.


CAFARNAUM


O filme brasileiro MEIO IRMÃO conquistou duas importantes premiações: o Petrobrás de Cinema, como melhor longa nacional de ficção, recebendo R$200.000,00, e o reconhecimento da Crítica, pelo prêmio da Abraccine.  Nada mau para o primeiro longa de Eliane Coster.  A jovem Sandra e seu meio irmão Jorge são figuras vulneráveis, de uma realidade empobrecida, com a mãe sumida.  Com uma estrutura familiar rarefeita, sem dinheiro e ainda tendo de lidar com uma agressão homofóbica filmada por Jorge, as coisas não ficam fáceis.  O trabalho da cineasta mostra, de forma convincente, esse clima de insegurança e desamparo que atinge os personagens. 

O Prêmio Petrobrás de Cinema também agraciou, no quesito documentário nacional, com R$100.000,00, TORRE DAS DONZELAS, de Susanna Lira.  O filme, que trata da torre do presídio Tiradentes, dedicada à prisão feminina nos tempos da ditadura militar, alcançou a ex-presidente Dilma Rousseff e um grupo grande de mulheres.  Presas políticas, militantes de esquerda vinculadas, geralmente, a grupos que tinham atuação na luta armada de resistência da época, não só contam sua epopeia, como tentam reconstruir o espaço em que viveram, já agora demolido.  Não faltam relatos pungentes das torturas vividas por elas no DOPS, antes de chegar ao “paraíso” da prisão Tiradentes.  O filme, apesar do tema, tem alto astral e histórias curiosas, como aquela do recebimento de vestidos de festa doados a elas, em plena prisão, sem perspectiva de saída. Acaba sendo hilário.  São, em sua maioria, mulheres inteligentes, acadêmicas.  Todas elas encantam com sua coragem e disposição de viver, ainda hoje.



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