sábado, 11 de junho de 2016

CAMPO GRANDE


Antonio Carlos Egypto




CAMPO GRANDE.  Brasil, 2015.  Direção: Sandra Kogut.  Com Carla Ribas, Ygor Manoel, Rayane do Amaral, Júlia Bernat.  109 min.



Em “Campo Grande”, a diretora Sandra Kogut nos coloca num clima de incertezas e aflição.  Desde a primeira cena até o seu final, não sabemos direito o que está acontecendo, mesmo depois de nos familiarizarmos com os personagens. Antes disso, a aflição é maior: surge uma menina pequena, de uns 6 anos de idade, de aparência muito simples, abandonada pela mãe numa residência de classe média alta, na zona sul do Rio, em Ipanema.  Só vemos a praia, por duas vezes, por meio de uma fresta entre prédios.  Outro menino abandonado aparece, é o irmão um pouco maior da menina, e ficamos sabendo que sua mãe os orientou a que esperem por ela naquele lugar.  Como assim?




A casa é de Regina (Carla Ribas), que não sabe o que fazer nessa situação.  Mas muita coisa está acontecendo com ela e com a filha jovem, Lila (Júlia Bernat).  O que será?  Percebe-se que o apartamento está sendo desmontado e que o pai não está mais ali.  Supõe-se que houve uma separação e que vai haver mudança.  As pessoas estão vulneráveis, perdidas.

Lá fora, os ambientes estão cheios de máquinas e equipamentos, tudo parece em construção ou em reforma, nas proximidades, na rua.  Tudo é provisório, se perde ou se desintegra.  O abandono não é só o das crianças, é das pessoas, é da própria cidade. 




Rayane (Rayane de Amaral) e Ygor (Ygor Manoel) são as crianças abandonadas, que moram (moravam?) no bairro de Campo Grande.  Tem também uma avó na história deles, que aparece como referência afetiva, mas cuja casa não se localiza.  Abrigos de menores, orfanatos, entram na dança, enquanto a mãe não aparece (aparecerá?).  E quem será?  Uma antiga empregada da casa, talvez.

Vamos montando as peças para o entendimento da situação, por falas dispersas, sussurradas, banais, indefinidas, fora do quadro, perguntas sem respostas dos personagens e um constante mal-estar, que nos mostra algo cifrado, porém, num contexto muito conhecido.  São as nossas velhas mazelas, os nossos problemas sociais crônicos.  As diferenças dos mundos da casa grande e da senzala, que vêm de longe e mudam basicamente só de casca.

Esse clima indefinido em que as coisas são mostradas no filme produz a angústia da impotência diante do conhecido, a aflição a que me referi, alimentada pelo medo e pelas incertezas.  Quanto mais bem realizada a sequência, mais bela a poesia da câmera, mais aflitivo fica. 




A cineasta nos conduz para dentro da questão social com personagens reais, de carne e osso, com os quais compartilhamos uma dor e uma busca que também é nossa.  Fazemos parte dela e do abandono que envolve cada um dos personagens.  As atrizes protagonistas e as crianças, especialmente o garoto Ygor, enchem de humanidade essa narrativa desafiante para o espectador.  Impossível não se tocar com o drama insinuado, nunca escancarado, jamais objeto de exploração emocional.  Por isso mesmo, tão verdadeiro.

Sandra Kogut já havia mostrado grande talento em seu segundo longa, “Mutum”, de 2007, em que o universo de Guimarães Rosa se revelava em poesia, beleza e humanidade.  Com “Campo Grande”, ela mostra criatividade ao colocar na sombra, no intertextual, no não-dito, o nosso drama social.


Vale comentar, também, que moradores de Campo Grande, um dos mais populosos bairros do Rio, reclamaram junto aos cinemas locais, exigindo que esse filme, que aborda a realidade do bairro, passasse nos cinemas de lá, o que não estava previsto de acontecer.  E conseguiram.  O povo quer ver sua realidade expressada no cinema, mas o circuito exibidor não tem sensibilidade para perceber isso.  E tem outros interesses e compromissos comerciais.



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