Antonio Carlos Egypto
A VIAGEM DE PEDRO. Brasil, 2021.
Direção e roteiro: Laís Bodansky.
Elenco: Cauã Reymond, Rita Wainer, Victoria Guerra, Luise Heyer, Welket
Bunguê, Isac Graça. 96 min.
Em tempos de comemorações pelos 200 anos
de independência do Brasil, em meio a homenagens bizarras como esta de pedir
por empréstimo por alguns dias o coração de D. Pedro I, mantido em formol por
mais de 180 anos, para essa efeméride, sem falar no aproveitamento eleitoral do
evento, um filme como “A Viagem de Pedro” traz um respiro importante.
O filme de Laís Bodansky (de “Bicho de 7
Cabeças”, 2000, e “Como Nossos Filhos”, 2017) surge apropriadamente nos cinemas
em plena semana dos 200 anos de independência, embora isso tenha sido
ocasional. Ele deveria ter sido lançado
bem antes, mas devido à pandemia teve de ser postergado. Acabou chegando na hora certa.
O foco do filme é, na verdade, uma
lacuna histórica, preenchida a partir dos parcos dados de que se dispõem sobre
o retorno de D. Pedro I a Portugal, em 1831.
Sabe-se que, apenas nove anos após a proclamação de 1822, Pedro (I, do
Brasil, e IV, de Portugal) vivia um momento de declínio e contestação. Praticamente foi expulso daqui pelos
brasileiros, entre outros motivos, por pretender acumular dois reinos, o do
Brasil e o de Portugal, de interesses obviamente conflitivos, e mostrando-se um
imperador de caráter autoritário, pouco afeito aos interesses do povo
brasileiro ou às manifestações regionais que expressavam divisões políticas por
aqui.
A viagem de retorno, deixando aqui o
príncipe regente, com 5 anos de idade, o futuro D. Pedro II, se deu numa
fragata inglesa que incluía membros da corte, oficiais, serviçais e negros
escravizados, compondo uma babel de línguas, culturas e posições sociais bem
distintas. Sendo que a escravidão
dominava por aqui, enquanto os ingleses atuavam pelo seu fim e pressionavam por
mudanças no Brasil, para atender as suas políticas e interesses.
Pedro se sentia rejeitado e impotente,
até literalmente, segundo o filme, em que pese sua história machista e os mais
de trinta filhos que teria gerado. À
filha mais velha estava reservado impor-se como rainha de Portugal e ela nem
sequer pôde viajar com Pedro e a agora sua mulher Amélia, por questões de
segurança. Viajou em outro navio. Afinal, se as embarcações afundassem, o que
sobraria da família real?
Ao que parece, Pedro se aproximava sem
dificuldade dos mais pobres, mas, mesmo assim, deve ter sido complicado esse
convívio com tanta diversidade. Isso,
mostrado no filme por um elenco internacional e comunicações em português,
francês, inglês e línguas africanas, simultaneamente, além de hábitos e valores
muito diferentes sendo expostos.
Pedro, no filme, revive em flash backs seu casamento com D.
Leopoldina, o romance com Domitila de Castro e imagina batalhas verbais com o
irmão D. Miguel, que ficou no trono português, depois da morte de D. João VI,
em 1826. Após essa viagem de retorno, D.
Pedro durou pouco mais de três anos, enfrentando problemas em sua pátria de
origem, se envolveu na guerra civil portuguesa e contraiu a tuberculose que o
matou precocemente.
Isso tudo, aliado à quase folclórica
declaração de independência, montado num garboso cavalo (e não numa mula), com
roupas imperiais ( e não de simples algodão), no riacho do Ipiranga, numa São
Paulo periférica e desimportante, comparada com a capital do país. Sem falar nos desarranjos intestinais do
imperador, o que torna tudo bem menos heróico e militar do que indica o famoso
quadro “Independência ou Morte”, de Pedro Américo, devidamente restaurado e de
volta ao Museu do Ipiranga, que reabre agora.
A efetivação da independência do pais acabaria sendo concretizada em 10
de outubro, no Rio de Janeiro, mas o 7 de setembro às margens do Ipiranga, em
São Paulo, ficou para a história oficial, como o quadro ficou como elemento
inspirador e imagem oficial do evento.
Voltando ao filme, de que me afastei um
pouco demais, é um belo trabalho de desconstrução histórica e de personagem
heroico. Na verdade, poderia ser
entendido como reconstrução em busca de uma maior aproximação com a
realidade. O elenco, amplo e magnífico,
capitaneado por Cauã Reymond, como D. Pedro, e a filmagem um tanto
claustrofóbica do navio, acentuada pela tela reduzida ao quadrado nos cinemas,
enfatizam o incômodo, o desamparo da viagem e o sofrimento de Pedro.
A leitura disso nos dias de hoje por
Laís Bodansky inclui questões como a da masculinidade tóxica, do feminismo, do
antirracismo e da visão elitista da história.
É um belo espetáculo, mas não aquele das histórias épicas
embelezadas. Pelo contrário, é o da
beleza da humanidade que vive e sofre longe do glamour. Ainda que se possa ser príncipe e fonte de
poder.
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