quarta-feira, 6 de julho de 2022

O ACONTECIMENTO

                   Antonio Carlos Egypto

 




O ACONTECIMENTO (L’événement).  França, 2021.  Direção: Audrey Diwan.  Elenco: Anamaria Vartolomei, Luana Bajrani, Louise Orry-Diquero, Kacey Mottet Klein, Sandrine Bonaire.  100 min,

 

A questão do aborto envolve muita polêmica e quando se discute em tese, a discussão se torna abstrata, deixando de levar em conta os muitos sofrimentos, a angústia, o desespero que podem estar presentes na decisão de interromper voluntariamente uma gravidez que não foi planejada.

 

Quando, por força de lei, esse procedimento é considerado proibido, a alternativa para a mulher se resume à busca de soluções arriscadas por conta própria, à prática clandestina perigosa, tanto para a saúde quanto pela possibilidade de levar à prisão a grávida e quem a atendeu na ilegalidade.

 

O filme “O Acontecimento”, de Audrey Diwan, focaliza de forma absolutamente realista, a experiência concreta do aborto numa jovem prestes a entrar na universidade que, numa única relação sexual, fortuita, engravidou e se viu sozinha para enfrentar a situação.  A decisão de abortar seria um imperativo para ela, dadas as suas circunstâncias de vida, com moradia num centro estudantil, tendo que se dedicar muito aos estudos.  Sua família, que poderia ser considerada de classe média baixa, não disporia de recursos para ajudá-la e, se informada, provavelmente não aceitaria a situação.

 

O filme é baseado no livro de Annie Ernaux, que relata sua própria experiência, quando engravidou e praticou o aborto, em 1963, numa época em que a França ainda não legalizava esse direito às mulheres.

 

“O Acontecimento” apresenta, passo a passo, a dinâmica desse processo angustiante e solitário, como uma experiência física, carnal.  O que exige da atriz Anamaria Vartolomei, como protagonista no papel de Anne, uma exposição e dedicação extremas.  E ela se sai muito bem.

 



A narrativa, esturricada de realismo, incomoda, mas também sensibiliza.  É muito fácil se identificar com essa jovem e sua busca labiríntica de uma solução para um problema para o qual a sociedade dá as costas e ainda criminaliza.

 

Se na França a questão, tal como aparece no filme, é passado, isso não está superado num grande número de países pelo mundo, incluindo o Brasil.  Por aqui, o aborto legal é restrito à gravidez por estupro, que envolva risco de vida para a mãe ou em casos de anencefalia do feto.  Mesmo nesses casos, como temos visto no noticiário e nas declarações públicas de autoridades, a sua prática tem exigido enormes esforços para acontecer.

 

Quando “O Acontecimento” nos põe frente a frente com a realidade nua e crua do aborto clandestino, expõe com clareza que a questão não se resume à moral, à religião ou às preferências políticas.  É mesmo uma questão de saúde pública e envolve sofrimento, traumas, sequelas e mortes que podem ser evitadas.  “L’événement” dialoga, nesse sentido, com o belo filme romeno, de Cristian Mungiu, “4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias”, de 2007.

 

Vencedor do Leão de Ouro de Veneza 2021, “O Acontecimento” é um filme de mulheres na sua concepção, na direção, no elenco, reflete o ponto de vista feminino sobre o tema.  E quem melhor do que elas para tratar desse assunto, ainda tabu em tantos aspectos, e que merece ser discutido?  O cinema traz a possibilidade de conhecê-lo também por meio das emoções que o envolvem, o que pode nos ajudar a tomar posições com mais clareza e conhecimento de causa.



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