terça-feira, 27 de abril de 2021

O AUTO DA BOA MENTIRA

Antonio Carlos Egypto

 

 O AUTO DA BOA MENTIRA.  Brasil, 2021.  Direção: José Eduardo Belmonte, com grande elenco.  100 min.

 

Ariano Suassuna


Ariano Suassuna (1927-2014) é uma das maiores referências culturais do nordeste e do Brasil. Poeta, dramaturgo, ensaísta, autor de clássicos como “O Auto da Compadecida”, “O Santo e a Porca” e “O Romance da Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta”, está eternizado também na Internet, com suas famosas aulas-espetáculo.  Para quem não viu, faça uma navegação pelas palestras bem humoradas, com sacadas inteligentes, originais e muito divertidas, que felizmente estão lá guardadas.  Sempre que posso, me alimento daquela perspicácia toda e aprecio o timing perfeito das suas histórias, dos causos que ele conta, com riqueza de detalhes e nuances. E cheias de mentiras.  Segundo Suassuna, se ele não gostasse de mentir, não seria capaz de contar as histórias que conta e que o divertem tanto quanto a plateia.

 

Pois foi com base nesse material de Ariano Suassuna, suas frases de efeito e a exploração do uso da mentira, que se inspirou o filme de José Eduardo Belmonte “O Auto da Boa Mentira”.  Por meio de quatro histórias distintas e independentes, que têm a mentira como elemento comum, faz-se uma comédia que respeita e reverencia o autor, mas procura ampliar, ou melhor, diversificar o seu contexto.

 

Se há uma história bem característica da narrativa de Ariano Suassuna é a segunda, passada numa pequena cidade e no circo, com o palhaço Romeu (Jackson Antunes), que está na base de uma mentira a respeito da paternidade de Fabiano (Renato Góes).  Mentira perpetrada pela mãe , Cássia Kis, com a intenção de preservar o filho de sofrimento.  Mas outras mentiras vão se apresentar pelo caminho e complicar as escolhas, um tanto inocentes, de Fabiano.

 

A primeira e a quarta histórias surpreendentemente foram levadas para o ambiente empresarial.  Uma convenção de RHs num hotel, com um stand-up como atração, e uma festa de final de ano, numa empresa de publicidade, respectivamente.

Na primeira, um subgerente de relações humanas, Hélder (Leandro Hassum), acaba gostando de ser confundido com um humorista famoso e assume a mentira, até perceber que isso o põe em risco de vida ao conhecer Caetana (Nanda Costa). Há piadas que remetem ao próprio Hassum,  mais engraçado mais gordo ou mais magro, e inclui pequenos trechos de espetáculos dele.

 



Na quarta história, a referência é a um famoso causo que Suassuna conta sobre uma mulher esnobe que parecia dividir todas as pessoas entre as que já foram à Disney e as que não foram.  E os pseudointelectuais que citam escritores lidos no original ou grupos artísticos que ninguém conhece, exceto uma pequena elite.  A escolha de uma festa de publicitários como contexto enfraquece um pouco a força do comentário original, ao mesmo tempo em que demole as relações empoladas, falsas e exibicionistas, dos convivas da festa, implodindo tudo.  O chefe-mór, Norberto (Luís Miranda), que tem uma imensa foto na parede da firma, o pseudointelectual Felipe (Johnny Massaro) convivem com uma jovem estagiária invisível (Cacá Ottoni), que acaba sendo o foco de toda a situação.  A mentira, nesse caso, é a tônica de tudo e de todos, inclusive da estagiária esnobada.  A inspiração mudou de rumo.  A meu ver, ficou mais para Buñuel implodindo a burguesia do que para Suassuna.

 

A terceira história traz o autor para o Rio de Janeiro, os bares do Vidigal, e um gringo, Pierce (Chris Mason), que assimilou o jeito carioca de ser e de mentir, para justificar uma ausência.  Foi convincente para o amigo e dono do bar, Zeca (Serjão Loroza). O que não esperava é que acabaria de frente com o chefe do tráfico, Jesuíta Barbosa, num papel pouco apropriado ao seu tipo físico.  Pelo menos, ao estereótipo do personagem.

 

Em tempos de fake news, a mentira institucionalizada e mal intencionada, é apropriado  pensar na chamada boa mentira.  Aquela social, geralmente bem intencionada, que deseja preservar alguém, ser um jeito de se defender ou que promete algum ganho, mas que não prejudica os outros, (ou se supõe tal coisa), ou, ainda, que tem a intenção de divertir, sacanear o outro, tirar sarro, sem maiores pretensões.  Claro que todo mundo mente e, muitas vezes, isso é desejável ou até indispensável.  Mas é preciso tomar cuidado: a mentira tem perna curta, mas anda rápido.

 

O filme entra em cartaz dia 29 de abril, onde houver cinemas abertos.

2 comentários:

  1. Brilhante como sempre, você estrutura a narrativa de forma atemporal, ora mesclando as 4 histórias, ora as listando sem a preocupação de fazê-lo na ordem crescente. Os filmes já começam em suas criticas-show, amigo!

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  2. Muito obrigado. Adorei seu comentário, amigo. Só que você não assinou. Quando não se coloca o nome no texto aqui, aparece como anônimo.

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