HENFIL. Brasil, 2017. Direção: Angela Zoé. Documentário. 75 min.
A partir de 1969, com o golpe dentro do golpe
militar, as esperanças de uma volta à democracia acabaram de vez. Um dos meus momentos de respiro e felicidade
era ir às bancas de jornais, semanalmente, comprar e ler “O Pasquim”, jornal de
humor e política que marcou época como mídia de resistência. A publicação reunia a fina flor do jornalismo
crítico do período, gente como Millôr Fernandes, Tarso de Castro, Ivan Lessa,
Paulo Francis, Sérgio Cabral pai, Sérgio Augusto, Tárik de Souza e cartunistas
e desenhistas do quilate de um Ziraldo, um Jaguar, um Fortuna. Pois, diante desse time de cobras, um dos
grandes destaques e sucesso comprovado do Pasquim era Henrique Filho, o Henfil
(1944-1988). O mineirim , filho de D.
Maria, irmão do cantor e compositor Chico Mário, de Glorinha e do Betinho. O país que sonhava “com a volta do irmão do
Henfil”, na magnífica canção de João Bosco e Aldir Blanc, imortalizada por Elis
Regina, referia-se ao Betinho da luta contra a fome, que ficou para as páginas
mais bonitas da história do nosso país.
Enquanto o general Figueiredo preferia o
cheiro dos cavalos ao cheiro do povo, os personagens de Henfil exalavam povo
por todos os poros. O povo era, para
ele, a única esperança real. Os
fradinhos, o cumprido resignado e o baixinho provocador, marcaram época. E a Graúna, o Zeferino, o bode Orelana,
Ubaldo, o paranóico, e o Cabôco Mamadô são insuperáveis. Tem também o Urubu flamenguista, lançado nos
tempos de sua participação na mídia esportiva.
E quem pode se esquecer das famosas cartas que ele escrevia para a mãe,
na revista Isto É , entre 1977 e 1984, com uma foto de D. Maria no alto?
Cartunista e artista multimídia, diríamos
hoje, Henfil escreveu livros, atuou na TV e no cinema, mas não chegou a
concretizar um filme de animação com seus personagens. No documentário “Henfil”, dirigido por Angela
Zoé, ela tenta reparar isso, filmando um grupo de jovens animadores que, a
partir de um workshop sobre o trabalho de
Henfil, cria um curta de animação com os personagens dele. O processo é mostrado e o resultado é
apresentado no final do filme. Para
isso, contaram com a ajuda de Ziraldo, por exemplo, que lhes mostrou que a Graúna
não poderia ficar certinha e bonitinha, porque o traço que a caracterizava era
sujo, nervoso, desenho em movimento.
De fato, em poucas linhas, Henfil mostrava
tudo, em ação. Com poucas palavras,
dizia tudo, também. De um modo urgente,
tinha que ser para já, como o lema “Diretas já”, que ele produziu e disseminou.
Para essa urgência certamente contribuiu a hemofilia, a doença que o acompanhou
por toda a vida e foi a causa de sua morte em decorrência da Aids, contraída
numa transfusão de sangue, que fazia parte da sua rotina de sobrevivência. Só que num tempo em que o controle dos bancos
de sangue no Brasil era precário. Haja
vista o grande número de casos de contaminação pelo vírus HIV por essa via que
ocorreu nos anos 1980.
Nessa época, eu já trabalhava com educação sexual
nas escolas públicas e particulares e costumava atender convites da mídia para
falar sobre o assunto. Foi numa dessas
situações que acabei conhecendo o Henfil pessoalmente. Num programa da TV Cultura, conduzido por
Júlio Lerner (1939-2007). Apresentei o
assunto mostrando sua importância, o valor científico e a seriedade que a
abordagem exigia. Ele concordou
totalmente, mas acrescentou que eu não me esquecesse de pôr humor nessa
didática. A educação sexual tinha de ser
divertida, também. É isso mesmo. Ele nunca deixou de pôr humor na vida, mesmo
nos momentos mais tenebrosos do país, na ditadura militar, ou nos graves
problemas de saúde que tinha de enfrentar.
Participam do documentário “Henfil” gente que
viveu e trabalhou ao seu lado, como os já citados Ziraldo, Jaguar, Sérgio
Cabral pai, Tárik de Souza e ainda Lucas Mendes, amigos e familiares. Imagens do Henfil em entrevistas, em
lançamento de livros, em filmagens familiares ou de viagens compõem um painel
abrangente do grande talento que ele foi.
E como ele faz falta até hoje!
Ver o filme “Henfil” é recuperar a história desse grande artista
brasileiro, de sua luta política valendo-se do humor corrosivo e do desafio que
foi e continua sendo a luta contra a Aids.
Não encontro local de exibição em São Paulo... não está passando?
ResponderExcluirestá em cartaz em Sampa no Frei Caneca.
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