sexta-feira, 25 de abril de 2014

TSAI MING LIANG E CÃES ERRANTES


Antonio Carlos Egypto

Tsai Ming Liang


CÃES ERRANTES (Jiao You).  Taiwan, 2013.  Direção: Tsai Ming Liang.  Com Lee Kang Sheng, Yang Kuei Mei, Lu Yi Ching.  138 min.


O trabalho do cineasta Tsai Ming Liang reflete com originalidade o mal estar da vida contemporânea nas grandes cidades.  Ele nasceu na Malásia, mas fez toda a sua carreira como realizador na China, em Taiwan.  Faz um cinema que tira o espectador do confortável, do conhecido.  Para começar, não conta histórias, mostra personagens que vagueiam pelos espaços urbanos em busca de algo que eles mesmos parecem desconhecer.

Os seres humanos estão perdidos e incomunicáveis, vivendo uma angústia existencial digna dos grandes filmes de Michelangelo Antonioni (1912-2007), inspirador confesso do diretor malaio.  Sentem-se inadaptados em seu ambiente de vida, ignorados, invisíveis, excluídos.  Não costuma haver encontros, embora possa surgir alguma afetividade e a perspectiva de busca do desejo sexual e do amor, que, no entanto, parecem ora distantes, ora insatisfatórios.




Há incomunicabilidade, o que se reflete na quase ausência de diálogos, como acontece na maior parte do tempo nos filmes de Tsai Ming Liang.  Também não há emocionalidade, é tudo austero, seco.  Numa palavra, minimalista.  Mas essa economia de meios de expressão pode, subitamente, dar lugar a uma performance kitsch, um grito lancinante de dor, um excesso visual.  Com isso se produz estranhamento, o que só reforça o mal estar que está sendo mostrado.

Além disso, Tsai Ming Liang tem uma constante obsessão com a água, que inunda casas, locais de repouso ou trabalho das pessoas, pode estar contaminada, chover torrencialmente ou, por outra, estar em falta.  Como ele mesmo diz : “ ... quanto mais água você vê em meus filmes, mais os personagens precisam preencher o vazio em suas vidas, para hidratá-las novamente ... A água representa uma força que invade, que destrói a família” (catálogo da retrospectiva do cineasta, em mostra do Centro Cultural do Banco do Brasil, 2010).



Longuíssimos planos, em que não há ação evidente, são outra característica do trabalho do diretor.  Em “Cães Errantes”, ele torna essa experiência contemplativa habitual em experimento radical.  Há uma cena estática, que se estende por intermináveis treze minutos ao final do filme.  Como a nos dizer que o cinema acabou.  Ou terá acabado para ele.

Não é exatamente uma ideia nova no seu trabalho.  Em um de seus filmes, “Adeus, Dragon Inn”, de 2003, o cenário básico é uma grande sala de cinema decadente e abandonada, por onde circulam personagens que não se relacionam com o filme que está sendo exibido, mas com a sala de cinema que está morrendo por falta de público.




“Cães Errantes”, como o conjunto de sua obra, aborda a temática das relações familiares inexistentes ou desgastadas, a falta de perspectivas e também a miséria na grande cidade, que desconhece os dramas humanos que nela estão inseridos.  Há os cães do título, naturalmente.  Rios, matas e ruas chuvosas compõem o ambiente.  Na cidade, circula, por exemplo, um outdoor humano que vende apartamentos de luxo.  Uma cena que os habitantes de São Paulo ou do Rio conhecem muito bem.  Não será preciso contextualizar Taipei como local.

O cinema de Tsai Ming Liang é assim: universal no registro de uma situação que, aparentemente, seria específica, não só do ambiente cultural a que ele pertence, mas até dos elementos da sua experiência pessoal.  Comprovação do talento e perspicácia do realizador.



Para quem não conhece o cineasta, “Cães Errantes” não seria uma boa introdução ao seu cinema, já que ele radicaliza alguns elementos, o que tende a afastar o espectador desavisado.  No entanto, é difícil indicar outro caminho dessa iniciação por meio do cinema.  Seus filmes não costumam ser exibidos regularmente, pelo caráter nada comercial de um trabalho que não faz concessões.  Não há outra opção em DVD que não seja o filme “O Sabor da Melancia”, de 2005, em que ele explora o universo da pornografia em meio a uma crise de água.  O resto é garimpar pela Internet à procura de filmes como “O Rio”, de 1997, (que chegou a ser lançado em VHS), “Vive L’Amour”, de 1994, “O Buraco”, de 1998, ou o já citado “Adeus, Dragon Inn”.  São exemplos de filmes em que se pode adentrar no universo Tsai Ming Liang com um pouco menos de esforço e usufruir da qualidade de seu cinema criativo e experimental.  Ou preparar-se para a jornada cinematográfica de “Cães Errantes”, que, apesar de radical, vale a pena.


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