Antonio Carlos Egypto
O MOINHO E A CRUZ (The Mill and The Cross). Polônia, 2011. Direção: Lech Majewski. Com Rutger Hauer, Charlotte Rampling, Michael York. 91 min.
O pintor Pieter Bruegel (1525?-1569) nasceu numa localidade que provavelmente se situa hoje na Holanda. A data de nascimento é também incerta. É fato que morreu em Bruxelas. Homem do Renascimento, retratou em suas telas toda a vida rural de pequenas aldeias, num mundo marcadamente medieval. Seus quadros pareciam querer abarcar tudo o que se fazia e se vivia naquele pequeno mundo, inclusive os medos, as fantasias, a insegurança, o terror. Mas a vida produtiva, as festividades, a comida, os trajes, os rituais religiosos, a vida compartilhada com os animais, as contendas, crueldades e o ser humano dentro da paisagem natural, sendo pequeno frente a ela, são características de sua obra.
É importante situar isso para falar do filme “O Moinho e a Cruz”, porque sua proposta é bem original. Ela parte de um quadro de Bruegel para recriá-lo no cinema, enfocando tudo o que tem nele e, dessa forma, descrevendo a sociedade rural do século XVI, tal como o artista a via e percebia. O quadro se move e se subdivide em suas múltiplas partes. Outras informações pertinentes à época retratada são utilizadas.
A ideia é perfeita, justamente porque o pintor buscava mesmo retratar a vida do povo flamengo nessas pequenas aldeias, com todos os seus elementos constitutivos. É curioso, porém, que a tela escolhida para o filme seja A ida ao calvário ou A procissão e o calvário, um tema religioso aparentemente deslocado de seu tempo. Sim, porque todas as características da sociedade que ele descrevia pictoricamente estão lá, assim como nas outras telas dele. O homem que carrega a cruz no centro do quadro não se destaca, nem se pode afirmar categoricamente que seja Jesus Cristo. O que está em jogo aí talvez seja mais a banalidade desse tipo de crueldade, assim como a de uma roda altíssima em que é posta uma vítima para ser mutilada pelos corvos ou mulheres enterradas vivas, como o filme acrescenta. O fato é que, na película, a crucificação desta figura é Cristo, com direito aos dois ladrões, aos clássicos trovões e à proximidade da mãe, a Virgem Maria, papel de Charlotte Rampling. No quadro, a figura equivalente existe, mas não está próxima da vítima. Reflete a dor por seu martírio mas não a vê.
Deixando de lado, porém, o tema religioso, a caracterização da aldeia do século XVI é magnifíca. O visual do filme é tão caprichado e fiel ao que retrata Bruegel que tudo fica muito bonito e remete àquele tempo que podemos conceber a partir das pinturas.
O ritmo do filme é aquele em que supostamente viviam as pessoas, há muito pouca fala e a tela do cinema fica povoada de personagens grande parte do tempo, como se vê nos quadros de Bruegel. A recriação da paisagem é muito fiel.
Uma característica da tela em questão é muito bem explorada no filme: o moinho. Ele está a uma altura desproporcional à paisagem. Bem no alto, no ponto mais alto possível. O pintor, que é personagem do filme, construindo sua tela, diz que o moinho precisa estar no alto, porque ele concebeu o moleiro como representação de Deus, aquele que vê tudo de cima. Esse ponto de vista é explorado pela câmera, além de que o filme concebe o interior de tal moinho, sua enorme escadaria interna, suas engrenagens, as pás que o movem, dando uma dimensão que transcende a realidade concreta.
Bruegel, vivido pelo veterano ator Rutger Hauer, desenhando e concebendo o quadro, vivendo e observando tudo o que acontece, é também um ótimo recurso. “O Moinho e a Cruz” é, inegavelmente, um belo filme, sofisticado na sua concepção, plasticamente irretocável. É um filme dirigido a um público pequeno, mas que certamente saberá apreciar a sua estética.
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