Antonio Carlos Egypto
UMA NOITE EM 67. Brasil, 2010. Direção: Renato Terra e Ricardo Calil. Documentário. 85 min.
“Uma Noite em 67”, documentário dirigido por Renato Terra e pelo crítico de cinema Ricardo Calil , resgata um dos períodos históricos mais ricos e criativos da música popular brasileira.
O final dos anos 1950 e o início dos anos 1960 trouxeram à MPB a revolução musical capitaneada pelo gênio de Tom Jobim e suas surpreendentes harmonias que, aliadas à poética inovadora do grande Vinícius de Moraes e à voz e o violão absolutamente originais de João Gilberto, fizeram a bossa nova, uma transformação tão fundamental que mudaria tudo o que viria depois dela. Eram os tempos do desenvolvimentismo de JK e do otimismo de um Brasil grande que se construía, em que louvar “o amor, o sorriso, a flor” em “barquinhos pelo mar, que deslizam sem parar” era maravilhoso.
Foi o sopro de mudança da bossa nova que pôs muita gente a estudar, tocar e cantar aquela música espantosamente moderna e gerou grandes talentos de compositores, que desaguariam nos famosos festivais de música brasileira da TV Record, da TV Excelsior e também nos Festivais Internacionais da Canção, da TV Globo. Entre eles: Chico Buarque, Edu Lobo, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Geraldo Vandré, Sérgio Ricardo, Milton Nascimento. Por outro lado, a revolução no rock internacional que viria dos Beatles resultaria na Jovem Guarda, de Roberto Carlos, Erasmo e Vanderléa, de enorme sucesso e boa qualidade.
Mas os tempos já eram outros, a ditadura militar se instalara, as liberdades iam sendo suprimidas cada vez mais, a partir de 1964, até a chegada do golpe final do Ato Institucional n○ 5, em 1968, e o mergulho nas trevas. 1967 foi um ano de inflexão desse processo. Os novos compositores já enfrentavam o desafio de burlar a censura e lutar pelas liberdades democráticas e o Estado de Direito. Era preciso, ainda, olhar para o povo oprimido, resgatar as expressões culturais do nordeste brasileiro, promover a música dos morros cariocas e daí por diante. “O sol, o sal e o mar” já não bastavam.
Com tanta coisa em jogo, a música tinha uma importância enorme e um espaço na mídia que jamais voltaria a obter. Geralmente música sofisticada, de alta qualidade, não combina com programas populares de TV, regidos por pesquisas de audiência. Mas nessa época combinavam. Tanto que uma linha de shows comandados por Elis Regina e Jair Rodrigues, Elizeth Cardoso e Ciro Monteiro, Chico Buarque e Nara Leão, Wilson Simonal, Caetano, Gil e Gal figuravam entre as atrações televisivas de maior audiência no horário nobre. Os festivais eram os momentos geradores desses programas e das músicas que viravam grandes êxitos populares, repetidas à exaustão.
O festival de 1967 da Record, em sua noite final, que é o objeto do documentário, trouxe a música altamente elaborada do ”Ponteio”, de Edu Lobo, de raiz nordestina e confecção erudita, que venceu a competição. E trouxe Caetano Veloso, com “Alegria, Alegria”, e Gilberto Gil, com a cinematográfica “Domingo no Parque”, lançando as bases do tropicalismo, inundando a MPB com guitarras elétricas, introduzindo Os Mutantes com Rita Lee e os Beat Boys, num desafio às convenções que chacoalharia novamente a música popular brasileira. Aconteceria, então, a aproximação com o rock brasileiro da Jovem Guarda de então, e a síntese que Jorge Ben seria capaz de fazer. Haveria o resgate de clássicos da música popular brasileira e a retomada de belas canções que a bossa nova deixara para trás, ampliando o gosto crítico e popular.
Nesse festival, Chico Buarque também iria brilhar, com sua magnífica “Roda Viva”, em que o ritmo, a letra e o andamento realizam a idéia da canção de forma cada vez mais envolvente. E Roberto Carlos cantaria um samba (muito bem, por sinal), “Maria, Carnaval e Cinzas”, de Luiz Carlos Paraná, recebendo vaias.
Foi também nesse festival que Sérgio Ricardo, bossanovista que assumia uma música de resistência política declarada, após compor a trilha do filme “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de Glauber Rocha, tentava uma canção que falasse de futebol como expressão de cultura popular, até então pouco cantado na MPB. Seu “Beto Bom de Bola” foi mal recebido e muito vaiado. Sérgio Ricardo, descontrolado, quebra o violão e o joga para a platéia. Lembro-me até hoje da manchete do jornal “Notícias Populares” do dia seguinte, seguindo no seu estilo sensacionalista: VIOLADA NA PLATEIA.
Esse clima, essas músicas maravilhosas, essa paixão toda, está presente em “Uma Noite em 67”, contagiando o público como nos velhos tempos dos festivais. Os depoimentos colhidos contextualizam as questões envolvidas e o momento histórico. O resultado é digno do nosso melhor aplauso. Quem viveu, se emocionará em rever tudo isso. Quem não viveu, poderá entender o que era tudo aquilo e, certamente, vai curtir.
Foi uma festa bonita, inesquecível. Parabéns aos diretores, por nos trazê-la de volta em toda sua beleza e com todas suas urgências e contradições.
UMA NOITE EM 67. Brasil, 2010. Direção: Renato Terra e Ricardo Calil. Documentário. 85 min.
“Uma Noite em 67”, documentário dirigido por Renato Terra e pelo crítico de cinema Ricardo Calil , resgata um dos períodos históricos mais ricos e criativos da música popular brasileira.
O final dos anos 1950 e o início dos anos 1960 trouxeram à MPB a revolução musical capitaneada pelo gênio de Tom Jobim e suas surpreendentes harmonias que, aliadas à poética inovadora do grande Vinícius de Moraes e à voz e o violão absolutamente originais de João Gilberto, fizeram a bossa nova, uma transformação tão fundamental que mudaria tudo o que viria depois dela. Eram os tempos do desenvolvimentismo de JK e do otimismo de um Brasil grande que se construía, em que louvar “o amor, o sorriso, a flor” em “barquinhos pelo mar, que deslizam sem parar” era maravilhoso.
Foi o sopro de mudança da bossa nova que pôs muita gente a estudar, tocar e cantar aquela música espantosamente moderna e gerou grandes talentos de compositores, que desaguariam nos famosos festivais de música brasileira da TV Record, da TV Excelsior e também nos Festivais Internacionais da Canção, da TV Globo. Entre eles: Chico Buarque, Edu Lobo, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Geraldo Vandré, Sérgio Ricardo, Milton Nascimento. Por outro lado, a revolução no rock internacional que viria dos Beatles resultaria na Jovem Guarda, de Roberto Carlos, Erasmo e Vanderléa, de enorme sucesso e boa qualidade.
Mas os tempos já eram outros, a ditadura militar se instalara, as liberdades iam sendo suprimidas cada vez mais, a partir de 1964, até a chegada do golpe final do Ato Institucional n○ 5, em 1968, e o mergulho nas trevas. 1967 foi um ano de inflexão desse processo. Os novos compositores já enfrentavam o desafio de burlar a censura e lutar pelas liberdades democráticas e o Estado de Direito. Era preciso, ainda, olhar para o povo oprimido, resgatar as expressões culturais do nordeste brasileiro, promover a música dos morros cariocas e daí por diante. “O sol, o sal e o mar” já não bastavam.
Com tanta coisa em jogo, a música tinha uma importância enorme e um espaço na mídia que jamais voltaria a obter. Geralmente música sofisticada, de alta qualidade, não combina com programas populares de TV, regidos por pesquisas de audiência. Mas nessa época combinavam. Tanto que uma linha de shows comandados por Elis Regina e Jair Rodrigues, Elizeth Cardoso e Ciro Monteiro, Chico Buarque e Nara Leão, Wilson Simonal, Caetano, Gil e Gal figuravam entre as atrações televisivas de maior audiência no horário nobre. Os festivais eram os momentos geradores desses programas e das músicas que viravam grandes êxitos populares, repetidas à exaustão.
O festival de 1967 da Record, em sua noite final, que é o objeto do documentário, trouxe a música altamente elaborada do ”Ponteio”, de Edu Lobo, de raiz nordestina e confecção erudita, que venceu a competição. E trouxe Caetano Veloso, com “Alegria, Alegria”, e Gilberto Gil, com a cinematográfica “Domingo no Parque”, lançando as bases do tropicalismo, inundando a MPB com guitarras elétricas, introduzindo Os Mutantes com Rita Lee e os Beat Boys, num desafio às convenções que chacoalharia novamente a música popular brasileira. Aconteceria, então, a aproximação com o rock brasileiro da Jovem Guarda de então, e a síntese que Jorge Ben seria capaz de fazer. Haveria o resgate de clássicos da música popular brasileira e a retomada de belas canções que a bossa nova deixara para trás, ampliando o gosto crítico e popular.
Nesse festival, Chico Buarque também iria brilhar, com sua magnífica “Roda Viva”, em que o ritmo, a letra e o andamento realizam a idéia da canção de forma cada vez mais envolvente. E Roberto Carlos cantaria um samba (muito bem, por sinal), “Maria, Carnaval e Cinzas”, de Luiz Carlos Paraná, recebendo vaias.
Foi também nesse festival que Sérgio Ricardo, bossanovista que assumia uma música de resistência política declarada, após compor a trilha do filme “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de Glauber Rocha, tentava uma canção que falasse de futebol como expressão de cultura popular, até então pouco cantado na MPB. Seu “Beto Bom de Bola” foi mal recebido e muito vaiado. Sérgio Ricardo, descontrolado, quebra o violão e o joga para a platéia. Lembro-me até hoje da manchete do jornal “Notícias Populares” do dia seguinte, seguindo no seu estilo sensacionalista: VIOLADA NA PLATEIA.
Esse clima, essas músicas maravilhosas, essa paixão toda, está presente em “Uma Noite em 67”, contagiando o público como nos velhos tempos dos festivais. Os depoimentos colhidos contextualizam as questões envolvidas e o momento histórico. O resultado é digno do nosso melhor aplauso. Quem viveu, se emocionará em rever tudo isso. Quem não viveu, poderá entender o que era tudo aquilo e, certamente, vai curtir.
Foi uma festa bonita, inesquecível. Parabéns aos diretores, por nos trazê-la de volta em toda sua beleza e com todas suas urgências e contradições.
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