domingo, 23 de janeiro de 2022

ATAQUE DOS CÃES

                      Antonio Carlos Egypto

 


 

 ATAQUE DOS CÃES (The Power of the Dog)Nova Zelândia, 2021.  Direção: Jane Campion.  Elenco: Benedict Cumberbatch, Jesse Plemons, Kristen Durst, Kodi Smit-Mc Phee.  128 min.

 

“Ataque dos Cães”, o novo filme da diretora neozelandesa Jane Campion (de “O Piano”, de 1993, e “Brilho de uma Paixão”, de 2009) remete ao universo do western.  A trama se localiza numa grande fazenda em Montana, em 1925, onde vivem os irmãos Burbank: Phil (Benedict Cumberbatch) e George (Jesse Plemons).  Essa dupla de irmãos é apresentada como formada por figuras opostas.  George é educado, civilizado, respeitador das mulheres, bem apessoado.  Um padrão de masculinidade refinado para o ambiente em que vive.  Phil, ao contrário, segue o padrão do cowboy grosseiro, agressivo, que gosta de viver sujo (embora tome seus banhos na lagoa), corajoso e decidido.  Um tipo de masculinidade projetado como modelo nesse ambiente e que ele remete ao ídolo Bronco Henry, o cowboy que o ensinou a “ser homem”.

 

Quando George se casa sem avisar com Rose (Kristen Durst), uma viúva da localidade que Phil despreza, e a traz para casa com um filho adolescente, Peter (Kodi Smit-Mc Phee), o clima pesa.  Phil radicaliza o seu comportamento, tentando inviabilizar essa vida familiar em comum, humilhando Rose e Peter, este, por seu comportamento encarado como afeminado, construindo flores de papel, por exemplo.

 

Um clima em que a grosseria e as ameaças de Phil sugerem um grande drama pela frente. O que, por um lado, não deixa de acontecer, sobretudo com Rose.  Ela incorpora o problema para si e se refugia na bebida.  Mas Phil se aproxima de Peter e procura fazer o que Bronco Henry teria feito por ele, o ensinar a “ser homem”, a partir de aprender a cavalgar.  Uma virada no rumo das coisas, na expectativa criada.  E não será a única.

 

O filme, baseado no romance de Thomas Savage, também roteirista ao lado de Jane Campion, entra no gênero western, ressignificando suas convenções, virando-o de cabeça para baixo.  Senão, vejamos: embora o ambiente seja hostil, beirando à guerra pessoal ou familiar e podendo incluir os empregados da fazenda, não acontecem brigas, sopapos, tiroteios.  A tensão fica no ar.  Tem até índios, que poderiam ser perigosos inimigos, mas não, eles vão pedir couro cru e acabam sendo atendidos, mesmo que Phil fique possesso por isso. A relação entre os irmãos, apesar de incômoda, não descamba, mesmo nos momentos em que Phil ultrapassa claramente os limites.  E a aproximação entre Phil e Peter trará à tona revelações do passado, que “explicam” essa hostilidade toda cultivada por Phil.


 



A solução da trama passa por caminhos insuspeitos e surpreendentes, que remetem ao convívio com os animais e suas consequências, embora não haja concretamente nenhum ataque de cães, como no título em português. O sentido é poético. Ou o poder do cão, do título original, simbólico.

 

“Ataque dos Cães” explora a questão de gênero por meio de suas nuances, expectativas, construção de personas e impactos no contexto das relações sociais.  A masculinidade é colocada em evidência, até pelo próprio universo do gênero, marcadamente masculino, como um leque de opções bem amplo.  Cabem muitas formas de ser homem, mesmo nesse universo aparentemente limitado e fechado em si mesmo. É que não é assim.  Há espaço para muita coisa aparecer de onde menos se espera.  O ser humano e sua identidade de gênero são coisas complexas e cheias de sutilezas.  O espaço para as mulheres é mais complicado quando o contexto social se estreita, mas elas encontrarão sua força ainda que a resposta passe por mimetizar algum padrão “masculino”, como o dos negócios ou da bebida.

 

O que o filme deixa claro é que não é a força bruta que se impõe, no fim das contas.  Contra todas as aparências, é o planejamento e a inteligência que vencem.  “Ataque dos Cães” é uma produção da Netflix, disponível nesse serviço de streaming.  Eu vi o filme no cinema e apreciei muitíssimo as locações escolhidas, os planos gerais explorados com rara beleza, a amplitude das colinas, a natureza em tons marrons, que dialoga com a narrativa.

 

Quanto ao elenco, muito apropriadamente escolhido, com atuações que exploram bem as características dos personagens centrais e dão força à história.  O filme concorre ao Oscar com boas chances.  E Jane Campion retorna à direção depois de vários anos de ausência, e cada vez melhor. 



Nenhum comentário:

Postar um comentário