A ABRACCINE, Associação Brasileira de Críticos
de Cinema, congrega uma centena de críticos em 16 estados brasileiros. Também faço parte dela. Como em todos os anos anteriores, votamos nos
melhores filmes lançados e exibidos ao longo do ano, em dois turnos. Inicialmente, cada um indicando os seus três
favoritos em cada categoria, depois, escolhendo entre os três mais votados por
todos, os melhores longa e curta brasileiros e o melhor longa estrangeiro.
Como sempre, são considerados elegíveis os
filmes lançados no circuito cinematográfico durante o ano todo, exceto
festivais e mostras especiais. A
novidade neste ano foi a inclusão dos filmes lançados em streaming, como foi o caso do longa estrangeiro vencedor.
O prêmio ABRACCINE relativo aos melhores de
2018 vai para:
Longa estrangeiro – ROMA, de Alfonso Cuarón.
Longa brasileiro – ARÁBIA, de Affonso Uchoa e João Dumans.
Curta brasileiro – GUAXUMA, de Nara Normande.
Leia, a seguir, as minhas críticas dos dois
longas premiados.
ROMA
(Roma). México, 2018.
Direção: Alfonso Cuarón. Com
Yalitza Aparício, Marina de Tavira, Marco Graf, Daniela Demesa, Enoc Leaño,
Nancy García. 135 min.
ROMA,
filme mexicano de Alfonso Cuarón, com uma bela fotografia em preto e branco, é
focado nas mulheres. Coloca-nos dentro
do espaço doméstico de uma família de classe média-alta do México, anos
1970. A empregada doméstica Cleo (Yalitza
Aparicio) e sua colega Adela (Nancy García), de ascendência indígena, trabalham,
sem conflitos aparentes, para Sofia (Marina de Tavira), a dona da casa, com
quatro filhos, cujo marido está sempre ausente.
Cleo cuida dos filhos de Sofia como se fossem
seus. E o filme mostra uma rotina em que
fica claro o trabalho extenuante, semiescravo, das serviçais, mas também um
convívio pacífico e mesmo acolhedor da patroa.
Sem tempo de ter vida própria, Cleo parece realizar-se por meio da vida
da família que a emprega.
O incômodo inicial fica por conta de um carro
grande, o velho Galaxy, que vive arranhado, porque não cabe direito na garagem
da casa. Algo ali não se sustenta. Os dramas que se desenvolverão a partir daí
na vida das duas mulheres protagonistas, Cleo e Sofia, provocarão um turbilhão
de eventos, que se entrelaçam com as lutas políticas do período, entre milícias
e manifestantes estudantis, que acabarão por exercer papel decisivo no
desenrolar da trama. Mas os homens que
se relacionam com as protagonistas são os grandes responsáveis pela dor e
sofrimento que elas têm de viver. A
condição de mulher aproxima ambas.
Aquilo que as diferenças de classe separam a condição feminina agrega.
Sequências muito bem construídas, ao longo de
todo o filme, encantam, da lavagem do pátio da casa ao impressionante encontro
nas ondas do mar, sempre com a figura marcante da empregada Cleo. Tanto quando
nada parece estar acontecendo, como quando tudo se desencadeia com grande
intensidade.
A atriz indígena Yalitza Aparício obtém um
desempenho notável para uma iniciante. É
um dos grandes trunfos do filme. Será a
primeira indígena indicada a melhor atriz no Oscar. E já na sua primeira atuação no cinema.
ROMA,
vencedor do Leão de Ouro em Veneza, com dez indicações no Oscar 2019, é um trabalho
autoral de Cuarón, que atuou como diretor, roteirista, montador e diretor de
fotografia. Pela sua qualidade merece
ser visto na tela do cinema, mas é uma produção da Netflix, que está sendo
vista nas telas da TV. Está sendo
exibida em poucas sessões gratuitas nos cinemas, em algumas cidades do
Brasil. Isso acaba dando acesso a pouca
gente. Por outro lado, o lançamento em streaming deu uma dimensão maior à
divulgação do filme. O que é
especialmente interessante em se tratando de um trabalho artístico autoral, que
dificilmente alcançaria grande repercussão.
Mesmo considerando que o cineasta mexicano Alfonso Cuarón já tem uma
larga filmografia de sucesso também em Hollywood. São filmes dele, por exemplo, “E Sua Mãe
Também” (2001), “Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban “ (2004), “Filhos da
Esperança” (2006), e “Gravidade” (2013).
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ARÁBIA. Brasil, 2017.
Direção: Affonso Uchôa e João
Dumans. Com Aristides de Souza, Murilo
Caliari, Renata Cabral, Gláucia Vanderveld, Renan Rovida. 96 min.
O cinema dispõe de recursos poderosos para nos
trazer, reportar, realidades, que podem estar distantes de nós, não apenas por
meio de uma riqueza de informações, mas também com a carga emocional que a
situação apresentada requer. Bons
personagens, dentro de uma boa estrutura dramática, são capazes de nos levar a
viver a experiência de vida intensa e sofrida de pessoas que estão mergulhadas
em contextos sociais diversos dos nossos.
O filme
brasileiro ARÁBIA, por meio do
personagem Cristiano (Aristides de Souza) e seu diário encontrado após sua
morte pelo jovem André (Murilo Caliari), nos coloca em cheio na realidade do
trabalhador operário no Brasil dos últimos anos e da atualidade. Conhecemos sua existência bem de perto, o que
faz, como trabalha e se relaciona com as pessoas, suas andanças e mudanças,
desejos, esperanças, desilusões. Uma
vida muito dura, penosa, mas enfrentada com vigor e resignação. Emocionalmente nos transportamos para um universo
psíquico, que requer um equilíbrio precário e difícil, como fator de
sobrevivência, para além das circunstâncias materiais propriamente ditas.
Quem nos conta sua vida no cotidiano é o
próprio personagem, na narrativa descritiva e também reflexiva de seu suposto
diário, escrito em linguagem simples, mas nem por isso menos elaborada,
enquanto dimensão humana. Os diretores evitaram a intelectualização da escrita,
mas a deixaram consistente e profunda.
Detalhada demais para a situação, talvez. É essa narrativa simples e forte que
conquista o jovem leitor, que vive no mesmo ambiente e nas mesmas condições de
penúria e vulnerabilidade.
ARÁBIA
é um nome estranho à narrativa do filme.
Refere-se apenas a uma piada contada no bar, que ilustra uma percepção simplista
de uma situação inusitada, essa, sim, ligada ao contexto árabe. Mas é um título que esconde o que é o filme.
Grande vencedor do Festival de Brasília,
premiado como melhor filme. ator, montagem, trilha sonora e prêmio da
crítica. Foi bem recebido e premiado em
muitos outros festivais internacionais, especialmente em competições
latino-americanas.
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