quinta-feira, 7 de março de 2013

A PARTE DOS ANJOS

                                   
Antonio Carlos Egypto

A PARTE DOS ANJOS (The Angel’s Share).  Inglaterra, 2012.  Direção: Ken Loach.  Com Paul Brannigan, Siobhan Reilly, John Henshaw, Gary Maitland.  101 min.

A parte dos anjos é a quantidade de whisky que escapa pela evaporação, ao longo do tempo, ainda que guardada em barris de carvalho.  Se considerarmos que isso acontece mesmo com o melhor e mais refinado whisky do mundo, dá para perceber que essa tal parcela dos anjos vale muito dinheiro.  Imagine, então, que uma parte desse whisky tão valioso pudesse ser substituída por uma de um de menor valor e a perda fosse computada por conta da evaporação.  Executar um golpe como esse pode resultar em muita grana.  É um golpe de mestre, porque, antes de mais nada, é preciso saber desgustar e identificar um whisky assim.  Ou estar muito bem informado de onde ele possa estar e como ter acesso a ele, sem despertar suspeitas.
Bem, mas a parte dos anjos é também aquilo que os brasileiros conhecem bem, como sendo “o que vai pro santo”.  O gole que todo santo merece pelo que faz por nós e pelo que se precisa dele.  Pois a parte dos anjos que cabe ao santo também está presente, com esse sentido, no filme de Ken Loach.  O santo, no caso, é de carne e osso.  Alguém que foi solidário e ajudou na hora mais difícil acaba sendo premiado.  E como!

O valor que tem a parte dos anjos também depende de quanto há de disponível no mercado.  Quanto menos houver, mais caro será.  É a lógica de mercado.  Quando algo importante dessa parte se perde, o que sobra tem seu preço elevado às alturas.  E o filme ironiza essa lógica estranha, mas absolutamente familiar.
“A Parte dos Anjos” é um filme centrado no whisky, em tom de comédia e crítica social.  Passado, naturalmente, em Glasgow, na Escócia.  Onde mais poderia ser?  Com direito a visita guiada a uma destilaria de whisky, sessões sofisticadas de degustação do produto e o desabrochar de um talento natural, para distinguir e apreciar os odores e sabores da bebida.  Esse talento não aparece entre os ricaços que cultivam os hábitos burgueses e os locais sofisticados.  Mas, sim, num pobre rapaz, com um passado delinquente, que tenta sobreviver e escapar a perseguições.  No momento, está cumprindo pena, prestando trabalhos comunitários.  Robbie, esse é o nome do personagem, vai enfrentar poucas e boas até se dar bem, aprendendo a lidar com o mundo glamouroso do whisky e, principalmente, com a parte dos anjos.

O diretor britânico Ken Loach tem sempre um olhar dirigido especialmente aos que estão à margem do sistema, político, econômico ou social.  Os excluídos, os mais pobres, os perseguidos ou injustiçados, são personagens destacados da sua filmografia.  E são sempre personagens muito interessantes.  Via de regra, solidários, criativos.  Mas também descuidados, destemperados, tolos.  Não é nada maniqueísta.  Eles são os personagens que interessam. Tem um quê de heroísmo sua luta pela sobrevivência, são afetivos, muitas vezes, corajosos.  Mas inteiramente humanos, com suas contradições, seus medos e suas incoerências, também.  Por isso são cativantes, revelam o mundo humanista e crítico, mas esperançoso, do cineasta.
Em “A Parte dos Anjos”, o roteiro produz saídas engraçadas e quase miraculosas para os pobres diabos que são seus protagonistas.  Improvável?  Fabular?  Não importa.  Funciona, é divertido e capaz de produzir não só sorrisos e empatia com os personagens, mas também reflexão.  Ajuda a combater preconceitos.  E pode produzir efeitos surpreendentes.  Até quem não goste de whisky, nem curta a frescura que costuma acompanhar as degustações de bebidas ditas finas, vai se divertir com essas cenas. E é capaz de achar que tudo isso pode fazer sentido.  Ou que pode ser explorado por um lado bom. Ressalte-se que esse lado bom pode não significar estar do lado da lei.  Entendido?  Uma coisa é uma coisa.  Outra coisa é outra coisa.

O elenco de “A Parte dos Anjos”, todo composto por atores desconhecidos, pelo menos do público brasileiro, é um grande trunfo do filme.  Homogêneo, com bom desempenho e um timing adequado para o humor, possibilita o clima que faz um filme singelo se tornar encantador.



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