quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

ALÉM DAS MONTANHAS

                         
Antonio Carlos Egypto



ALÉM DAS MONTANHAS (Dupã Dealuri).  Romênia, 2012.  Direção e roteiro: Cristian Mungiu.  Com Cosmina Stratan, Cristina Flutur, Valeriu Andriuta, Dana Tapalaga.  155 min.


O diretor romeno Cristian Mungiu venceu a Palma de Ouro de Cannes, em 2007, com seu segundo longa-metragem, “4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias”, o melhor filme já feito sobre a questão do aborto na ilegalidade.  Ele focalizava o período opressor de Ceausescu como ambiente, mas acabou fazendo um filme universal.  Dá conta da questão na sua complexidade em qualquer contexto de repressão.  Trabalho brilhante.

Em 2009, coordenou um filme de episódios, dirigindo um deles, uma comédia que desmoraliza o totalitarismo: “Contos da Era Dourada” (veja crítica no cinema com recheio – outubro de 2010 ).


Seu novo trabalho é “Além das Montanhas”, também premiado em Cannes como o melhor roteiro, além do prêmio duplo de atriz para as duas protagonistas do filme.  Mungiu fez o roteiro, produziu e dirigiu “Além das Montanhas”, tomando por base o que está sendo chamado de romances de não-ficção, escritos por Tatiana Niculescu Bran.  Ela é jornalista da BBC de Bucareste e escreveu dois romances a partir de incidente ocorrido em 2005, no monastério de Tanacu, na Moldávia romena e de um julgamento que se seguiu aos fatos, em 2007.

O filme, portanto, parte dos romances que se valeram dos fatos jornalísticos.  Mas o roteiro é uma recriação ficcional, que procurou não se prender somente ao que aconteceu, mas acrescentou elementos que seriam pertinentes à situação, para gerar novos questionamentos.  A história é impressionante e filmada da maneira mais intensa e profunda possível.  Vamos apenas situá-la, para que se possa saber do que se trata.

Duas amigas: Alina (Cristina Flutur) e Voichita (Cosmina Stratan).  Alina vem da Alemanha, onde estava vivendo, em busca de Voichita, a única pessoa a quem amou na vida e por quem foi amada.  Só que Voichita recolheu-se a um convento isolado nas montanhas e agora ama Deus acima de todas as coisas.  E está disposta a qualquer sacrifício por Ele.  Com um concorrente assim, Alina perde o chão e as estribeiras.  Será acolhida como visitante no convento, onde tudo acontecerá.


De que amor estamos mesmo falando?  O que significa o livre arbítrio na vida das pessoas?  Será a indiferença um mal maior do que a própria intolerância?  O que é pecado?  Que papel pode ter a fé, o fanatismo, na produção de enormes erros cometidos em seu nome?

Bem e mal, afinal, são coisas relativas.  Em princípio, ninguém agiria visando ao mal em si.  Talvez o seu bem, em detrimento de outros, mas não o próprio mal.  E, paradoxalmente, a bondade e a crença podem ser altamente destrutivas.  O que a experiência de vida e a religião têm a oferecer diante de momentos de muito sofrimento?  E como lidar com coisas demoníacas que podem acometer as pessoas?  A doença pode estar na mente, no desejo não realizado?  Pode ser sobrenatural a sua origem?

São inúmeros os dilemas morais colocados pelo filme, que nos fazem refletir calmamente sobre tudo, sem julgar, sem tomar partido, revelando, mas deixando sempre a dúvida. 

Cristian Mungiu constrói uma narrativa em que os fatos, embora graves, importam menos do que a compreensão de cada aspecto daquela vida, o que se experimenta, o que se pensa e, sobretudo, o que se sente a cada passo.  Penetramos no convento, naquela montanha gelada, na pobreza da vida monástica, no desejo das criaturas, nas convicções do padre e da madre superiora, e também nas suas hesitações, em cada religiosa que presencia e participa de tudo.  Conhecemos as vestes, a comida, os ambientes, os hábitos.  E, porque vivenciamos tudo isso, o que se conta faz tanto sentido e chega tão fundo.

Cristian Mungiu
Mais uma vez, estamos numa história romena da atualidade, contada por uma jornalista/escritora romena, filmada por um cineasta romeno, numa produção do país, com atores locais.  As duas atrizes principais, premiadas em Cannes, são da cidade natal do diretor, Iasi.  E o alcance desse trabalho é universal.  O filme é envolvente, embora de ritmo lento, como a vida desse convento, antes da correria que se formará diante dos fatos narrados.  Quem não resistir à sua proposta e se entregar ao sentimento e à reflexão que o filme apresenta, sairá gratificado, qualquer que seja o seu posicionamento diante de Deus.  Obras de arte consistentes não fazem proselitismo.  É esse o caso aqui.

“Além das Montanhas” foi lançado na 36ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, sendo um dos maiores destaques desse Festival.


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