domingo, 3 de julho de 2011

ESTRANHOS NORMAIS

Antonio Carlos Egypto

ESTRANHOS NORMAIS (Happy Family).  Itália, 2010.  Direção: Gabriele Salvatores.  Com Fabio de Luigi, Fabrizio Bentivoglio, Margherita Bay, Diego Abatatantuono, Carla Signori, Gianmaria Biancuzzi, Alice Croci.  90 min.

Um escritor cria uma história que deve servir como roteiro de um filme.  Um filme de arte, de autor, não um filme qualquer.  Ele vai nos narrando o seu propósito.  Seu nome: Ezio (Fabio de Luigi).

Passa-se à apresentação dos personagens da história.  E aí cada personagem se apresenta por si mesmo, diretamente para nós, para a câmera.  Alguns mais elaborados, outros, confusos, sem saber como se apresentar.  Assim como qualquer pessoa, eles têm dificuldade de dizer quem são, o que lhes acontece, quais as suas intenções e o seu futuro.  Até porque ainda não sabem o que lhes reservará a escrita do roteirista.

Ficamos conhecendo o casal Vincenzo (Fabrizio Bentivoglio) e Anna (Margherita Bay) e a mãe de Vincenzo, a nona, que adora cozinhar e tem Alzheimer.  Vincenzo tem uma filha ruiva, de 27 anos, que vive às turras com seu cheiro.  Anna é mãe de Felippo (Gianmaria Biancuzzi), um garoto que todos entendem ser muito particular.  Aos 16 anos, é todo intelectualizado e está decidido a casar-se dentro de um mês.  A escolhida é Marta (Alice Croci), dispostíssima a fazer o que quer e isso inclui o tal casamento, também aos 16 anos dela.

Vincenzo e Anna vão receber os pais de Marta, vividos por Diego Abatatantuono e Carla Signori, para um jantar com vistas a se conhecerem e conversarem sobre o insólito casamento.  Os pais de Marta são estranhos o suficiente para que a excentricidade da situação se complete.  Ah! Mas Anna convidou Ezio, o escritor, para estar presente, depois de uma trombada que vivenciaram juntos na rua.  Ele não só comparece ao jantar como fica muito à vontade.  Afinal, como autor, ele conhece esses personagens.  E assim vão se construindo situações sempre dinâmicas, bem humoradas e com diálogos inteligentes.

Os personagens procuram influir na trama, encontram seus próprios caminhos, buscam convencer o autor a ir para onde querem que ele vá.  Mas ele interage e reage: não quer saber dessas influências e sabe que o poder é dele.  Sim, ma non troppo, a criatura interfere na criação, queira o autor ou não.

Um escritor contemporâneo pode, entretanto, optar por uma obra aberta, sem fechar ou solucionar as questões tratadas.  Mas, nesse caso, terá de enfrentar o desafio de conviver para sempre com seus personagens dentro de casa. Quem aguenta uma confusão dessas!

Essa matéria-prima de que se compõe “Estranhos Normais” está muito bem trabalhada no filme de Gabriele Salvatores. Embora sobrem alguns fios soltos, a obra tem grande fluência, capacidade de comunicação com a plateia e arranca boas risadas do público.

A ficção que interage com a realidade assume aqui um tom irônico, que se dirige ao próprio filme.  Por exemplo: “Estranhos Normais” tem uma trilha sonora de Simon & Garfunkel.  Por quê?  Porque este foi o único disco que sobrou na casa de Ezio, depois que ele se separou da mulher.  Hoje quase ninguém mais ouve Simon & Garfunkel, mas foi o que restou.  E, na verdade, é uma boa trilha que depois incluirá Chopin, já que um dos personagens se revelará uma pianista de concerto.

Ecos de Pirandello e os personagens à procura do autor, “Rosa Púrpura do Cairo”, de Woody Allen, boas inspirações que valorizam a eficácia da proposta do filme de Salvatores, que tem um clima que poderíamos classificar de ultracontemporâneo, na falta de melhor nome.  Toda diversidade cabe, tudo pode ser possível, moralismos já não têm lugar e os acertos e erros de cada personagem – e do autor – têm suas consequências.  Mas, afinal, cada um sabe de si.  E é sempre possível reconstruir a vida.  Embora a gente passe toda a vida cheio de medos, todos os tipos de medo.

O roteirista nos informa que seu filme, considerando todos os medos que tem, só poderia ser sobre o medo.  Na verdade, “Estranhos Normais” acaba sendo sobre o único medo que realmente conta: o medo da morte.  Esse, realmente, insuperável.  Mas talvez seja possível mitigá-lo, contorná-lo por planos que incluem uma volta ao mundo.  E, sobretudo, sem negar a dor, vivê-lo sem grandes dramas.

O elenco de “Estranhos Normais” é bastante homogêneo e muito bom.  Todos conseguem dar credibilidade a seus estranhos personagens, sem exceção.  Gabriele Salvatores é o mesmo diretor de “Mediterrâneo”, que em 1992 ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro, uma fita que tem também um clima muito peculiar e envolvente.

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