O ANJO EXTERMINADOR (El Ángel Exterminador). México, 1962. Direção: Luís Buñuel. Com Silvia Pinal, Enrique Rabal, Jacqueline Andere, José Baviera, Luís Beristain. 95 min.
Um sofisticado jantar da alta burguesia num suntuoso casarão é o ponto de partida de que o cineasta Luis Buñuel se utiliza para nos revelar o lado sórdido desse mesmo encontro. Sórdido porque, para além das convenções sociais, está uma classe social escorada no seu narcisismo, no seu ócio e no seu luxo, insensível ao outro e ao mundo que a cerca.
O filme, brilhantemente, encurrala as pessoas num salão no interior do casarão, de onde não podem sair por uma barreira invisível, já que tudo está escancarado, e são obrigadas a conviver numa situação-limite, em que a falta é a regra.
Estranhezas são mostradas já na fase anterior ao convívio forçado que será o centro da narrativa. Uma gentil saudação é tentada por um dos convivas por duas vezes e ninguém lhe dá atenção. Trata-se de alguém que não deveria estar nesse lugar ou merecer a atenção dos demais, como se verá depois, ou, ainda, que as pessoas estão muito ocupadas consigo mesmas, com a comida e as conversas para se preocupar em cumprir os rituais dessas ocasiões.
Uma das convidadas é paciente do médico, outro dos convidados, e o chama para dançar. Em seguida, lhe dá um beijo inesperado. Ele pergunta se é transferência, referindo-se ao mecanismo de identificação que o paciente costuma ter com o seu médico. Ela acaba confirmando a idéia, pois diz que faz tempo que queria satisfazer esse desejo. Efetivamente, os desejos são contidos por papéis sociais ou por relações socialmente estabelecidas, como a que envolve médico e paciente. O mecanismo dessa transferência, analisado por Freud, serve ao próprio terapeuta para que ele possa lidar com essas emoções que o paciente lhe dirige, que estão deslocadas e não são, efetivamente, dirigidas à pessoa do terapeuta (ou do médico, no caso). A compreensão e o equilíbrio desse médico servirão de contraponto ao descontrole que tomará conta do grupo de pessoas envolvido naquele jantar, logo a seguir.
Detalhes exóticos também aparecem: pés de galinha e penas vistos numa bolsa farão parte de um ritual esotérico que tentará resolver sem sucesso a situação, mais tarde. O apelo ao pensamento mágico é revelador tanto de insegurança quanto de imaturidade, já que remete a estruturas de funcionamento primitivas.
As pessoas se sentem cansadas, têm compromissos no dia seguinte, querem partir, uma delas com urgência, mas, estranhamente, vão ficando. Desfazem-se das gravatas e de outros incômodos dos trajes sociais, vão se pondo à vontade, deitam-se nos sofás. Um homem passa mal e mesmo assim ninguém sai. E já que ninguém consegue sair, todos terão de dormir ali, no chão, em cadeiras ou sofás disponíveis. Improvisa-se um café da manhã. Alguns ficam perplexos: “Todos quiseram ficar”. “Não acho isso natural”. Com efeito, é a quebra absoluta das regras dos contatos sociais. Só imaginável numa proposta surrealista como a do filme, que se utiliza dela para revelar o que está por trás da “farsa” social dos poderosos.
Acaba a comida, a água, não há banho para tomar, roupa para trocar ou remédio para os enfermos, embora haja o médico entre os presentes. O ambiente se deteriora, o homem que passava mal acaba morrendo e tem de ser guardado num armário, que será vedado para minimizar o cheiro.
Ninguém pode ouvi-los ou socorrê-los, porque também não é possível entrar. Nem mesmo as crianças conseguirão. Mas por ali circulam carneiros e um urso, os animais estão à solta, representando o livre curso dos instintos, enquanto os impulsos estão represados pelo comportamento civilizatório dos humanos. Isso enquanto as carências aguentarem, porque, conforme diz um provérbio mexicano, “depois de 24 horas, cadáveres e convidados começam a feder”.
As convenções sociais, inclusive a etiqueta, têm a função de manter convenientemente as aparências, evitando o desconforto da expressão de emoções, como a raiva, o ciúme, a inveja. Pode até haver ironia ou sarcasmo, mas a agressividade costuma ficar contida, as brigas, evitadas, os interesses mútuos, preservados. O ódio se traveste de amor, o outro lado da sua moeda. A cordialidade e os elogios fazem parte da máscara e da imagem que pretendemos ter sob controle, na relação com os demais. As situações de encontro social, como bem o sabia Buñuel, são aquelas que mais se prestam a uma teatralidade fingida, a um jogo de cena, que chega a ter requintes de crueldade, mesmo nas situações que estão sob o controle das regras civilizatórias de conduta. Que dirá na situação-limite proposta por O Anjo Exterminador?
Os anfitriões, que devem ser sempre educados e gentis, se tornam escancaradamente grosseiros. A infidelidade que se escondia num “segredo”, que mais valia a pena fingir ignorar, chega ao limite da briga, da agressão física e verbal e do desejo de matar, além da atribuição de culpa pelo sucedido ao “responsável” pela situação. Irracionalidade pura, como assegura o médico, aquele que procura manter sua dignidade até o fim.
Trata-se de irracionalidade, sim, pois aqui estamos no terreno do inconsciente, dos impulsos e pulsões que escapam ao controle. Nas situações corriqueiras da existência, o super ego consegue manter sob controle os impulsos do id, tendo o ego como mediador. O inconsciente se revela em atos falhos, na produção onírica, intelectual ou artística do sujeito, mas a vida segue seu fluxo e é de bom tom não perceber ou ignorar certas coisas, nos ambientes formais. As frustrações podem ser camufladas por meio de representações e mecanismos de defesa, como a negação ou a racionalização. Mas quando a frustração é muito grande, como nessa situação-limite, os desejos já não conseguem realização nem parcial ou por meio da fantasia, embora os sonhos persistam na febre dos enfermos.
A sede leva não só a arrebentar o encanamento da sala como à disputa selvagem pela água, desrespeitando as mais elementares regras de convívio, segundo as quais, por exemplo, deve-se dar prioridade às mulheres e aos doentes. Se alguém ainda se lembra disso, é quase por milagre, já que aqui a mera sobrevivência se faz de forma instintiva, sem consideração para com a alteridade. Gestos heróicos e magnânimos em situações-limite são objeto de outro tipo de cinema, hegemônico e comercial, não da obra crítica e demolidora do mestre Buñuel.
Desejos sexuais e amorosos, fortes e intensos, podem buscar satisfação. Num salão cheio de armários sobra um para os amantes se esconderem da horda grupal, mas a consequência será a morte por falta de ar. O desejo não consegue se sobrepor à morte, é subjugado por ela, nesse caso. Também porque não pode haver saídas individuais em momentos de descontrole coletivo ou politicamente obscuros. A referência ao período da ditadura sanguinária de Francisco Franco, na Espanha, e ao papel repressor da igreja é muito evidente nas cenas da polícia baleando o povo na rua, os carneiros entrando na igreja, onde a mesma barreira invisível prenderá padre, auxiliares e fiéis, tal como ocorrera no salão burguês.
As pessoas simples, os serviçais da casa, escapam dessa opressão. Intuem que algo vai acontecer e saem da casa antes que os fatos se dêem, mesmo sem saber por que e com a consciência de que estão fazendo algo errado, ao deixar o mordomo sozinho numa noite de jantar para 20 pessoas. O mordomo é o único que fica, pois está mais identificado com o mundo burguês, comunga dos mesmos valores. Ele ainda consegue manter um comportamento algo controlado e continua a serviço dos demais, de alguma forma. Até quando come papel e oferece a uma convidada, mantém a postura. Os demais serviçais estarão de volta, também intempestivamente, no momento em que a situação estiver a ponto de se resolver dentro da casa, tempos depois. O tempo corrói a experiência do convívio forçado até níveis degradantes antes que esse momento aconteça.
Hostilidades, desprezo, cinismo, grosseria, violência e sujeira fazem parte da experiência dos convidados ao banquete e de seus anfitriões. Como que a revelar as fragilidades humanas, impulsos destrutivos podem apossar-se das pessoas em situações-limite. Isso, enquanto generalização, porque Buñuel situa os fatos historicamente, embora sem precisá-los, e dentro de uma classe social determinada. Ainda assim é possível pensar numa dinâmica humana mais geral, uma essência vulnerável do ser que, de alguma forma, está sempre presente pelo menos em potencial.
Não são 90 pessoas no jantar, são 20. E não entendi uma coisa: se a morte do casal no armário foi por falta de ar, por que há sangue? Acho que eles se mataram, porque o homem disse que queria fugir daquilo e a mulher disse que o acompanharia.
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