Antonio Carlos Egypto
CÓPIA FIEL (Copie Conforme). França-Irã, 2010. Direção: Abbas Kiarostami. Com Juliette Binoche e William Shimell. 106 min.
Diz a sinopse oficial do filme “Cópia Fiel”: “Um homem e uma mulher se encontram em um pequeno vilarejo, no sudoeste da Toscana. O homem, um escritor britânico, que acabou de dar uma palestra em uma conferência. A mulher, francesa, dona de uma galeria de arte. Essa é uma história comum. Poderia acontecer com qualquer um, em qualquer lugar”. Será mesmo? Vindo do talento criativo do diretor iraniano Abbas Kiarostami, não acredite.
Para começar, o homem é um escritor que levanta questões não triviais. Seu livro, Cópia Fiel, que dá nome ao filme, questiona o que é ser original e o que é ser cópia na arte e na vida. Cópias são tratadas como originais, na arte. Quantos “Beijos” de Rodin, por exemplo, originais, existem?
Cópias podem ter função idêntica a originais, no mundo. Cumprir a mesma função prática ou estética. Ou, mesmo, serem mais valorizadas em algumas situações ou por algumas pessoas. O “peso” dos originais pode ser muito grande e incômodo. Evidentemente, tudo isso é muito relativo e, colocado na perspectiva concreta, pode dar origem a dilemas morais interessantes.
Os diálogos entre esse homem e essa mulher vão pontuando, com essa temática, toda a primeira parte do filme. Não são coisas comuns ou banais, embora possam fazer parte da vida das pessoas, em qualquer tempo ou lugar. Não sem conflitos, seguramente.
A horas tantas, “Cópia Fiel” vai promovendo uma virada na relação entre os dois personagens e entramos em cheio na vida conjugal, suas expectativas, desejos, frustrações, lembranças, rancores, abandonos. E a segunda parte do filme mostra todo um universo complexo das relações homem-mulher que, inevitavelmente, nos coloca novos desafios e reflexões tão importantes quanto os que ocuparam as atenções do escritor e da dona da galeria. Quem são eles agora? Cópias fiéis das realidades conjugais? Singularidades que se revelam? Aquilo que estava escondido nos papéis que viviam?
O filme poderia ser visto do meio para a frente e fazer todo o sentido. Poderia também começar daí e continuar na primeira parte, encerrando-se nesse mesmo ponto. Se tivesse só a primeira parte, já seria um média-metragem excelente. Assim como só a segunda. A rigor, ele poderia começar ou terminar no meio. Sua narrativa é circular. E, dependendo da escolha que se fizesse na montagem, ele ensejaria novas visões. Do jeito que está, é uma obra aberta a muitos significados e possíveis interpretações. Qual a verdade? O que é original e o que é cópia, no sentido de quem gerou o quê? E, também, quem somos, o que somos, o que nos move, afinal?
O que parecia uma história comum se revela um filme experimental, com um formato original. Não surpreende, em se tratando de Abbas Kiarostami. Ele sempre buscou novos caminhos. Basta lembrar “Shirin”, de 2009, exibido somente em festivais, sem lançamento comercial no Brasil. Nesse filme, apenas as espectadoras de um teatro são focalizadas, nunca a peça, que só é ouvida. Ele já fez um filme inteiro, utilizando uma pequena câmera dentro de um carro, em “Dez por Dez”, de 2003. Deixou uma câmera fixa e imóvel numa rua portuária, em “Cinco”, de 2004. Tratou do dilema de um suicida, em “Gosto de Cereja” (1997), da construção da cena cinematográfica, em “Através das Oliveiras” (1994). Já em 1987, ele havia feito um lindo filme, todo contado pela ótica de um menino pequeno. “Onde fica a casa do meu amigo?” é uma película marcante, da tendência neorrealista, que o cinema iraniano explorou por meio de personagens infantis, nos anos 1980 e 1990, para fugir aos ditames da censura.
Só que a situação no Irã se complicou, com o recrudescimento da censura e do controle sobre o seu festejado cinema. A ponto de manter na cadeia e proibir de trabalhar um dos mais talentosos diretores do cinema iraniano, Jafar Panahi, de “O Balão Branco” (1995).
“Cópia Fiel” é um filme com personagens europeus ocidentalizados, falado em francês, italiano e inglês. A presença das três línguas aí contribui para mostrar as dificuldades atuais de comunicação, assim como quando o celular interrompe o próprio palestrante. O cartaz mostra Juliette Binoche em lábios com batom forte e longos brincos, o que seria impensável no Irã. Ela foi premiada em Cannes como melhor atriz por essa fita. É realmente um grande desempenho.
Kiarostami filma no exterior e já sabe que seu filme não deve ser exibido no Irã. É lamentável que o país, ao invés de se orgulhar da filmografia que conseguiu construir e que lhe deu inegável projeção cultural no mundo, cale ou interdite a voz de seus melhores cineastas. Regimes de força não conseguem, mesmo, conviver com a crítica, a inovação e o experimentalismo. É algo recorrente.
No caso específico de Kiarostami, ele é hoje um dos mais importantes diretores de cinema em atividade. Tem espaço mais do que suficiente para que seus filmes sejam conhecidos e apreciados em todo o mundo, a partir de sua apresentação nos grandes festivais de cinema europeus. É um cineasta global e um grande artista, que vive contribuindo para que o cinema experimente e avance.
Belíssimo comentário a propósito do filme e da filmografia do autor. Que pena não há na imprensa críticos com essa abordagem, generosa, mais profunda em relação aos filmes e seus criadores. Parabéns! Cumprimentos também por compartilhar o comentário no dia em que se noticia a morte de Kirarostami. Vou pedir licença também e compartilhar, aduzindo ao meu post anterior essa justa homenagem.
ResponderExcluirMuito obrigado, Paulo Antunes. Pode compartilhar à vontade. Quem sabe isso ajuda a diminuir a nossa tristeza pela perda desse mestre do cinema.
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