Carolina do Couto Rosa
Imagine se todos nós tivéssemos um trabalho inacabado e que pudéssemos depois de anos revê-lo e recriá-lo? Muitos ao deparar com seu passado já desistiriam, alguns se divertiriam em observar como as coisas mudaram, outro,s tirariam daquilo uma lição, e se estiverem dispostos a aprofundar nas questões das transformações se questionariam como um dia puderam agir daquela forma ou daquele jeito.
Foi esta oportunidade que João Moreira Salles encarou ao desenterrar o material que havia filmado em 1992, quando tinha 30 anos. Era um homem jovem, que já havia produzido alguns documentários para televisão, mas ainda não podia se considerar um homem experiente. Em 1992, João havia visto em Santiago um personagem interessante, exótico, digno de ser filmado e registrado, mas ao encarar o filme na ilha de montagem, percebeu que aquele material não tinha potencial para interessar ao expectador, concluiu que Santiago era interessante para ele e que talvez não fosse tão instigante ao publico, desistiu de prosseguir com o projeto.
Treze anos mais tarde, resolve recuperar o material, para tentar “sanar as aflições que lhe rondavam a alma”, fez de Santiago um filme terapêutico, por ter descoberto que os anos passam, que ele havia amadurecido e envelhecido e que aos 43 anos estava atravessando por uma intensa crise pessoal. João comenta em entrevista dada no mês de agosto de 2007, para a Revista Bravo, o porquê decidiu retomar o projeto.
“Intuitivamente, julguei que retomar o documentário inacabado me ajudaria a organizar o caos em que me imergira. Há quem no meio de uma tempestade existencial resolve usar drogas, viajar a Lourdes e clamar por um milagre, conhecer o Dalai Lama ou praticar esporte. Eu resolvi fazer um filme.”
E desse descarregar de angustias e da tentativa de libertação nasce Santiago, um filme que através da personalidade do mordomo, João se expõe como um segundo personagem integrante do documentário e é daí que sua originalidade assume a posição de destaque.
Todo o filme é um conflito entre o João de 30 anos com o João de 43 anos e desse enlace que nasce a narrativa do filme de forma a desconstruir o que ele havia registrado anos atrás, existe sempre uma quebra, uma critica a si próprio, uma transparência de como o filme foi feito.
O João de 30 anos teve 5 dias para filmar o octogenário Santiago em seu pequeno apartamento no Rio de Janeiro. Levou junto consigo uma amiga e o experiente diretor de fotografia Walter Carvalho. Com sua equipe, conseguiu produzir cenas refinadas e elegantes com uma belíssima fotografia inspirada no cineasta Yasujiro Ozu, carregada de um requinte rude e distante. Os enquadramentos de planos de conjunto, com raros primeiros planos e poucos closes, sempre mantendo um distanciamento entre o entrevistado e o entrevistador. As crenças do João de 30 anos, eram de que o filme deveria ser impecável, que os movimentos e textos feitos por Santiago deveriam ser repedidos até atingirem a perfeição.
Já João de 43 anos, não acredita mais que se possa fazer um documentário que pretende contar uma historia real, dirigindo o personagem, mandando ele se mexer do jeito que o diretor achava que devia. Hoje João deixaria Santiago agir como quisesse, e falar o que pretendesse. Desse conflito de gerações de um cineasta, nasce talvez um marco nos documentários brasileiros.
Santiago Badariotti Merlo, era um argentino de sangue italiano, poliglota, possuidor de um dialeto próprio. Misturava culturas e línguas e possuía uma imensa paixão em registrar momentos históricos que só lhe interessavam, achando que estava fazendo uma grande contribuição à humanidade. Estes registros eram considerados por ele “abortos mentais”, que neles exprimiam seus sentimentos e seus conhecimentos. Com sua riqueza cultural fenomenal, redigia uma espécie de enciclopédia das aristocracias de todo o mundo, biografias de reis, chefes indígenas, astros de Hollywood e da TV, algo como a Historia Universal das Celebridades, e desta fantasia é que se mantinha vivo, fazendo o que considerava ser a sua parte nesta vida.
Era um homem, que tocava Beethoven vestido de fraque, rezava em latim, fazia belíssimos arranjos florais, dançava bem e escrevia lindas poesias. Esse homem era realmente digno de um filme.
Trabalhou na casa da Gávea, para o rico Walter Moreira Salles, durante 30 anos e viu João crescer e tornar-se um homem. Sempre muito eficiente em suas tarefas, nos conta a dificuldade que era organizar e oferecer as grandes festas nas quais a família Salles recebia personalidades de todo o mundo. Mostrou-se cansado, mas feliz. Tinha um jeito sempre recatado, contido e submisso, afinal havia feito isso a vida inteira e no filme, como espectadores, nos sentimos sem graça quando João lhes da ordem para refazer o texto, corta logo em seguida que ele começa a falar, para corrigir o movimento da cabeça, o tempo todo nos deparamos com a relação explícita de um mordomo e seu patrão.
Todo o tempo, João controla as ações e o que Santiago deve dizer ou não. Em um momento bastante revelador, Santiago chama João e tenta lhe contar algo, que nos parece ser sobre sua sexualidade, neste momento a câmera esta desligada, mas o som continua rodando e pelo som ouvimos que João não permite que Santiago se expresse ou talvez se exponha.
Aqui percebemos que som é cinema e como o próprio João diz: “o documentário foi reinventado por diretores que filmavam com “os ouvidos mais atentos que os olhos””
Em seu ultimo filme até agora, percebemos que João não se preocupou em seguir nenhuma escola teórica, nenhuma regra de documentário ensinadas por Jean Rouch, Robert Drew ou até mesmo Eduardo Coutinho, por quem João tem uma amizade e uma obvia admiração, aqui ele segue seu caminho, volta com a narração em off da escola inglesa de Grierson e mistura tudo que lhe parece pertinente, tudo que sentiu necessidade.
É um filme que claramente foi solucionado na montagem. João juntamente com Eduardo Escorel e Lívia Serpa fizeram um trabalho de narração, de moldagem, de amarração. As cenas não estavam conseguindo contar uma historia, iria ser um filme normal se não fosse pela coragem de João de se expor e se redimir e, finalmente aliviar sua angustia e sua crise pessoal, motivo pelo qual tudo começou.
Carolina do Couto Rosa
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