quinta-feira, 24 de abril de 2008
A Morte Cansada
Fernanda Furquim
Desde o início do século XIX que o povo alemão passou a cultivar o sonho de se tornar um dia uma grande potência germânica, não apenas econômica e política, mas, também, cultural. Em busca de concretizar esses sonhos a Alemanha foi o agente provocador de várias guerras e batalhas em prol de sua unificação que culminaram na 1ª Guerra Mundial em 1914. Ainda assim, conseguiu reerguer-se duas vezes, dando ao mundo algumas das melhores expressões artísticas de todos os tempos, e sua inestimável contribuição ao cinema mundial.
O ano é 1919. A 1ª Guerra chegara ao fim após anos de lutas e morte. A Alemanha derrotada, está devastada, politica, econômica e socialmente. Na cidade e nos campos estão as marcas das batalhas que, direta ou indiretamente, deixaram buracos, trincheiras, corpos e um cheiro de podridão, tristeza e desolação. A época de grandes conquistas para o Segundo Reich terminara, dando lugar à desconfiança, desesperança, incredulidade e ao sentimento de abandono da população onde, vez por outra, surgia tentativas de organizar-se e derrubar o governo agora civil.
A solidão, o temor do que o futuro poderia reservar-lhes e o constante medo da morte que parecia impregnar o dia-a-dia, a despeito da Guerra ter terminado, predominavam. Os efeitos da Guerra no povo alemão e nas demais nações envolvidas foi traumático. Todo o otimismo gerado pelo crescimento econômico e tecnológico do Século XIX desapareceu. Os sobreviventes voltaram para casa desorientados e sem perspectivas de um futuro. A crueldade dos campos de batalha e a perda de milhares de vidas humanas aliadas ao requinte de crueldade e sadismo, revelados aos poucos, levaram o povo a um estado de perda do sentido da vida.
As nações, como um todo, acreditavam que esta tinha sido a pior de todas as Guerras. O testemunho dos horrores que viveram nos campos de batalha provocaram nos soldados um efeito de estresse pós-traumático que os levaram à desorientação e à depressão. O trauma provocado pela Guerra manifestou-se de diferentes formas na sociedade alemã, desde pequenos movimentos de revolta política, passando pelo movimento de apoio à organizações de ajuda internacional às vítimas da Guerra, chegando ao ponto de gerar um movimento saudosista. Retornar a uma época em que a vida era mais simples provocou também um sentimento de rejeição às responsabilidades e às mudanças que a vida moderna ainda poderiam trazer.
É neste cenário que surge o movimento expressionista no cinema alemão. Mudanças políticas em um país arrasado econômica e psicologicamente, que resultam em um questionamento moral, fez com que o movimento representasse fielmente a perda do equilíbrio, a desproporção e a desorientação pela qual viviam os alemães e a sociedade como um todo. O tema da morte tornou-se presente, seja em sentimentos de medo, em assassinatos, em agentes condutores ou mesmo na sua presença materializada.
Retratando esse tema, Fritz Lang trouxe para o público o filme “A Morte Cansada/Der Müde Tod”, de 1921, na qual temos uma jovem (Lil Dagover) que tenta resgatar seu amado (Walter Janssen) dos braços da Morte (Bernhard Goetzke). O filme tem início com uma viagem do casal pelo interior, parando em um vilarejo. Lá, eles encontram um homem misterioso, de poucas palavras que recém comprara um terreno ao lado do cemitério local. Neste lugar, ele construiu um gigantesco muro que cerca toda a propriedade, isolando-o, afastando os indesejados e se aprisionando neste mundo terreno onde, apesar da morte estar separada, mantém-se próxima dos homens.
A vida no vilarejo não altera seu ritmo em função desse muro que os separa, as pessoas continuam nascendo, vivendo e morrendo e, é exatamente o que acontece com o jovem noivo. Após seu período de vida chegar ao fim, ele é levado pela morte a atravessar o muro juntamente com as almas de outros que fazem a passagem. Inconformada com o desaparecimento do homem de sua vida, e acreditando que o amor é mais forte que a própria morte, a jovem noiva sai à procura da Morte para pedir a devolução de seu amado.
Em um ambiente onde encontram-se inúmeras velas acesas, cada uma de um tamanho diferente tem início o diálogo entre vida e morte. Esta, então, revela-se extremamente humana diante de tanta irracionalidade e desespero. Cansada de ser culpabilizada pela infelicidade das pessoas quando está apenas cumprindo seu dever ao levar consigo as vidas daqueles que chegaram ao seu destino, a Morte faz um trato com a jovem. Apresentando cada vela como representante de uma vida, ela lhe faz uma proposta: se a moça conseguir salvar uma de três velas, provando que sim, o amor é mais forte que a morte, ela lhe devolverá seu amado. O filme então parte para a narrativa das três vidas representadas pelas velas, nas quais a jovem e seu amado representam casais que viveram em épocas e locais distantes, sempre separados pela morte do jovem.
Em meio a cenários suntuosos e uma visão fantástica do mundo, Fritz Lang apresenta a simplicidade dos sentimentos do ser humano diante do inevitável fim. Desmistificando a própria morte ao lhe dar um rosto e sentimentos próprios em relação a ela mesma e à forma como as pessoas a vêem, Lang conseguiu desenvolver uma narrativa intimista de auto-análise sobre o sentido da vida. A morte deve ser temida ou almejada? Se o medo que temos dela nos paralisa e nos faz fugir dos prazeres e das alegrias da vida, porque torná-la tão presente ao ponto de lhe darmos um rosto e uma participação constante em nossa existência? Não aceitando a partida de alguém, estamos morrendo ao mesmo tempo, com a diferença de que ainda estamos aqui.
Nas histórias das três velas, temos uma metáfora da vida após a morte, a reencarnação, visto que as três histórias são vividas pelo mesmo casal, mas se passam em épocas diferentes. Um casal que está fadado a viver separado. Em todas as histórias, a jovem é o agente que inadvertidamente provoca a morte do ser amado. Desta forma, Lang mostra que somos nós mesmos, com nossas atitudes, responsáveis pelas conseqüências de nossos atos; e não um fator externo ou mesmo divino apesar da figura do poder ser sempre retratada como o responsável pela morte no ato físico.
Movida por amor e não por fé, a jovem do filme ignora qualquer ato racional, buscando freneticamente alcançar seu objetivo e derrotar a morte. Em seu derradeiro desespero ela apela para os moradores do vilarejo em uma busca vã de encontrar alguém que queira trocar de lugar com seu noivo. Até que, ao conquistar o poder de decisão, metaforicamente colocando-se na posição do governo através da qual pode decidir quem vive e quem morre, ela conscientiza-se das conseqüências de seus atos e se sacrifica no lugar de outro. Com essa incontestável prova de amor, a Morte une novamente o jovem casal, até sua próxima aventura na Terra.
Filme realizado na transição entre duas décadas, “A Morte Cansada” traça um paralelo entre a vida e a morte, a aceitação do novo e das mudanças que estão por vir, com o enrraizamento ao passado e o medo de um futuro. O presente não existe, ele está suspenso enquanto a personagem faz uma viagem ao passado e a outras épocas, tentando mudar seu destino, para concluir que não deseja fazer parte da vida em um futuro que desconhece, sem o amor para conduzir suas ações, pensamentos e sentimentos.
Solitária e cansada, a Morte se revela humana em relação à vida. Despojada de qualquer sentimento de amor ela não é movida pelo desespero, pela ganância, pelo sentimento de poder aos quais os seres se submetem para alcançar seus objetivos. Ela é paciente, compreensiva, cumpre com seu dever, pois têm consciência do sentido da vida. Mesmo sabendo qual será o resultado dessa história, ela se propõe a dar à jovem o poder de decidir quem vive e quem morre, assumindo, assim, seu lugar.
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