A inquietude entre o clássico e o contemporâneo em Pasolini
“A morte não está em não poder se comunicar, Mas, em não sermos compreendidos”. Pier Paolo Pasolini (1922-1975)
Ed Anderson Mascarenhas
Ainda adolescente tive meu primeiro contato com o universo transgressor de Pier Paolo Pasolini ao tomar emprestado de uma amiga um livro intitulado Teorema que li em questão de poucas horas. Um tempo depois soube que havia a versão em vídeo com o Terence Stamp no papel do “hospede”. A minha cabeça “fervilhou” de curiosidade ao imaginar como ele havia conseguido colocar na tela o vigoroso texto do livro. Anos mais tarde assisti a versão em DVD e confesso ter tido outro impacto, diferente e não menos inesquecível. Um enfoque contemporâneo de uma sociedade alegórica e mordaz. No último sábado assisti a uma versão teatral de Os 120 dias de Sodoma, do Marquês de Sade, que foi o tema do último filme realizado por Pasolini em 1975, encenada pelo grupo Os Satyros na Praça Roosevelt, no centro de São Paulo, local até pouco tempo tido com marginal. No ano passado ganhei de aniversário a versão em DVD de Medeia, dirigido por Pasolini em 1969, baseado na tragédia de Eurípides e que também teve uma bela versão no teatro, há alguns anos, dirigida por Antunes Filho. E cá estou eu com estas três vertentes - literatura, teatro e cinema – que apresentam como síntese o universo transgressor deste artista italiano com uma inquieta obra que se situa no panorama atual com intensa vitalidade.
O cinema do italiano Pier Paolo Pasolini (1922-1975) parece ser anacrônico em sua apresentação, no que diz respeito ao que se apresenta em desacordo aos usos e costumes de uma época. Em relação a estes, os seus filmes são imperfeitos, com instintiva intensão, ao produzir imagens envolventes - por vezes belíssimas - que ameaçam independer do todo sem priorizar a montagem e a narrativa seqüenciada, com total desprendimento da técnica e abordagem desconcertante do tema. Tomado de uma forma hibrida os elementos de linguagem da sua obra cinematográfica ficam soltos, ao fugir do naturalismo, dando ênfase à montagem, como imprescindível recurso de estilização.
Desde o seu primeiro filme, Accattone (1961), Pasolini enfrentou problemas com a censura. Esta experiência artística foi tida como obra contrária a moral ao retratar ladrões e prostitutas, sendo mal recebido pela crítica e pelos comunistas, até então convencidos da ausência do sub-proletariado. Para Pasolini existia algo de sagrado e religioso, em sentido vago, na marginalidade, para quem possuía uma real degradação humana. Para exemplificar sua postura na prática, chegou a utilizar a música de Bach como trilha sonora e enfocou os personagens como figuras de arte sacra. Radical em suas manifestações, seja no cinema ou na literatura, este cineasta provocador sempre teve como pólo antagônico o pensamento conservador com o seu espírito crítico e blasfemador.
Ao tornar-se um meio da cultura de massas, e consequentemente um instrumento de alienação, o cinema provocou nova postura à produção artística de Pasolini – uma forma de oposição através de um cinema impopular e inconsumível, como a poesia, a síntese do seu trabalho. Denominando-o a partir de então de “cinema de poesia” em oposição ao cinema narrativo tradicional, que chamou de “cinema de prosa”.
Segundo Luiz Nazário em seu livro Pier Paolo Pasolini – Orfeu na Sociedade Industrial, publicado pela editora Brasiliense, Pasolini considerava a recusa um gesto essencial dos santos, dos eremitas e, também, dos intelectuais. Quem recusa engaja toda a existência: numa palavra, lança seu corpo na luta. Ele era um intelectual engajado que preconizava um verdadeiro processo contra os homens do poder, culpados de levar o país à ruína. Pensava como um idealista e não tinha vergonha de dizê-lo. Para ele atrás de quem escreve deve se encontrar a necessidade de escrever, a liberdade, a autenticidade, o risco.
Entrevistado por Jean Duflot na publicação As Últimas Palavras do Herege, editora Brasilense, 1983, sobre os seus primeiros contatos com o cinema, Pasolini afirmou: “ Se não me engano, a primeira imagem-lembrança que tenho do cinematógrafo é um cartaz. Eu devia ter quatro ou cinco anos: a imagem de um tigre solto, devorando um homem, do qual o mínimo que posso dizer é que parecia sofrer maravilhosamente. Senti, então, o mesmo prazer que sinto ao me lembrar, hoje, desta visão? Com certeza. É em todo o choque “cinematográfico” de que me recordo”. Depois foram os filmes mudos, e um ou dois filmes de guerra, doa quais tenho apenas uma lembrança confusa. Mais tarde, em Bolonha, pude ver no “cine-guf” um certo número de filmes clássicos, a granel: Renoir, Chaplin,Dreyer, etc.”.
Em Medeia (Medea,1969) Pasolini vai em busca das origens do sagrado, recriando os grandes mitos. E é através de um universo mítico que o filme mostra a oposição de dois mundos: o universo misterioso de Medéia – interpretada com a beleza magnética de Maria Callas, ironicamente dublada, em seu único papel no cinema - e a civilização grega de Jasão. A feiticeira Medéia mata o próprio irmão para fugir com o amado, Jasão, que roubara o velocino de ouro. Anos mais tarde Jasão a abandona para se casar com a jovem filha do Rei Cleonte. Indignada Medeia planeja uma terrível vingança contra Jasão. O filme conta ainda com a presença enigmática de um centauro, símbolo andrógino da potência masculina e feminina que aparece em dois momentos para Jasão, em criança, um animal fabuloso e cheio de poesia, e o outro, aquele que vê quando adulto, sábio e com razão. Segundo Pasolini este encontro com os dois centauros significa que a coisa sagrada, uma vez dessacralizada, não desaparece. O ser sagrado permanece justaposto ao ser dessacralizado
A crítica Isa Grinspum Ferraz, na publicação Ilha Deserta:Filmes da Publifolha, 2003, afirma sobre Medéia: “O filme é de uma força extraordinária; dada, antes de tudo, pela infernal potência do mito. Mas, não é só isso:Pasolini conseguiu levar para o cinema toda a violência da alma humana, ancorando a narrativa em uma paisagem arcaica e bela, no trabalho vigoroso dos seus atores, na presença marcante dos figurantes selecionados a dedo e em figurinos e objetos de cena verdadeiramente assombrosos. O resultado é uma obra prima que atinge a essência mais profunda do que é a vida neste teatro do mundo. (...) Como Agostinho da Silva, como Glauber Rocha, como Lina Bo Bardi e como outros “desterrados” deste mundo, Pasolini não pôde suportar viver em meio à banalidade. Ele queria romper barreiras criadas pelos homens: as fronteiras, as desigualdades, os Estados nacionais. Os seus filmes, assim como os seus fantásticos escritos, estão sempre nos fazendo lembrar:neste circo de aparências e consumo em que vivemos, jamais poderemos encontrar a felicidade. Existirá a felicidade?”
Em Teorema (1968) Pasolini retoma o caráter contemporâneo de sua obra ao revelar as potencialidades reprimidas numa rica família milanesa de ideologia pequeno burguesa. O que aconteceria com uma família burguesa ao ser visitada por um jovem Deus? No filme a chegada do deus-visitante (interpretado por um jovem e enigmático Terence Stamp) é anunciada via telegrama pelo carteiro - não ao acaso chamado Ângelo - durante a sua estadia o hóspede nada faz para seduzir os membros da família e sua empregada Emilia, a não ser ler poemas de Rimbaud e instaurar momentos significativos de silêncio. No entanto todos sucumbem a sua beleza e se entregam sexualmente a ele. Apenas Emília leva a sua paixão ao extremo sacrifício ao se auto- exilar em um pequeno povoado, comendo apenas urtigas, até levitar e realizar pequenos milagres.
Sobre a questão do temática de Teorema afirmou Pasolini: “O jovem hóspede não é simplesmente um hospede que vai passar uma estadia numa família de amigos milaneses, é a alegoria de Deus. Teorema é, assim, uma parábola pura. Eu não podia portanto permitir-me redundâncias cortadas de todo significação, a significação estando estreitamente ligada a uma certa essencialidade que substituiu a essencialidade puramente poética de Accatone”. Pasolini era o próprio teorema, enigmático ao fazer um filme sem pretensões de um completo entendimento.
Paralelamente o Brasil na época do lançamento de Teorema vivia um período de intensa
repressão política, mas em contradição também um período de grande produção artística e criatividade tendo expressão nas obras de cineastas como Glauber Rocha e Rui Guerra.
Tanto em Medeia quanto em Teorema é delineada a presença do sagrado apresentada em diferentes variações. Para Pasolini, em Teorema o ritmo do sagrado provém em grande parte da funcionalidade da imagem. Teorema sendo uma parábola, e cada gesto, cada objeto sendo alegórico, este sagrado adquire uma forma funcional. A cena da criada Emília em levitação sobre a granja e a que ela se enterra, alem do sentido simbólico, toda história desta “santa” é contada de maneira paródica. Em Medeia o diretor afirma ter retomado todos os temas de seus outros filmes. Quanto a peça de Eurípedes limitou-se simplesmente a fazer dela algumas citações. Medeia é a confrontação do universo arcaico, hierático,clerical com o mundo de Jasão, racional e pragmático. Ela própria se exclui, ela carrega em si mesma sua própria tragédia. Jasão é o herói atual que não somente perdeu o sentido metafísico como nem mais se coloca questões dessa ordem.
Duflot afirma de maneira conclusiva a esta questão: “Assim o sagrado, o mito, as civilizações arcaicas, os povos da terra e da natureza, o homem pré-histórico enterram-se como a criada louca de Teorema, sem jamais desaparecerem completamente. A criança permanece no coração do adulto”.
Ao tomar a Medeia/Callas como vítima de si mesma, ao seguir Jasão sem um raciocínio lógico que a impeça – não foi Jasão quem a obrigou a seguí-lo – e testemunhar a degradação consciente dos integrantes da família em Teorema que foram entregues a um espiral de emoções e conflitos sem um gesto intencional do anjo/Stamp, podemos afirmar que o destino tem algo de definível com os ares do sagrado e a sua irrupção na vida cotidiana. Pasolini tinha plena consciência da sua inquietude diante do mundo e soube usar a sua inteligência, criatividade e experiência pessoal de vida para ser um luminoso porta voz de uma classe que desejava ser enxergada e ouvida. Apesar de toda uma trajetória pontuada por sua impetuosidade, sofrimento, perseguição e momentos de escatologia a obra de Pasolini pode ser resumida em uma única palavra – poesia. Agradeço, desde então, àquela minha amiga pelo livro-presente - Teorema - que estava em sua estante e iluminou a imaginação daquele adolescente.. Sim, não precisei devolvê-lo.
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