segunda-feira, 30 de março de 2015

UM MOMENTO PODE MUDAR TUDO


Antonio Carlos Egypto




UM MOMENTO PODE MUDAR TUDO (You’re Not You).  Estados Unidos, 2014.  Direção: George C. Wolfe.  Com Hillary Swank, Emmy Rossum, Josh Duhamel, Loretta Desire.  112 min.


Kate (Hillary Swank) é uma sofisticada pianista, casada com Evan (Josh Duhamel), que desfruta com ele de um bom padrão de vida.  Tudo vai bem até ela aparecer com os primeiros sintomas da doença degenerativa, conhecida como ELA (Esclerose Lateral Amiotrófica).  A partir daí, sua vida vai ter de ir mudando radicalmente. A doença a incapacita em termos de mobilidade, atingindo os membros inferiores e superiores, pés e mãos, impossibilitando, portanto, a sua atividade como pianista.  Atinge a fala, a respiração e o exercício de funções vitais.  As funções cognitivas estão preservadas, mas a autonomia, irremediavelmente comprometida.  Torna-se imperiosa a presença de alguém no papel de cuidadora.

A cuidadora que ela escolha parece, a princípio, muito inadequada e despreparada.  É a estudante Bec (Emmy Rossum), aspirante a cantora, perdida, com a vida em desordem, e que só apareceu por lá numa tentativa desesperada de arranjar emprego.  Mas Kate gosta dela, porque não se sente como paciente, o que acontecia quando estava na mão de uma enfermeira profissional.  Na realidade, a vida de ambas está caótica.  O casamento de Kate entrou em crise, tudo é um grande desafio.




O filme “Um Momento Pode Mudar Tudo” se concentra principalmente na relação entre as duas mulheres e o que pode resultar daí.  O título adotado por aqui não é muito feliz, já que não é o momento que muda tudo, até porque o diagnóstico da doença não é simples, nem rápido, e tudo vai se dando num processo.  O título original alude ao fato de que você já não pode mais ser você mesmo diante das incapacitações e limitações decorrentes da doença.  No caso de Kate, muito claramente, a identidade de pianista é das primeiras coisas que o personagem perde.  A partir daí, ela passa a ser outra pessoa, de algum modo.  Preservam-se a história, a memória e a capacidade intelectual, mas uma nova vida se impõe.




O caso do grande cientista Stephen Hawkings, que também tem ELA, ilustra muito bem essa questão.  E o filme “A Teoria de Tudo”, que concorreu ao Oscar 2015, mostra bem essa história.  O ator Eddie Redmayne levou a estatueta pelo brilhante desempenho no papel do cientista.

Aqui o desafio se apresenta para a ótima Hillary Swank, que pesquisou bastante sobre a doença e os sintomas, observou casos e construiu brilhantemente seu personagem.  Ela, como de costume, vale o filme.  E aprender sobre a outra ELA, a enfermidade, é também muito importante.  A população pouco conhece ainda sobre esse mal.  Tenho uma amiga que é portadora dessa doença e luta para viver bem, com muita tenacidade.  Mas não tem sido fácil.



Como disse George C. Wolfe, o diretor do filme: “Às vezes, na vida, quando você vai de encontro a um obstáculo não negociável, qualquer que ele seja, esse obstáculo se torna uma oportunidade para que você se torne outra versão de si mesmo”.  Uma boa observação para a proposta de “Um Momento Pode Mudar Tudo”.  Vale para o personagem Kate, mas também para o personagem Bec e, ainda, para o personagem Evan.  Todos acabam tendo de reinventar-se.  Como é da vida, por sinal.  Por conta de uma doença, mas também de um sem-número de outros fatores.



quarta-feira, 25 de março de 2015

14 ESTAÇÕES DE MARIA


Antonio Carlos Egypto




14 ESTAÇÕES DE MARIA (Kreuzweg).  Alemanha, 2014.  Direção: Dietrich Brüggemann.  Com Lea van Acken, Franziska Weisz, Florian Stetter, Hanns Zischler.  107 min.



O fundamentalismo religioso e, consequentemente, o fanatismo que o acompanha, são um dos grandes problemas do nosso tempo.  Não apenas pelas mortes que se fazem em nome de Deus,  pelo terrorismo, mas também pela retomada de conceitos moralistas que já pareciam superados para explicar as pessoas e o mundo.




O drama alemão “14 Estações de Maria” situa a questão numa comunidade católica tradicionalista, que cultiva crenças ultra ortodoxas e vive em função de noções como santidade e pecado.  Maria é uma adolescente de 14 anos que procura seguir Jesus, quer ser santa e ir para o céu, acima de tudo.  Viverá seu martírio em 14 capítulos, ou estações, à semelhança de Cristo em seu caminho para o calvário.

Coisas absolutamente triviais da adolescência aparecem como grandes perigos, como um possível namoro com um garoto respeitoso e também religioso, mas que canta num coral algumas canções que são vistas como demoníacas pela família e pelos padres da comunidade religiosa de Maria.  Deus, que tudo vê, examina cada ação ou gesto da jovem Maria, que tem um medo constante de cometer pecado, se confessa e se arrepende do que possa ter feito de errado e sacrifica tudo a Jesus.




Uma vida assim, todos sabemos, é praticamente inviável.  Ainda mais, numa etapa da existência como a adolescência.  Como levar a cabo um projeto tão radical como esse?  O que pode advir daí? 

É custoso, mas vale a pena acompanhar essa adolescente em sua jornada em busca da santidade.  Incomoda tanto que obriga a uma reflexão maior sobre um tema que pode passar distante dos nossos interesses, se não formos instados a olhá-lo com atenção.  O ambiente onde tudo ocorre é seco, despojado, duro.  As cenas exploram o formalismo e a rigidez dos personagens.  A câmera é estática, na maior parte do tempo.  Tudo conduz a uma austeridade sufocante.  Até a tragédia está contida num fundamentalismo, que não admite espaço para a dúvida, para a escolha humana, para o dilema moral.  Essa é a maior desgraça, o terrível perigo que pode pôr em ação as mais cruéis saídas para os indivíduos e para as sociedades.




A sobriedade com que toda a temática é abordada, em que o que está contido, por trás, é o que importa, exige do elenco um desempenho sutil e de baixa intensidade, o que o diretor Dietrich Brüggemann consegue obter com sucesso.

Há filmes que servem para agradar e divertir.  Ou para nos comunicar beleza, afetividade, alto astral.  Há filmes que combinam reflexão com um tratamento estético que fascina, ou os que se concentram na crítica, denúncia ou registro de uma dada realidade.  Há os que incomodam, perturbam, cutucam a gente.  “14 Estações de Maria” pertence a essa última categoria.  Não é entretenimento, nem uma elaborada obra artística.  Mas tem sua razão de ser e seu efeito.


domingo, 22 de março de 2015

O SAL DA TERRA


Antonio Carlos Egypto



O SAL DA TERRA (The Salt of the Earth)França, 2014.  Direção: Wim Wenders e Juliano Ribeiro Salgado.  Documentário, 109 min.


Se você me perguntar se vale a pena ver “O Sal da Terra”, aquele documentário sobre o fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado, que concorreu ao Oscar 2015, eu poderia lhe responder primeiro com uma pergunta.  Você gostaria de ver ampliadas na tela do cinema as fotografias de Sebastião Salgado?  É claro que sim.  São de uma beleza estonteante que só têm a ganhar com a ampliação, mantendo a qualidade da imagem.  Esse já é um motivo suficiente para se sair de cada para ver o filme.

Acrescente-se a isso que quem dirige o documentário são duas pessoas importantes.  O cineasta alemão Wim Wenders, que tem uma vasta trajetória na história do cinema, em que eu destacaria “Asas do Desejo”, de 1987, uma obra-prima. Seu codiretor é Juliano Ribeiro Salgado, filho de Sebastião, que com o pai tem compartilhado não só a existência familiar e a influência educacional, mas também várias aventuras fotográficas pelo mundo.


WIM WENDERS e SEBASTIÃO SALGADO


Sebastião Salgado não é só um dos mais importantes fotografos do mundo, é um homem de ideias claras, comunicação fácil, inteligência aguda.  Ouvi-lo falar sobre seu trabalho e sua longa experiência no ofício é muito atraente e esclarecedor. 

Ele andou pelos rincões mais remotos, foi em busca de entender o ser humano e suas terríveis mazelas, da ambição desmedida à fome, ao êxodo, à guerra e ao genocídio.  Foi atrás da morte para mostrá-la ao mundo.  Tornou-se um extraordinário fotógrafo social, mas acabou adoecendo.  Não foi atingido por nenhum doença infecciosa.  O que adoeceu foi sua alma, segundo suas próprias palavras.

E é aí que Sebastião Salgado se reinventa, muda o foco de sua câmera e vai em busca de territórios primitivos, fauna e flora selvagens, paisagens nunca registradas, coisas grandiosas que fazem um tributo à beleza do planeta.  E descobre que grande parte do nosso planeta continua intocada, para nossa surpresa.




Ao lado dessa incrível trajetória, o filme também descreve uma não menos importante realização pessoal e familiar: a reconstrução da grande fazenda de seus avós, recuperada após ter sucumbido à seca e à perda de sua mata de origem.  Dois milhões e meio de árvores nativas plantadas, o retorno da água em abundância, a plena recuperação ecológica, mostram que é possível reverter esse nosso mundo que se deteriora.  Existem caminhos.

Todas essas informações básicas eu já havia ouvido dele em uma entrevista pela TV a Jô Soares.  Colocadas no filme, com o profissional em ação, além de suas magníficas fotos, se tornam puro prazer intelectual, estético.  E um revigorante impulso positivo.



O filme está sendo exibido na 4ª. Mostra Ecofalante de Cinema Ambiental, em São Paulo, que tem muitos outros bons títulos sendo mostrados.  Além disso, a Mostra faz uma apresentação de filmes históricos que incluem um diretor importante do Egito, Youssef Chahine (1926-2008), com “Um Dia, o Nilo”, e Glauber Rocha (1939-1981), com o curta “Amazonas, Amazonas”. Tem como outra grande atração a homenagem/retrospectiva ao cineasta brasileiro Jorge Bodanzky, que filmou o clássico “Iracema, uma Transa Amazônica”, de 1974, e voltou às comunidades amazônicas com “No Meio do Rio, Entre as Árvores”, de 2009, entre outros trabalhos que exploram a fronteira difusa entre o documentário e a ficção.

“O Sal da Terra” entrará no circuito comercial dos cinemas logo após a Mostra Ecofalante.




quinta-feira, 19 de março de 2015

BRANCO SAI. PRETO FICA


Antonio Carlos Egypto




BRANCO SAI.  PRETO FICA.  Brasil, 2014.  Direção: Adirley Queirós.  Com Marquim do Tropa, Shockito, Dilmar Durães, DJ Jamaika, Gleide Firmino.  93 min.


Um produto da Ceilândia, de sua história, locais e personagens, e de uma visão conflituosa com uma Brasília percebida como poderosa e segregacionista.

O drama de dois homens que tiveram suas vidas enormemente prejudicadas, após a invasão pela polícia, e a repressão violenta de um Baile Black de um local chamado Quarentão.  Vamos acompanhar um homem que agora vive com uma perna mecânica e um outro, em cadeira de rodas.  As consequências terríveis estão lá, mostradas com todo realismo, mas não a cena que as gerou.  Ou mesmo o clima concreto que mantém e sustenta esse tipo de ação.




A história trágica será contada na forma de fábula, para poder criar perspectivas que não se resumam a lamentar o passado, mas possam gerar algo no futuro.  Vingança?  Reparação?  Ódio realimentado?

Para isso, o filme se vale de uma narrativa que explora até a ficção científica, além do uso da tecnologia avançada, em meio às carências visíveis da comunidade.  Busca um meio original de abordar um assunto sério e grave, mas que, por ser muito conhecido, tende a ser visto como repetitivo e não sensibilizar mais, como deveria.  Afinal, a truculência e a discriminação policiais atingem as periferias, e principalmente a população negra, não só em Brasília/Ceilândia, mas em todas as cidades brasileiras.  É assunto recorrente, banalizado até.  Está diariamente sendo mostrado por meio de imagens nos telejornais.  Daí a adequação de buscar uma nova maneira de abordar o tema.




A dificuldade é que é preciso questionar certas posturas ideológicas que, às vezes, passam por avançadas, mas que podem levar ao agravamento dos problemas.

De qualquer modo, o filme tem o mérito de trazer uma visão de quem está imerso na vida da comunidade e conhece de perto, vivencialmente, a situação.  Não é um olhar de fora, embora tenha um forte viés de radicalização. Pretender detonar as instituições que sustentam uma democracia reconquistada a duras penas não é algo que possa ser levado a sério.

“Branco sai. Preto fica” levou a grande maioria dos prêmios disponíveis do 47º. Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, incluindo o Prêmio do Júri da Abraccine. Um evidente exagero.

terça-feira, 17 de março de 2015

MAPAS PARA AS ESTRELAS


Antonio Carlos Egypto




MAPAS PARA AS ESTRELAS (Maps To The Stars).  Canadá, 2014.  Direção: David Cronenberg.  Com Julianne Moore, Mia Wasikowska, John Cusack, Robert Pattinson.  111 min.



Do diretor canadense David Cronenberg pode-se esperar quase tudo, menos personagens e tramas convencionais.  Geralmente, são pessoas que sofrem na carne algum tipo de trauma, acidente, violência ou mutação.  Literalmente na carne, porque a dor está sempre no corpo e os personagens se movem muito em função disso.  Há sempre elementos inesperados ou misteriosos em jogo.




Em “A Mosca”, de 1986, ele explora a transformação de homem em mosca, realizada por uma máquina, revisitando com vigor uma história já filmada anteriormente.  Em “Mistérios e Paixões”, de 1991, fantásticos delírios perceptivos são induzidos pelo uso de certas drogas.  Em “Spider”, de 2002, é a doença mental, a esquizofrenia, que é mostrada nessa aranha humana que nada tem a ver com a figura do super-herói.  Nele, acompanhamos o profundo drama psicológico – e físico  -- do personagem. Em “Marcas da Violência”, de 2005, um homem marcado por um passado que envolveu luta corporal e morte está condenado a voltar à tragédia que deu origem a seu sofrimento.  São apenas alguns de seus filmes, todos muito bons, viscerais, provocadores.  Mas que exigem estômago forte para sua fruição.

Em “Mapas Para as Estrelas”, seu filme mais recente, agora em cartaz, elementos semelhantes aparecem em personagens algo bizarros e estranhos, num mundo que, por si só, já se destaca pela excentricidade: o do cinema de Hollywood.




Não há muita novidade na estrela decadente que se vê preterida no papel que tanto ansiava fazer e mesmo na sua satisfação diante do problema que acomete sua concorrente.  Ou no intragável ator mirim que alcançou fama e fortuna, mas também tem seus reveses.  Ou, ainda, no psicólogo das celebridades.  Coisas como essas estão lá, mas não constituem o cerne da história.  Há muitas coisas por trás disso, relações insuspeitas, mistérios e, para não perder o hábito, deformações físicas.  Mas ele se permite mexer no principal tabu que há: o do incesto.  E o faz com originalidade e de um ponto de vista não convencional. 

“Mapas Para as Estrelas” tem um elenco forte, que segura a barra do cinema de Cronenberg. Julianne Moore, recentemente oscarizada por “Para Sempre Alice”, está muito bem aqui, também. Mia Wasikowska, muito boa atriz, o ótimo John Cusack, Robert Pattinson e os outros dão conta dessa trama que requer muita intensidade dramática por parte de todos.




A gente sai do cinema tocado pela força da temática e pela força das imagens, um ponto alto do cineasta, que constrói algumas cenas belas, mas também desconcertantes.  Haverá quem rejeite, atribua todo esse estranho universo retratado no filme à loucura do diretor.  Bem, de gênio e de louco todo mundo tem um pouco, não é assim?



quarta-feira, 11 de março de 2015

PARA SEMPRE ALICE

                               
Antonio Carlos Egypto




PARA SEMPRE ALICE (Still Alice).  Estados Unidos, 2014.  Direção: Richard Glatzer e Wash Westmoreland.  Com Julianne Moore, Alec Baldwin, Kristen Stewart, Kate Bosworth.  101 min.


O mal de Alzheimer aparece como uma ameaça terrível à medida que envelhecemos.  Numa sociedade que prolonga a vida, pelos avanços da medicina e da tecnologia, se torna um sério problema de saúde pública. 

Mas parece que o que chamamos genericamente de doença de Alzheimer contempla, na verdade, manifestações diversas, que podem ser vividas por meio de diferentes sintomas, com evolução distinta e até certo ponto imprevisível.  Em comum, a progressiva perda da memória e o que é mais destruidor: a perda da identidade.



No caso relatado no filme “Para Sempre Alice”, a dra. Alice Howland (Julianne Moore), uma renomada professora de linguística, é acometida por um Alzheimer precoce, aos 50 anos de idade.  É uma paciente com muita consciência do que se passa e com muitos recursos.  Apesar disso, as perdas se imporão, uma após a outra.  Ela se perde nas ruas habituais de Manhattan, onde costumava correr, as palavras fogem, sua atividade profissional acaba e sua identidade vai se perdendo, pouco a pouco, mas progressivamente.  Até decisões vitais e definitivas, que podem contar com a ajuda da tecnologia, se tornam impraticáveis na ausência da memória imediata.




É uma experiência sofrida e angustiante, que compartilhamos com a personagem.  Isso se dá de modo dramático, muito efetivo e convincente, graças ao excepcional desempenho da protagonista: a grande atriz Julianne Moore, premiada com o Oscar 2015 por essa atuação.

O trabalho do restante do elenco passa longe do brilho da protagonista.  Alec Baldwin, como John, o marido de Alice, e Kristen Stewart, como a filha Lydia, têm performances discretas, que não empolgam. 




A narrativa de “Para Sempre Alice” também não inova em nada.  Mas faz um bom relato do tema e produz envolvimento emocional no público pelo desempenho de Julianne Moore.  Aguça nossa sensibilidade para uma questão séria para a vida das pessoas e para a sociedade do nosso tempo.

Para quem se interessa pelo assunto, um outro bom filme sobre o mal de Alzheimer é a produção canadense “Longe Dela” (Away From Her), dirigida por Sarah Polley, com Julie Christie, Gordon Pinsent e Olympia Dukakis, nos principais papéis.  É um filme de 2008, disponível em DVD.