sexta-feira, 26 de setembro de 2014

CINEMA GREGO ATUAL : MISS VIOLENCE e METEORA

                        
Antonio Carlos Egypto


É fato sabido que as crises econômicas, os regimes políticos totalitários, a censura, as guerras, estimulam a criatividade artística.  Grandes expressões da arte resultaram de momentos de crise, em sentido coletivo, mas, também, individual.  Crises existenciais são geradoras de grandes obras. Já que a crise é também oportunidade de rever, repensar, ressignificar, buscar alternativas, o que se poderia esperar da produção cinematográfica do país que foi mais abalado, na comunidade europeia, pela crise do euro?

A Grécia está representada no circuito exibidor com dois filmes que merecem ser vistos e que se vinculam a uma expressiva produção atual, como ficou evidente na 37ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em 2013, com títulos colhidos nos festivais pelo mundo. Uma presença bem mais significativa do que habitualmente acontecia no evento paulistano.  O cinema grego apareceu com força e qualidade.



MISS VIOLENCE.  Grécia, 2013.  Direção: Alexandros Avranas.  Com Themis Panou, Reni Pittaki, Eleni Roussinou.  98 min.

O melhor dos filmes gregos exibidos, para mim, foi “Miss Violence”, segundo longa-metragem dirigido por Alexandros Avranas, vencedor do Leão de Prata de direção e melhor ator em Veneza.  O filme, corajosamente, expõe a violência, o abuso e a prostituição forçada das mulheres de uma família, em suas várias gerações, e todas as consequências trágicas que daí resultam, com total realismo e procurando produzir suspense.  A crise está presente no desemprego e na dificuldade de sobreviver que agravam o quadro ou, por outro lado, servem para tentar justificar ou validar a monstruosidade apresentada.

Outra leitura é possível, alegórica da situação, se olharmos para a família como representante da sociedade como um todo.  A carência alimenta a opressão, o estupro, a exploração das pessoas e da mãe-pátria.  Também faz sentido.  E uma coisa não exclui a outra.  Ao tratar do tema da exploração sexual da mulher, o contexto subjacente é o da crise social e moral em que se vive na sociedade grega atual.  Mais difícil de aceitar é a visão de uma patologia individual determinando os fatos.  Há um eloquente sentido de opressão coletiva, que se evidencia no desenrolar da trama e nas interpretações do elenco.



METEORA.  Grécia, 2012.  Direção: Spiros Stathoulopoulos.  Com Theo Alexander, Tamila Koulieva.  81 min.

Outro belo filme grego que pude ver naquela Mostra refere-se a uma outra dimensão.  “Meteora” vai em busca de monastérios ortodoxos situados acima de pilares de arenito, suspensos entre o céu e a terra, conforme explica a sinopse que consta do catálogo da Mostra.  Aqui, o que se vai viver é a relação entre a fé, o afeto e o desejo sexual humanos, presentes nas figuras de um casal de religiosos.  Mesmo separados em duas montanhas de pedras diferentes, uma para cada sexo, e uma escadaria interminável para galgá-las, haverá modos de se encontrar e viver essa história de amor.

“Meteora” é o segundo longa do diretor Spiros Stathoupoulos.  É o filme mais bonito visualmente dessa leva de gregos.  Tem locações belíssimas, um clima que o situa fora do mundo real e uma muito eficiente atuação do desenho de animação, que se insere ao longo de toda a trama, pontuando o imaginário, o temido e o desejado. O fato de se distanciar tanto da realidade atual da Grécia não significa, no entanto, que não dialogue com ela.  A busca da beleza, do amor e da fé, não deixa de ser um caminho alternativo, idealizado, quando o mundo real parece tão duro de enfrentar.

Os filmes gregos de novos diretores mostram que está germinando um novo cinema por lá.  Ninguém espere a sofisticação e a estética maravilhosa do mestre grego do cinema, Theo Angelopoulos (1936—2012), é claro.  Mas nem é possível, mesmo, exigir tanto de jovens cineastas.  Que o cinema grego atual mostra talento, não há dúvida.  Isso é muito promissor.



domingo, 14 de setembro de 2014

O PEQUENO FUGITIVO


Antonio Carlos Egypto




O PEQUENO FUGITIVO (Little Fugitive).  Estados Unidos, 1953.  Direção e roteiro: Morris Engel, Ruth Orkin e Ray Ashley.  Com Richie Andrusco, Rickie Brewster, Winifred Cushing, Jay Williams.  80 min.



“O Pequeno Fugitivo” é uma pequena joia cinematográfica, produzida em 1953, que nunca foi exibida no Brasil e agora chega aos nossos cinemas em cópia restaurada.  O filme foi premiado com o Leão de Prata, no Festival de Veneza 1953, recebeu elogios do famoso crítico André Bazin e foi citado por François Truffaut como um dos inspiradores da nouvelle vague.  E é bom o bastante para ser apreciado com todo o interesse sessenta anos depois de sua concepção.



Trata-se de uma produção, com uma bela fotografia em preto e branco, que retrata as aventuras de um menino de 7 anos, Joey (Richie Andresco), em Coney Island.  Em meio às atrações de uma praia e de um parque de diversões, ele transforma uma fuga num grande brinquedo, em que os perigos o estão rondando a todo instante.

O mote da fuga remete à ingenuidade e à fantasia infantil.  Joey crê na brincadeira de seu irmão mais velho, Lennie (Rickie Brewster), de que o teria matado ao manejar uma arma.  Os garotos da turma o amedrontam, fazendo-o crer que será preso, e aí começa sua aventura.




É muito interessante ver o filme hoje, porque ele nos leva à Nova York dos anos 1950, cheia de detalhes.  Mostra roupas, trajes de banho e hábitos de banhistas numa praia e a relatividade dos perigos de uma época em que um garoto de 7 anos ainda podia passar a noite dormindo na areia, sem grandes consequências.

Mas o melhor de tudo é como as coisas acontecem e são mostradas no filme.  Com muita naturalidade e leveza, sem as amarras determinadas pelo modo clássico de contar histórias no cinema.  Com a simplicidade de produção que caracterizou o neorrealismo, mas sem o enfoque social que o marcava.  Focado no mundo interno e nas ações de uma criança, que se move em função do que lhe parece verdadeiro, mas que nunca deixa de ser marcadamente criança.  Isso vale para o protagonista, mas também para o seu irmão e para as outras crianças que aparecem no filme.  O medo, o desespero, a fuga, a sobrevivência, a procura incessante, o remorso, a necessidade de enganar a mãe e evitar uma punição, tudo isso é vivido de forma lúdica, como é característico das crianças.  Ou seja, o que pode até ser trágico vira brinquedo.




Um admirável trabalho realizado por pessoas que não fizeram história no cinema, a começar pelo ator mirim, Richie Andrusco, ótimo, que não fez carreira e foi cuidar da sua vida, fazendo outra coisa.  Hoje, já idoso e aposentado, pode se lembrar com alegria desse filme tão cativante que ele protagonizou, aos 7 anos de idade: “O Pequeno Fugitivo”.




quarta-feira, 10 de setembro de 2014

A 100 PASSOS DE UM SONHO


Antonio Carlos Egypto




A 100 PASSOS DE UM SONHO (The Hundred-Foot Journey)Estados Unidos, 2013.  Direção de Lasse Hallström.  Com Helen Mirren, Manish Dayal, Om Puri, Charlotte Le Bon.  122 min.


O diretor sueco Lasse Hallström é bom para contar histórias humanas que envolvam personagens que lutam, sofrem, mas têm determinação no que fazem.  Fez filmes magníficos, como “Minha Vida de Cachorro”, de 1985, na Suécia, e “Regras da Vida”, de 1999, nos Estados Unidos.  Tem desenvolvido sua carreira em Hollywood, também com filmes menos densos, de entretenimento, como “Chocolate”, de 2000, ou “Querido John”, de 2010, por exemplo.  É, inegavelmente, um cineasta competente.




Foi ele o escolhido para dirigir uma produção de Steven Spielberg, Oprah Winfrey e Juliet Blake, chamada “A 100 Passos de um Sonho”, uma história que combina, de fato, com o que o diretor sabe fazer.  E com produtores desse peso deve ter sido bom trabalhar.

A história se passa no sul da França, na localidade de Saint-Antonin-Noble-Val, para onde acaba chegando, por obra da sorte, uma família indiana dona de um restaurante conceituado na Índia, fugindo de perseguições religiosas em seu país.




Naturalmente, o caminho será montar um restaurante típico de comida indiana por lá.  E é o que Papa (Om Puri) faz, pondo sua família a cozinhar e tratando de divulgar a novidade de forma até espalhafatosa, com muitas luzes e cores, música alta e tudo o mais.

Acontece que, a apenas 100 passos, está um premiado restaurante francês de alto padrão, com uma estrela do Michelin, dirigido por Madame Mallory (Helen Mirren).  A novidade do concorrente indiano Maison Mumbai aparece como um pesadelo para ela.  Comida de lá, comida de cá, brigas, desentendimentos, competição.  Mas também curiosidade e necessidade de entender o outro lado.  E até um relacionamento amoroso potencial entre o jovem e talentoso chef  Hassan (Manish Dayal), da cozinha indiana, e a jovem chef Margueritte (Charlotte Le Bon), da gastronomia francesa.




Com um filme desses, o mínimo que acontece é que a gente sai de lá salivando, em busca de uma comida saborosa, diferente.  Dá fome e até parece que a gente sentiu o cheiro daqueles pratos fumegantes, maravilhosos, de um lado e do outro daquela rua gastronômica.

Certamente, uma diversão bem realizada, muito agradável de se ver, com ótimos atores, destacando-se, como sempre, a interpretação de Helen Mirren.  Os indianos também são muito bons e Charlotte Le Bon, uma graça.  Como entretenimento, está de bom tamanho.





quarta-feira, 3 de setembro de 2014

A OESTE DO FIM DO MUNDO


Antonio Carlos Egypto




A OESTE DO FIM DO MUNDO.  Argentina/Brasil, 2012.  Direção: Paulo Nascimento.  Com César Troncoso, Fernanda Moro, Nelson Diniz.  104 min.


Num tempo em que as pessoas são bombardeadas por imagens, estão plugadas o tempo todo, não há o tempo e o espaço indispensáveis para parar, observar, pensar em si mesmas e na vida, um filme que se propõe a ser uma experiência contemplativa cai muito bem.  Ou melhor, cairia, se as pessoas se dispusessem a isso.

É o caso, por exemplo, do filme “A Oeste do Fim do Mundo”, produção argentina e brasileira, rodada na região de Mendoza, em Uspallata, na majestosa Cordilheira dos Andes, na Argentina, nas proximidades do Chile.




A locação, por si só, já vale o filme.  A fotografia realça a beleza da paisagem.  Montanhas imponentes, de uma mansidão que contrasta com sua força.  Um lugar perdido no meio do nada.  Um homem solitário, um posto de gasolina, que recebe, ocasionalmente, algum caminhão ou outro veículo, que param para abastecer.  Numa das primeiras cenas do filme, um furgão  para, mas León (César Troncoso), o homem do posto, está comendo.  Termina calmamente de mastigar, antes de se dispor a atender o freguês.  Sem pressa.  Assim como a paisagem é completamente outra, o tempo também é.

Quem ali vive, ou por ali vai ficando, está fugindo de algo, de si mesmo, dos conflitos e culpas que carrega consigo ou de sua incapacidade de dar conta dos desafios que a vida lhe apresenta.  Ou, quem sabe, de crimes que cometeu.  Poderia até não ser assim.  Mas, no caso dos personagens de “A Oeste do Fim do Mundo”, é assim.



Lá estarão convivendo com o argentino León os brasileiros Silas (Nelson Diniz), motociclista sarcástico que passa sempre pelo posto, trazendo peças para consertar uma moto, e Ana (Fernanda Moro) que, circunstancialmente, teve de parar por ali e foi ficando. A presença dela modifica a vida não só de León como de Silas e, é claro, dela mesma.  Enfrentamentos podem doer muito, mas são coisas necessárias à nossa existência.

O filme faz tudo a seu tempo.  Pouco a pouco vai mostrando os personagens, seus silêncios, medos, suas poucas falas e os mistérios que escondem. A malfadada guerra das Malvinas se faz presente.  Não é uma história original a que vai se revelando.  É até previsível, pode-se inferi-la antes de que seja revelada, mas vale aproveitar esse tempo para conhecê-los, cercados pelas montanhas, apartados do mundo, na Ruta 7, Argentina, na imensidão da estrada transcontinental da Cordilheira.




O ótimo ator uruguaio César Troncoso faz o protagonista León, que contracena com o personagem brasileiro de Nelson Diniz, que se expressa em espanhol, e a personagem de Fernanda Moro, que só fala português com ambos.  A importância da língua como marca de um povo é explorada pelo filme, que se preocupa com a questão da identidade e do pertencimento a um agrupamento humano que dê sentido à vida.  Na origem, claro, está sempre a família.

Bom trabalho do diretor  gaúcho  Paulo Nascimento, que realizou “A Oeste do Fim do Mundo”, filmando a história na ordem e nos horários reais das cenas, já que a intensa mudança de luz na Cordilheira tornaria difícil a utilização de outro processo de filmagem.  O filme está sendo apresentado nos cinemas com uma sessão diária acessível, com audiodescrição e legendas.