quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

QUANDO EU ERA VIVO

                
 Antonio Carlos Egypto




QUANDO EU ERA VIVO.  Brasil, 2013.  Direção: Marco Dutra.  Com Marat Descartes, Antonio Fagundes, Sandy Leah, Gilda Nomacce, Kiko Bertholini, Tuna Dwek.  109 min.



O cinema brasileiro explora pouco o gênero do horror, do fantástico.  Com a relevante exceção de José Mojica Marins, o Zé do Caixão.  Fora ele, pouca gente tem se aventurado.  Marco Dutra, em parceria com Juliana Rojas, já havia feito uma ótima incursão nesse terreno, com o filme “Trabalhar Cansa”, de 2011, partindo do realismo do mundo do trabalho, de forma concreta, para chegar a monstros emparedados.

Em “Quando Eu Era Vivo”, Marco Dutra dirige uma adaptação do livro “A Arte de Produzir Efeito Sem Causa”, de Lourenço Mutarelli.  O autor do livro tem uma participação especial no filme.



Os temas trabalhados são os vínculos familiares, os fantasmas que por ali circulam e a questão de como lidar com o passado, que assombra, pode paralisar, mas foi quando os afetos se consolidaram.  A loucura, o bem e o mal, não poderiam faltar ao gênero.  Mas o interessante aqui é que seus limites e possibilidades estão bastante borrados, de modo que é difícil saber o que é uma coisa e o que é a outra.  Esse suspense se sustenta até o fim do filme e traz surpresa.

O embate fundamental se dá entre Júnior (Marat Descartes), recém separado por meio de um divórcio traumático, que retorna à casa paterna, e Sênior (Antonio Fagundes), seu pai viúvo, que está tratando de reconstruir sua vida.  Júnior se apega ao passado, às lembranças da mãe e do irmão, agora ausente, internado numa clínica.  Sênior, ao contrário, enfurnou as coisas do passado num quartinho fechado e tem um apartamento que respira atualidade, preocupações com a saúde e o bem-estar.



A casa é, por sinal, um personagem central do filme.  É pelas transformações que vão ocorrendo nela que se configuram os mundos do pai e do filho.  Até as cores de iluminação mudam.  Do começo para o meio e o fim do filme, a casa se transforma passo a passo, dando lugar às lembranças, obsessões e fantasmas que povoam a vida dessa família, pela ótica de Júnior, em contraponto à do pai.  E vão se revelando as coisas não resolvidas da família.

A personagem Bruna (a cantora Sandy), jovem estudante de música, é inquilina na casa e servirá de elemento catalisador das loucuras de uma família da qual ela não faz parte. O irmão ausente, Pedro (Kiko Bertholini), terá sua presença na vida adulta e atual de Júnior e Sênior.  Mas os dois irmãos, na infância, e a mãe que morreu, estão presentes no filme pelos registros do passado.  A solução do diretor foi filmá-los em VHS e, assim, incluí-los na história.  A solução é muito boa, porque a imagem remete ao passado recente dos videocassetes, suas imperfeições e riscos, assim como à cor amarelada.




Misteriosas cabeças de gesso adicionam o elemento fantástico que agrega mais suspense à trama.  A filmagem e a interpretação do protagonista-filho nos fazem lembrar do clássico “O Iluminado”, de Stanley Kubrick, de 1980, em alguns momentos, assim como de outros filmes de terror.  Mas “Quando Eu Era Vivo” explora principalmente o horror psicológico, o das mentes conturbadas, o dos impulsos e dos medos.  A violência é moderada e não há sangue jorrando.  É tudo mais sutil, situa-se no mundo interno dos personagens.




Um ótimo elenco dá boa sustentação à trama de horror que se desenvolve.  Marat Descartes tem se revelado um ótimo ator, com presença marcante em bons filmes brasileiros.  Foi o protagonista de "Trabalhar Cansa”, do mesmo diretor e de “Super Nada” de Rubens Rewald, por exemplo.  Antonio Fagundes é sempre um grande ator em cena, seu Sênior é muito convincente.  Sandy Leah canta e lida com música no filme, o que a liga a seu universo habitual, está bem no papel de Bruna.  O personagem de Gilda Nomacce se insere na trama com uma atuação cativante.  Tuna Dwek participa de uma sequência do filme, pequena, mas muito intensa, um momento forte da história.  Não dá para esquecer.

O diretor Marco Dutra reafirma seu talento e se qualifica para novas incursões num gênero de terror que não se distancia do mundo em que vivemos e onde estamos, dialoga com ele, revela seu avesso. 
  

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

O LOBO DE WALL STREET

                          
                  
Antonio Carlos Egypto



O LOBO DE WALL STREET (The Wolf of Wall Street)Estados Unidos, 2013.  Direção: Martin Scorsese.  Com Leonard DiCaprio, Jonah Hill, Margot Robbie, Matthew McConaughey.  179 min.



O mundo financeiro, com o sobe e desce das bolsas de valores e os investimentos de alto risco, onde se pode ganhar e perder muito dinheiro, é um ambiente que atrai jogadores, vendedores histéricos, manipuladores, vigaristas.  E também profissionais sérios e equilibrados.  Provavelmente, em menor escala, não sei.

A julgar pelo novo filme de Martin Scorsese, “O Lobo de Wall Street”, esse mundo já está muito corrompido e o capitalismo perdeu qualquer compostura, qualquer limite.  Só mesmo mergulhando no mundo das drogas, cada vez mais possantes, alimentado por festas, prostitutas, bacanais, tudo, tudo em excesso.



Na verdade, está contando a história de Jordan Belfort (Leonardo diCaprio), a partir de um livro de memórias do próprio.  Portanto, estamos falando de uma figura arrojada, enlouquecida, despudorada, que, explorando a boa-fé das pessoas ou o seu desejo de levar vantagem em tudo, se tornou milionário.  Comandou sua própria corretora, empregou e tornou ricos muitos amigos, colaboradores e empregados.  Um sucesso a qualquer custo, a qualquer preço, sem considerações de ordem ética.



O modo como Scorsese conduz a narrativa, no entanto, nos remete à noção de que as coisas funcionam assim mesmo por lá.  Senão, não seriam tão fáceis as conquistas de Jordan e ele não construiria um séquito de seguidores de tal ordem e entusiasmo.  Ele era persuasivo, o tipo que motiva, transborda de tão excessivo que é.  Mas não lhe faltaram admiradores ou seguidores.  Às pencas.



Scorsese retrata com maestria essa trajetória, sem pudor, e constrói cenas e sequências visualmente atraentes e entusiasmantes.  Tal como seu personagem, o diretor não se limitou, no caso, às conveniências de mercado.  Encheu o filme de dinheiro (físico, mesmo), drogas de todos os tipos, formatos e cores, com destaque para as carreiras de cocaína, excessos sexuais, nudez, exibicionismo, orgias em pleno escritório.  Loucura por toda parte.  O filme se agita para revelar em que terreno estamos pisando e que mundo é esse.  Consegue o seu intento muito bem.

Para isso, conta com uma exuberante e impressionante atuação de Leonardo DiCaprio, cuja entrega ao papel é notável.  Está perfeito, encarnando o desmedido personagem Jordan.  Ele leva o filme, sustenta a proposta ousada do diretor, sem medo de se expor.  Um ator maduro.



Destaque também para Jonah Hill, no papel de Donnie, sócio e melhor amigo do protagonista.  Da atuação dele resultam alguns dos melhores momentos satíricos do filme.  O conjunto do elenco entrou todo no espírito do excesso que marca a narrativa.  Fica tudo muito intenso, engraçado e crítico.  É um filme para curtir, mas também para refletir.  Martin Scorsese faz grandes produções, mas não está para brincadeira.  Tem muito a dizer.  No caso de “O Lobo de Wall Street”, provocar.  Revelou-se um grande provocador, injetando vitalidade no cinema de Hollywood, que, apesar de todas as brigas, explosões, guerras, destruições, super-heróis, anda muito morno, sem ideias.

Claro que toda essa maluquice, retratada por Jordan Belfort em suas memórias, contadas em off como complemento das cenas, não teria como ficar nisso.  Chega uma hora em que o próprio excesso pede sua contenção.  Aí aparecem a lei e a punição.  Só assim pudemos conhecer o relato do protagonista, senão, ele já teria sucumbido pessoalmente e, provavelmente, não teria alguém para contar essa história.  Pelo menos, não com a riqueza de detalhes com que ela é contada.




terça-feira, 21 de janeiro de 2014

O GEBO E A SOMBRA

                          
                         
Antonio Carlos Egypto



O GEBO E A SOMBRA.  Portugal, França, 2012.  Direção e roteiro: Manoel de Oliveira.  Com Michael Lonsdale, Claudia Cardinale, Leonor Silveira, Ricardo Trêpa, Jeanne Moreau, Luís Miguel Cintra.  91 min.



“O Gebo e a Sombra”, o mais recente longa-metragem do mestre português Manoel de Oliveira, é uma adaptação de uma peça do dramaturgo lusitano Raul Brandão, escrita no início do século XX.  Um belíssimo e profundo trabalho.

Gebo (Michael Lonsdale), já idoso, precisa continuar trabalhando como contador de uma firma e fazer a escrita nos livros contábeis até a noite, em casa, para manter a família, levando uma vida de pobreza e privação.  Isso acontece porque ele é um homem honesto e sem ambições.




Com ele vivem sua mulher, Doroteia (Claudia Cardinale) e sua sobrinha Sofia (Leonor Silveira), casada com seu filho João (Ricardo Trêpa), que sumiu de casa há oito anos e se tornou a sombra de Gebo e da família.  A mãe, obcecada por notícias de João, reclama da vida que leva e só fala dele.  Gebo a poupa de tudo o que sabe a respeito do filho.  Mente para ela, procura protegê-la por meio da ignorância.  Participam da história dois vizinhos, que costumam aparecer para um café: papéis de Jeanne Moreau e Luís Miguel Cintra.

O ambiente e os comportamentos se referem mesmo ao final do século XIX ou início do século passado, em que as mulheres cuidavam da casa e dependiam dos homens para viver.  Os detalhes do belo e simples cenário e as roupas completam a ambientação. A filmagem ocorre praticamente nesse único cenário, o que remete ao teatro.  Dito assim, tudo parece distante da nossa realidade atual.  Mas não é nada disso.
O que é a vida?  Um conjunto de regras e deveres que se repete dia após dia, sem mudanças, tediosamente?  Ou será uma aventura que não tem limites e comporta até mesmo o crime?  O que é ser honesto, qual o seu sentido e limites?  Conformar-se é uma forma de honestidade virtuosa?  Revoltar-se, quebrar regras, ter ambições, é compatível com o bom caráter?




Mentir é admissível, em que situações?  Mentir para proteger alguém é aceitável?  Faz sentido?  Vale por toda uma vida?  E quando o preço a pagar é a autoimolação?

Amar sem qualquer exigência ou restrição é bom?  É o que se espera de uma mãe para com seu filho, seja ele quem for?  E se a verdade for dura, nega-se a realidade?  Finge-se não ver?  Maquia-se a realidade?  É possível ser feliz na ignorância? Até onde vale a pena viver?  A morte pode ser um alívio, uma escolha, um desejo legítimo?  Ou será isso uma fraqueza?




Essas são algumas das principais questões que o filme levanta, mas há muito mais.  “O Gebo e a Sombra” dá margem a questionamentos filosóficos os mais diversos, todos muito atuais, apesar da aparência em contrário.  Tudo vai acontecendo no ritmo preciso.  As revelações vão se dando aos poucos, enquanto vivenciamos como espectadores aquela vida repetitiva e limitada.  A irrupção do personagem-sombra produz uma reviravolta que, no entanto, se dá no mesmo ritmo preciso de todo o restante do desenvolvimento da trama.  Mesmo aquilo que sabemos que está para acontecer não produz ruptura na forma de narrar a história.  Há grandes mudanças, sem nenhum sobressalto.  Admirável!  Aos 103 anos de idade, Manoel de Oliveira alcançou tal domínio do seu ofício que tudo parece simples e fácil.

O elenco que dá vida à narrativa é nada menos do que brilhante.  Michael Lonsdale é um Gebo perfeito, até nos menores detalhes, tudo muito bem dosado, no tom e no ritmo certos.  Claudia Cardinale, uma das mulheres mais lindas da história do cinema, enrugou, envelheceu muito, mas não perdeu a classe.  Jeanne Moreau também perdeu a juventude, mas mantém uma verve interpretativa cativante.


Manoel de Oliveira e o elenco do filme

Os atores portugueses, habituais nos filmes de Manoel de Oliveira, estão ótimos, ainda que o filme seja falado em francês.  Leonor Silveira está brilhantemente contida no seu papel.  Luís Miguel Cintra é sempre uma presença muito forte em cena.  E Ricardo Trêpa, o neto do diretor,  é sempre um ator competente nos diversos papéis que encarna, nos filmes do avô.

É alvissareiro ver que produtos cinematográficos desse calibre conseguem ser exibidos em sessões normais nos cinemas.  Ainda que seja apenas nos chamados cinemas de arte.  É uma maravilha, mas que está na contramão do que o mercado exibidor preza.


sexta-feira, 17 de janeiro de 2014





Associação Brasileira de Críticos de Cinema divulga os vencedores do III Prêmio Abraccine.

A Associação Brasileira de Críticos de Cinema, Abraccine, acaba de anunciar nesta quinta-feira (16/01) os ganhadores de seu terceiro prêmio anual, relativo aos Melhores Filmes de 2013.

Concorreram todos os 398 longas metragens, brasileiros e estrangeiros, lançados em circuito comercial no Brasil de 1º de janeiro a 31 de dezembro de 2013. 

·        O Som ao Redor”, de Kleber Mendonça, ganhou na categoria melhor Longa Brasileiro.

·        Como melhor Longa Estrangeiro foi escolhido “Tabu”, de Miguel Gomes, uma coprodução Portugal/Alemanha/Brasil/França.

·        Pouco Mais um Mês”, de André Novais, foi escolhido o Melhor Curta Metragem (nesta categoria, concorrem apenas curtas brasileiros).

A eleição da Abraccine é muito mais que simplesmente uma contagem de votos de seus associados: realizada em dois turnos, ela é precedida de um amplo debate, via internet, onde todos os seus membros, de todo o Brasil, têm a oportunidade de defender suas preferências e pontos de vista críticos.
 Fundada em julho de 2011, a Abraccine tem hoje mais de uma centena de associados, em todas as regiões brasileiras. Sua missão é promover formas de pensamento crítico, reflexão e debate sobre o Cinema.

Confira agora as críticas dos dois longas premiados, publicadas no Cinema com Recheio.

                            O SOM AO REDOR
Antonio Carlos Egypto

O SOM AO REDOR.  Brasil, 2012.  Direção e roteiro: Kléber Mendonça Filho.  Com Irandhir Santos, Gustavo Jahn, Maeve Jinkings, Irma Brown, Sebastião Formiga.  131 min.

“O Som ao Redor” se destaca na produção cinematográfica atual por apresentar um produto diferenciado e criativo que, mesmo preocupado com a qualidade artística do trabalho, não deixa de buscar comunicar-se com o público, que não se pretende que seja restrito.

Trata com realismo, e produzindo reflexão, da temática da segurança nas grandes cidades e que atinge as populações mais pobres, mas também a classe média.  No caso, um quarteirão de uma zona residencial central de Recife.  Ficamos conhecendo seus moradores, seus hábitos, dificuldades e riscos.  A violência se apresenta sempre em potencial.  Põe em evidência o papel da segurança privada que, aparentemente por pouco dinheiro, traz tranquilidade aos moradores do local.

Se há um roubo aqui ou ali, há também moradores especiais, com quem não se pode mexer.  Mesmo que indícios claros de roubos levem aos tais moradores poderosos.  Os seguranças particulares, no entanto, vão se inteirando de tudo a respeito de todos.  Situações muito concretas são mostradas: um cachorro que não para de latir e torna a vida de sua vizinha um inferno, por exemplo, parece ser uma questão insolúvel.

Os elementos vão sendo introduzidos com muita perícia e constróem uma história que intriga, traz suspense, surpresa, e impacta ao final.  Um roteiro muito competente e uma filmagem capaz de gerar climas tão realistas quanto estranhos e misteriosos prende o espectador à história que vai sendo armada.  Os detalhes são tão importantes que acabam por se descolar por vezes da trama, como que a gerar novas possibilidades.

Esse clima todo é garantido pelo que o título da película indica: o som ao redor.  Os sons urbanos vão revelando fatos e sentimentos e acabam se tornando não só um personagem, mas o mais importante deles.  É por meio dos sons que construímos os fatos, percebemos suas implicações e consequências.  O som produz medo, suspense, expectativa. 

“O Som ao Redor” é um filme que nos remete ao mundo complexo e potencialmente hostil do ambiente urbano contemporâneo, onde o risco se insinua em qualquer esquina ou espaço escuro das ruas, dos prédios, das casas, do mar.  Sem deixar de levar em conta os conflitos de classe e a história passada, que acabarão por ser determinantes para a trama.

O diretor pernambucano Kléber Mendonça Filho produz uma obra impactante que nos envolve, não só pelas formas convencionais com que o cinema gera medo, tensão, suspense, como porque nos faz olhar para dentro de nós mesmos, esquadrinhando o meio urbano que nos circunda.  Esse realismo, digamos, psicológico, é o que assusta.  Mas não é simples fruto da imaginação.  É sociológico, também.  É real em suas diversas dimensões.

Grande filme, premiado em diversos festivais, está entre os melhores de 2013.  A não perder.  É cinema de primeira.  Abre um caminho muito criativo a ser explorado pelo cinema brasileiro.  Resulta num produto artístico muito bem elaborado e que, ao mesmo tempo, se comunica com um público mais amplo, na medida em que não é hermético, e conduz uma trama que pode interessar a qualquer um que viva em ambiente urbano, pois facilmente se identificará com os personagens ou a situação apresentados.

Como diz a sinopse divulgada do filme “O Som ao Redor”, é “uma crônica brasileira e uma reflexão sobre história, violência – e barulho”.


                                      TABU
Antonio Carlos Egypto

TABU.  Portugal, 2012.  Direção: Miguel Gomes.  Com Teresa Madruga, Laura Soveral, Ana Moreira.  119 min.
“Tabu” é uma história contada em duas partes distintas.  Na primeira, vê-se o ocaso de uma senhora idosa, temperamental, que se comporta de modo estranho e faz referência a coisas incompreensíveis que remetem ao seu passado.  Convive com uma empregada caboverdiana, seca e lacônica, que ela crê que a persegue, e com uma vizinha dedicada a causas sociais.  Até que ficamos sabendo de um seu antigo amor, que será o narrador da segunda parte.  E aí o filme cresce, mostrando uma história de amor e traição, que nos leva à África e remete ao clássico do cinema mudo “Tabu”, de F. W. Murnau ,de 1930 .
A fotografia, em preto e branco, é esmerada e merece destaque.  Mas é o modo como Miguel Gomes conduz sua narrativa e inova ao filmar o que mais interessa no filme.  Há, por exemplo, cenas em que os personagens estão em ação e falando uns com os outros, mas os sons que ouvimos são apenas ruídos de casa ou uma pedra que cai na água.  Músicas modernas contrastam com o que se está vivendo em cena, encobrindo eventos da narrativa ou tornando-a francamente estranha e dissonante.  Mas o sentido não se perde, nem se confunde.  A lente da câmera recebe as gotas da chuva, o que transforma a imagem em algo irreal, que se dissolve em desejo ou sonho.
Um jacaré recém-nascido é um presente exótico dado à personagem Aurora (Murnau sendo lembrado outra vez) pelo marido.  Sua fuga e consequente procura nos revela a atração sexual e a traição.  Aliás, um jacaré sempre estará à espreita, com seus olhos arregalados.
Como se pode ver, é um filme especial.  Pode não agradar ao público em geral, mas deve interessar aos cinéfilos.  E a quem conseguir se despir de conceitos estabelecidos e se abrir à novidade.  Quem assistiu e gostou de “Aquele Querido Mês de Agosto”, o filme do diretor, de 2008, que foi um dos destaques da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo daquele ano, certamente vai curtir o novo filme de Miguel Gomes.  Quem não gostou, ou não gostou tanto, pode dar uma nova chance ao cineasta, agora.  Ele é daqueles talentos que o cinema mundial revela, de tempos em tempos, nos festivais, que tem tudo para permanecer.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

MAZZAROPI

                        
Antonio Carlos Egypto




MAZZAROPI.  Brasil, 2013.  Direção e roteiro: Celso Sabadin.  Documentário.  97 min.


Amácio Mazzaropi (1912-1981) foi uma figura única e especial na história do cinema brasileiro.  Basta dizer que ninguém mais, antes ou depois dele, enriqueceu fazendo cinema no Brasil.  Ele, sim. Deixou um vasto patrimônio, conseguido com a renda de seus filmes, incluindo seu próprio estúdio e produtora.  Ele atuou em 32 longas-metragens, dos quais produziu 24, escreveu 21 e dirigiu 13 filmes.  E ainda cantava com frequência neles.  Vendeu cerca de 200 milhões de ingressos de cinema, numa época em que o Brasil tinha 70 milhões de habitantes.  Um fenômeno!



Mas, afinal, quem foi Mazzaropi?  Como entender essa trajetória?  Essa é a proposta do documentário “Mazzaropi”, dirigido e roteirizado por Celso Sabadin, conhecido crítico de cinema, que com muita eficiência nos revela o personagem, valendo-se da interação entre depoimentos e cenas de filmes.

Quem trabalhou ou conviveu com Mazzaropi fala sobre sua figura profissional, seu trabalho, sua personalidade, suas escolhas e possíveis frustrações, algumas vezes revelando detalhes inéditos, engraçados ou surpreendentes.  Gente como Pio Zamuner, Glauco Mirko Laurelli, Galileu Garcia, Moracy do Val, Ewerton de Castro, Selma Egrei, Marly Marley, Alfredo Sternhein, Máximo Barro, Gustavo Dahl, Paulo Duarte, seu biógrafo, o filho de criação André Luiz Toledo e outros que conviveram profissionalmente, trabalharam com ele nas diversas etapas de uma produção cinematográfica ou acompanharam de perto a carreira de Mazzaropi.  Depoimentos de pessoas muito conhecidas do público também aparecem: Hebe Camargo, Ary Toledo, Renato Teixeira, Agnaldo Rayol, Carlos Massa (o Ratinho).  Destacam-se as revelações de Ronnie Von sobre a solidariedade recebida durante uma enfermidade grave e a hilária entrevista com David Cardoso, ator de seus filmes, que imita o jeito caipira de falar de Mazzaropi e conta alguns lances de sua homossexualidade.



Entender o que é ser caipira é, por sinal, o começo da história e o diretor Celso Sabadin dedica alguns minutos, no início do filme, para revelar o que se pode entender como caipira, tanto numa compreensão sociológica quanto no entendimento artístico e no preconceito popular.  Um bom jeito de entrar no assunto.  A seguir, vamos conhecendo este humorista, ator cômico excepcional, homem de circo, de rádio e de TV, de negócios e, sobretudo, de cinema.  Dos primeiros filmes na Vera Cruz às suas produções próprias, sucessos absolutos de bilheteria, especialmente no centro-sul do país, o personagem surge por inteiro.  Um resgate importante e necessário.



O mistério do enriquecimento por meio do cinema brasileiro, de certo modo, persiste.  Cultura popular antenada com o mercado dá resultado, quando associada a um talento incomum.  O domínio e propriedade dos meios de produção, sua economia e simplicidade, também explicam muita coisa.  Mas o sucesso é sempre um tanto enigmático.  Ainda mais um êxito tão duradouro e marcante como o alcançado por Mazzaropi, que perdura até hoje nas vendas de seus filmes em DVD e na sua exibição pela TV.

O documentário “Mazzaropi”, de Celso Sabadin, foi exibido em festivais no Brasil e em Portugal e deveria ter sido lançado nos cinemas.  Infelizmente, saiu direto em DVD, de modo que essa é a forma de conhecê-lo agora.  Vale a pena ir atrás.

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

MELHORES FILMES DE 2013

                          
                         
Antonio Carlos Egypto


Todo começo de ano é hábito da crítica, e dos meios de comunicação relacionados ao cinema, apontar os dez melhores filmes exibidos no circuito comercial no ano anterior.  Desconsideram-se os filmes exibidos apenas em mostras e festivais, já que eles foram apresentados em poucas sessões para um público reduzido.  É evidente que isso deixa pérolas de fora, às vezes filmes especiais que nunca chegarão ao circuito ou demorarão alguns anos para serem lançados.  Por isso, também, alguns desses títulos podem aparecer nas listas porque exibidos comercialmente só em 2013, apesar de terem sido feitos em 2009, 2010 ou 2011.  Já filmes mais antigos, que podem ser relançados em cópias restauradas, não são considerados.  Seria difícil entender a inclusão de, por exemplo, LARANJA MECÂNICA, de Kubrick, entre os melhores de 2013.  Caberia, isto sim, numa lista de melhores de todos os tempos.

O ano de 2013 nos cinemas foi pródigo em quantidade.  Foram quase 400 filmes lançados em todo o Brasil.  Evidentemente, muita coisa não tinha a menor significação cultural e nem sequer funcionava como entretenimento confiável ou aceitável.  Mas, em meio a muita bobagem e repetições sem fim, é fácil lembrar de pelo menos uns 30 filmes de fato relevantes.  Talvez mais do que isso.  Tanto assim que é difícil elaborar uma lista dos 10 melhores, em cada categoria.  Houve bons filmes a serem apreciados, sim.  Alguns foram muito mal lançados, ficaram pouco tempo em cartaz ou não receberam a injeção de marketing que Hollywood faz com tanta competência.  De todo modo, quem selecionou bem não tem do que se queixar.  Havia coisa boa para todos os gostos.

Aí vão minhas listas dos melhores longas-metragens de 2013, brasileiros e internacionais, atendendo aos pedidos da Confraria Lumière, do site Pipoca Moderna e da Abraccine (Associação Brasileira dos Críticos de Cinema), que premia o melhor nacional e o melhor internacional do ano.  Todos os filmes que constam das listas têm críticas publicadas aqui no Cinema com Recheio, ao longo de todo o ano.


ERA UMA VEZ EM ANATÓLIA

INTERNACIONAIS

1.    ERA UMA VEZ EM ANATÓLIA, de Nuri Bilge Ceylan, da Turquia.
2.    A GRANDE BELEZA, de Paolo Torrentino, da Itália.
3.    AMOR, de Michael Haneke, da Áustria.
4.    ALÉM DAS MONTANHAS, de Christian Mungiu, da Romênia.
5.    O ESTRANHO CASO DE ANGÉLICA, de Manoel de Oliveira, de Portugal.
6.    PAIS E FILHOS, de Hirokazu Kore-Eda, do Japão.
7.    UM TOQUE DE PECADO, de Jia Zhang-Ke, da China.
8.    TABU, de Miguel Gomes, de Portugal.
9.    A CAÇA, de Thomas Vinterberg, da Dinamarca.
10. A CAVERNA DOS SONHOS ESQUECIDOS, de Werner Herzog, da Alemanha.

Destaques:
CÉSAR DEVE MORRER, de Paolo e Vittorio Taviani, da Itália.
BRANCA DE NEVE, de Pablo Berger, da Espanha.
VOCÊS AINDA NÃO VIRAM NADA, de Alain Resnais, da França.



O SOM AO REDOR

NACIONAIS

1.    O SOM AO REDOR, de Kleber Mendonça Filho.
2.    O QUE SE MOVE, de Caetano Gotardo.
3.    O DIA QUE DUROU 21 ANOS, de Camilo Tavares.
4.    TATUAGEM, de Hilton Lacerda.
5.    NA QUADRADA DAS ÁGUAS PERDIDAS, de Wagner Miranda e Marcos Carvalho.
6.    FLORES RARAS, de Bruno Barreto.
7.    FAROESTE CABOCLO, de René Sampaio.
8.    SUPERNADA, de Rubens Rewald e Rossana Foglia.
9.    ABISMO PRATEADO, de Karim Aïnouz.
10. DOSSIÊ JANGO, de Paulo Henrique Fontenelle.

Destaque: REPARE BEM, de Maria de Medeiros, coprodução Portugal/Brasil.