quinta-feira, 28 de março de 2013

DENTRO DA CASA


Antonio Carlos Egypto

DENTRO DA CASA (Dans la Maison).  França, 2012.  Direção: François Ozon.  Com Fabrice Luchini, Ernst Unhauer, Kristin Scott Thomas.  105 min.


“Dentro da Casa” é um filme curioso e com uma proposta arrojada.  Bem ao estilo de François Ozon, que está sempre em busca de algo novo, inusitado, para apresentar.  A história gira em torno do relacionamento de um professor de literatura francesa, Germain (Fabrice Luchini), com um de seus alunos. 

Como quase todos os professores hoje em dia, ele reclama que seus alunos não leem e não escrevem mais do que duas linhas.  Até que encontra em Claude (Ernst Unhauer) um talento literário, desabrochando aos 16 anos de idade.  Claude vai construindo sua história em capítulos, na medida em que ganha a confiança de um colega de classe e de sua família e se imiscui na vida deles.  Aí se desenrola um filme de suspense a la Hitchcock.  Com implicações éticas, decisões que geram fortes problemas e tudo o mais.  Porém, o centro da narrativa é outro.



Na verdade, “Dentro da Casa” é sobre a construção literária.  Como ela se dá, a partir da experiência de um autor, no caso o jovem aluno, observando a vida de outros.  E como se pode construir uma história com suposições, imaginação, delírios mesmo, a partir do que se vê.

Quem cria uma narrativa parte de algo visível e projeta possibilidades, desdobramentos, consequências.  Inventa a partir de algo.  Que pode ser pouca coisa, como o filme ao final ilustra.  Um diálogo que não se ouve entre duas mulheres, com gestos intensos, pode representar uma briga de irmãs por questões financeiras, uma pendenga amorosa entre amantes lésbicas e o que mais a imaginação puder criar.  Há aí a referência a “Janela Indiscreta”, grande clássico do mestre do suspense, em que o personagem imobilizado, na condição de voyeur, imagina e cria, a partir do que pode ver de sua janela, para as demais janelas das unidades do prédio em que mora.  O autor literário também interfere na trama, se insere nela, como é o caso de Claude, convivendo na família do amigo Rapha.  E o supervisor da obra literária, o professor Germain, também não consegue se colocar de fora da criação.  O mesmo acaba acontecendo com sua mulher, Jeanne (Kristin Scott Thomas), com quem Germain compartilha a escrita do jovem.

Como distinguir a criação literária da chamada realidade?  Isso pode acabar sendo difícil, principalmente quando chega a hora de encontrar o final da narrativa em capítulos.  Quando a vida e a história criada se confundem, os riscos são grandes e capazes de produzir situações que escapam ao controle. Acompanhar o filme, vendo a produção literária do garoto seguida pelo professor se construindo na forma de um folhetim aos capítulos, é o que de mais interessante tem essa história.



O que importa não é tanto o que acontece ao professor, ao aluno, ao colega e à família, nem à esposa do professor.  O que importa é como se dá a criação literária, a partir de alguém inexperiente, mas com talento e sagacidade para experimentar, correr riscos e colocar em palavras bem escritas algo que ultrapasse sua vivência concreta, que pertença ao mundo da imaginação, da criação.  E que, ao mesmo tempo, possa remeter ao que acontece com o próprio autor nas suas relações atuais, em suas experiências anteriores e em seu mundo interno.

Ozon, e o cinema francês, em algumas oportunidades, conseguem pôr em relevo a criação literária e alçá-la à condição de personagem principal de uma película.  Só quem ama e valoriza a literatura poderia fazer uma homenagem como essa.  Uma bela e inteligente homenagem.  Num filme envolvente, que tem leveza e um bom desempenho de seu elenco.

terça-feira, 26 de março de 2013

Dentro de Casa



Tatiana Babadobulos

Dentro de Casa (Dans la Maison). França, 2012. Direção: François Ozon. Roteiro: Juan Mayorga. Com: Fabrice Lucchini, Bastien Ughetto, Kristin Scott-Thomas, Emmanuelle Seigner. 106 minutos

Para escrever, a imaginação dos autores vai longe. Podem observar as pessoas na rua, inventar uma fantasia. Há até uma história escrita a partir de objetos jogados no lixo, sob a alegação de que os descartáveis podem dizer muito sobre quem é a pessoa, o que faz, o que come, o que lê (se é que lê...).

No caso do adolescente imaginado por François Ozon (“Potiche: Esposa Troféu”), no longa-metragem “Dentro de Casa” (“Dans la Maison”), a história vai começar a fluir quando o rapaz, Claude (Ernst Umhauer), se “infiltra” na casa de um colega de classe, Rapha (Bastien Ughetto ), para xeretar como vive a sua família. Rapha mora com o pai e a mãe, em uma típica casa de classe média, diferentemente de Claude. Não se sabe como é a sua casa, mas Claude diz logo que a casa de Rapha dá umas três da dele...

A questão é que o modo de vida de Claude pouco é mostrada – e também pouco interessa ao espectador. O que vai ser o foco da história contada na tela grande é exatamente como vive, ou como Claude imagina viver, a mãe de Rapha, Esther (Emmanuelle Seigner).


O primeiro capítulo desta história é escrita como lição de casa pelo aluno para a aula de francês. Intrigado com os termos e até mesmo pela história empolgante (principalmente em comparação aos outros da classe), o professor Germain (Fabrice Luchini) decide chamá-lo para conversar. Daí para começar a se interessar pelos textos, pela escrita, pela criatividade, foi um pulo.

Aluno e professor se encontram após o horário regular das aulas para trocar ideias e, ao mesmo tempo em que o mestre mostra o caminho ao aluno, se empolga ao saber que ele escreve muito bem. Para ajudá-lo, empresta livros, cita Gustave Flaubert e manda que o menino leia “o genial ‘Madame Bovary’”.

Mas mesmo sendo empolgante, a história é também perigosa, uma vez que o rapaz narra o que acontece dentro da casa do colega, e também pincela adjetivos que fantasia.



Assim como em “Potiche: Esposa Troféu”, neste longa-metragem Ozon explora as relações familiares, insere diálogos bem construídos e joga luzes sobre as relações aluno/professor, colega/colega e escritor/leitor.

Durante boa parte da trama o espectador se confunde e já não sabe mais o que faz parte do filme e o que é a fantasia do rapaz. Neste jogo, quem ganha é a plateia, que sai imaginando não apenas diversos finais para a história, mas também outros meios.

sábado, 23 de março de 2013

A CAÇA

          Antonio Carlos Egypto



A CAÇA (Jagten).  Dinamarca, 2012.  Direção e roteiro: Thomas Vinterberg.  Com Mads Mikkelsen, Thomas Bo Larsen, Annika Wedderkoop, Lasse Fogelstrom.  115 min.

Thomas Vinterberg é o cineasta dinamarquês que realizou, em 1998, o brilhante “Festa de Família”.  Ali, num evento preparado para homenagear os 60 anos do patriarca, vem à tona um histórico de abuso sexual dentro da família, que vira do avesso a festividade e derruba todas as convenções e aparências.  O acobertamento e a impunidade do agressor foram pontos marcantes dessa trama.
Abuso sexual é uma coisa muito séria e demolidora para quem é vítima e até para o abusador, geralmente abusado na infância, que repete o comportamento por falta de elaboração, por não tê-lo superado.  Algo como uma vingança inconsciente.  Esse filme foi, e é, uma referência para a discussão do tema, pela qualidade do trabalho apresentado.

Pois bem, Thomas Vinterberg agora focaliza o outro lado do mesmo problema.  Se praticar abuso sexual é terrível, ser acusado de tê-lo praticado, sem que isso seja verdade, é igualmente terrível.  O acusado é julgado e condenado moralmente pela comunidade, sem que se deem a ele condições reais de se defender.  Na verdade, ninguém quer ouvi-lo.  Ele já foi condenado por simples indícios, a partir da fantasia de uma menina pequena, de 5 anos, do jardim da infância.  Perde o emprego, sumariamente.  É alvo da desconfiança de seus entes mais próximos: a nova namorada, o grande amigo, o filho adolescente.  Faz lembrar os personagens de Hitchcock, culpados até que provem sua inocência, tudo conspirando contra eles.
Mas eu gostaria de enfatizar aqui o fato de que o mesmo diretor olhe pelo outro lado do problema e tenha sensibilidade para apresentar um drama de proporções similares.  Quando alguém julga e condena e isso se torna uma avalanche no ambiente social, o que quer que o acusado possa dizer ou mostrar será sempre utilizado contra ele.  A comunidade mergulha numa histeria coletiva.  Não importa se não há provas ou se elas não são suficientes ou conclusivas.  Isso, colocado na mídia, torna-se algo monumental, sem saída.

Não custa lembrar o famoso caso da Escola de Base, de São Paulo, acusada em 2005 da prática de abusos sexuais em seu interior, com ampla repercussão em todos os tipos de mídia.  Ela foi depredada, financeiramente destruída, seus donos foram ameaçados de morte, até que se chegasse à conclusão da sua inocência.  Impossível reparar o que se perdeu.
“A Caça” mostra todo o processo de acusação que destrói a vida do personagem Lucas, o ótimo ator Mads Mikkelsen, premiado em Cannes, que já atuou em muitas produções nórdicas de qualidade, inclusive o recente “O Amante da Rainha”.  Ele, acuado, percebendo que qualquer fala ou reação só faz incriminá-lo ainda mais, suporta o inferno até o seu limite.  A interpretação do ator nos dá toda a dimensão do sofrimento e da injustiça que ele vive.  Mais um grande filme do diretor Thomas Vinterberg.  Grande pelo seu talento e brilho, apesar da produção modesta.  Em todo caso, nem tão modesta quanto a de “Festa de Família”, que pertencia ao movimento Dogma 95, que buscava realizar filmes com pobreza, dentro de recursos intencionalmente limitados.  O movimento não foi avante, mas o cineasta fez o melhor filme dentro dele e agora faz o seu reverso, com rara competência.  Admiro quem é capaz de ver em profundidade, por diversos ângulos, uma mesma questão.  Tem mais chances de alcançar a complexidade dos fatos e do conhecimento.  Agora, “A Caça” torna-se também uma referência importante na discussão do tema do abuso sexual.


sexta-feira, 22 de março de 2013

A Caça





Tatiana Babadobulos

A Caça (The Hunt). Dinamarca, 2012. Direção: Thomas Vinterberg. Roteiro: Thomas Vinterberg e Tobias Lindholm. Com: Mads Mikkelsen, Thomas Bo Larsen, Annika Wedderkopp, Lasse Fogelstrøm, Susse Wold, Anne Louise Hassing, Lars Ranthe, Alexandra Rapaport. 115 minutos


Dificilmente o espectador vai sair da sala do cinema da mesma maneira que entrou, após assistir ao longa-metragem “A Caça” (“The Hunt”). Dirigido pelo dinamarquês Thomas Vinterberg, o filme conta uma história ímpar sobre como um mal-entendido (ou, quiçá, uma mentira), pode dar diferentes rumos à vida de uma pessoa, principalmente levando para o lado negativo.

Lucas (vivido por Mads Mikkelsen, premiado como Melhor Ator no Festival de Cannes no ano passado) acaba de se divorciar e tenta refazer a sua vida trabalhando em uma escola infantil perto de sua casa, localizada em uma pequena cidade no interior da Dinamarca. Refazer a vida, no caso de Lucas, significa dar certo com a sua nova namorada, ter um novo emprego e restabelecer a relação com o filho adolescente, Marcus.



Como em toda cidade pequena, a vizinhança toda se conhece. Se isso tem um lado bom (nunca se está sozinho, por exemplo), há o lado ruim: as notícias se espalham como fogo em palheiro, independentemente se a versão é verdadeira ou não.

No caso de “A Caça”, o fato de a vizinhança se conhecer é bastante prejudicial ao personagem central, uma vez que ele é vítima de fofoca e precisa lutar com todas as suas forças e métodos para provar a sua inocência.

A fofoca, no caso, tem relação à pedofilia, assunto que sempre está presente nos noticiários. Vale lembrar dos casos envolvendo a Igreja, mas também o maior dos últimos anos, envolvendo a Escola Base – aqui, porém, o mal-entendido se desfez depois de prejudicar diversas famílias. 


 Vinterberg, que nos anos 1990 participou, ao lado de Lars von Trier, do manifesto Dogma 95 (que determinava algumas regras na direção, como proibição de truques e filtros e câmera na mão), é coautor do roteiro e assume uma direção bem-sucedida, que envolve o espectador e extrai do ator, que esteve recentemente em cartaz no longa-metragem “O Amante da Rainha”, o melhor de sua representação, mostrando a tensão de ser acusado e a vontade de querer reconquistar o filho.

“A Caça”, que esteve na programação da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo em 2012, é uma boa oportunidade não apenas de se aproximar da gelada cultura dinamarquesa, mas também de refletir sobre do que as palavras soltas e a boa educação dos filhos podem ser capazes de fazer.

quinta-feira, 21 de março de 2013

DEPOIS DE LÚCIA

                               
Antonio Carlos Egypto

DEPOIS DE LÚCIA (Después de Lucía).  México, 2012.  Direção: Michel Franco.  Com Tessa Ia, Hernán Mendoza, Gonzalo Vega Sisto, Francisco Rueda, Paloma Cervantes.  103 min.

Roberto (Hernán Mendoza) e Alejandra (Tessa Ia) são pai e filha, tentando sobreviver “Depois de Lúcia”, ou seja, após a morte da esposa e mãe, vivendo seu luto.  Segundo o diretor Michel Franco, a história foi inspirada em experiências pessoais dele mesmo: “o que acontece quando, não aceitando a morte de um ente querido, esquecemos de prestar atenção aos que ficam.  Essa questão me acompanha desde a infância, quando convivi com alguém muito próximo a mim, que jamais superou o luto”.
O luto em si mesmo é uma violência, em casos como o que está mostrado no filme.  Recomeçar a vida em outro lugar, com outro trabalho, outras pessoas, uma nova escola.  Essa violência pode se multiplicar e ir muito além do vazio e da solidão.  E pessoas fragilizadas como eles podem cometer imprudências, erros banais, que se voltam fortemente contra eles.  Ainda mais nesses tempos em que a Internet dissemina tudo instantaneamente.  Não sabendo se comunicar a contento, podem não encontrar saídas e viver cada um por seu lado um drama pesado.

No universo escolar de Alejandra, o filme mostra a violência psicológica e física que hoje rotulamos como bullying.  E podemos perceber a que ponto alguém acaba se submetendo sem conseguir virar o jogo, pedir ajuda, nada.  Quanto aos molestadores adolescentes, sua crueldade parece não ter nenhum limite.  É inacreditável o que vemos na tela, não porque o diretor goste de mostrar cenas brutais.  Ao contrário, ele evita se valer de cenas explícitas.  Mas a situação é de tal ordem, que não há o que possa suavizá-la.  Como é possível que adolescentes possam nos passar a ideia de que tudo já está irremediavelmente perdido?  O que está acontecendo com o mundo? 
Gostaria de destacar que o papel reservado à escola na trama é dos mais preocupantes.  Um colégio que faz testes periódicos em seus alunos, para detectar o uso de drogas, como a maconha, por exemplo, e chama os pais para alertá-los e, ainda, promete expulsar os reincidentes, é totalmente incompetente para detectar o bullying, a violência que acontece entre seus alunos.  Conversa com os adolescentes, mas não os entende, nem ao que se passa sob suas barbas.  Inadmissível!

“Depois de Lúcia”, o vencedor da mostra Un Certain Regard em Cannes, 2012, é um filme mexicano.  O país está vivendo uma espiral de violência por conta, principalmente, do tráfico de drogas, da atuação policial, da deterioração social que acompanha esses embates e penetra no tecido social, alterando valores e comportamentos.  Mas não é um fenômeno típico mexicano.  “Vivemos em uma sociedade atormentada pela violência”, diz o diretor.  Recentes acontecimentos na Noruega, nos Estados Unidos, dão conta disso.  Quem viu o nosso belo filme brasileiro “O Som ao Redor”, de Kleber Mendonça Filho, tem ali uma radiografia da nossa realidade quanto ao isso.
Se a violência é a grande chaga da atualidade (não terá sido sempre assim, de um modo ou de outro?), a crença na lei e na repressão como vingança, além da penalização de crianças e adolescentes, não é menos preocupante.  Pior ainda é fazer justiça com as próprias mãos.  “Depois de Lúcia” coloca essas questões em cena, de forma direta e, ao mesmo tempo em que sensibiliza, gera polêmica.  Ficamos tão abalados com tudo o que o filme mostra, que parece que tudo se justifica, no fim das contas.  Mas  não é assim.  A menos que queiramos alimentar o mundo com ainda mais violência, de um modo que asfixie de vez o convívio humano em sociedade.

O retrato que “Depois de Lúcia” nos traz é sério, competente na abordagem, bem realizado com atores não profissionais, fiel a uma realidade dolorosa, que precisa ser mostrada.  Seu desfecho pode levantar muitos questionamentos e nos faz pensar que muitas soluções somente agravam o problema, dando a impressão de que o resolvem.  Vejam o filme, ele é bom, vale a pena, e imaginem o que aconteceria depois que a narrativa se encerra.  Muito mais tragédia, certamente. Mais violência e vidas perdidas, também.  Não é isso?


terça-feira, 19 de março de 2013

PIETÀ


   Antonio Carlos Egypto



PIETÀ (Pietà).  Coreia do Sul, 2011.  Direção: Kim Ki-Duk.  Com Min-soo Jo, Eunjin Kang, Jae-rok Kim.  104 min.


O sul-coreano Kim Ki-Duk é um cineasta visceral.  Seus personagens sempre atingem comportamentos exacerbados, como se nada pudesse detê-los.  Ou como se fosse sempre preciso testar algum tipo de limite.  Esse limite pode se revestir de erotismo, transformações no corpo, paixão, isolamento, violência.  Tudo em alto grau, para além do que se poderia esperar.  Nesse sentido, “Pietà” é muito semelhante a “A Ilha”, de 2000, “Casa Vazia”, de 2004, “Time”, de 2006, ou “Primavera, Verão, Outono, Inverno e Primavera”, de 2003, esse último seu trabalho mais lírico e belo.  Há uma patente falta de equilíbrio e uma exacerbação da experiência humana nesses filmes, que são provocadoras para o espectador.

“Pietà” se centra especialmente numa expressão da violência: a crueldade.  Ao tentar explicá-la, derrapa um pouco, mas as cenas que mostra são absurdas, inumanas, de tão radicais.



Um jovem trabalha como cobrador de dívidas de agiotas. E o faz das formas mais cruéis imagináveis, visando a obter o montante exigido.  Por exemplo, produz incapacitações que geram, de um lado, dinheiro do seguro, de outro, pessoas que perdem braços, pernas, ficam aleijadas e podem acabar como mendigas nas ruas. Sem dó nem piedade.  Afinal, quem pede dinheiro emprestado sabendo que não vai pagar e volta a pedir outra e outra vez, só pode mesmo acabar assim.  É o que ele pensa.  Os devedores não só estão de acordo como, às vezes, tentam convencê-lo a se automutilarem por dinheiro.

As condições econômicas e sociais da existência não contam, a questão se resolve no plano meramente individual.  Uma espécie de validação de vencedores e vencidos.  Inapelável.  Crítica do capitalismo que mutila e destrói as pessoas?  Afinal, tudo se faz por dinheiro.  De qualquer forma, não fica clara a dimensão coletiva do problema, o que deixa a narrativa empobrecida.  Centrada na crueldade pela crueldade.



Aí aparece uma mãe ausente e que abandonou seu filho.  Ou uma impostora, que se faz passar por ela.  De alguma maneira, as coisas mudam.  Algo pretende estar sendo explicado.  Mas não convence.

Que o ser humano é capaz de ser cruel, todos sabemos.  Que isso não tem propriamente uma explicação, também é fato.  E ficamos perplexos diante disso.  Por vezes, bradamos por vingança, crueldade para combater a inexplicável crueldade humana.  Ou tentamos acreditar em algo que aplaque a nossa consciência ou nossos próprios impulsos. 



Exibir alguém que não só nem tenta controlar seus impulsos, como também não sente culpa alguma, incomoda muito.  Se pudermos classificar numa patologia qualquer, fica mais fácil de admitir.  Só que “Pietà” não vai bem por aí.  Fala de monstros que se regem pela absoluta falta de afeto, porque lhes faltou amor.  De vinganças e mistérios.  É pouco, para tanta exposição de crueldade na tela, em que pese o talento do diretor para produzir imagens fortes, impactantes e belas, também.

“Pietà” foi premiado com o Leão de Ouro no Festival de Cinema de Veneza.



domingo, 17 de março de 2013

Qual É o Nome do Bebê?



Tatiana Babadobulos

Qual É o Nome do Bebê? (Le Prénom). Bélgica e França, 2012. Direção: Alexandre de La Patellière e Matthieu Delaporte. Roteiro: Matthieu Delaporte. Com: Charles Berling, Guillaume De Tonquedec, Judith El Zein, Patrick Bruel, Valérie Benguigui. 109 minutos


Originalmente uma peça de teatro, “Qual É o Nome do Bebê” (“Le Prénom”) leva para a tela do cinema uma discussão familiar que acontece durante um jantar.

A esposa de Vincent (Patrick Bruel) vai ter nenê. Quando ele vai à casa da irmã, Elizabeth (Valérie Benguigui), o cunhado (Charles Berling) e o amigo da família (Guillaume De Tonquedec) decidem perguntar o sexo do bebê e, por consequência, o nome que a criança será batizada.

Não precisava ter uma discussão por causa disso, mas, durante quase duas horas, a família estende a conversa, lava a roupa suja e faz cobranças do passado como só uma família francesa é capaz de fazer.


O longa traz diálogo acalorados e, sobretudo, cheios de ironias e humor ácido que faz a plateia rir.
A conversa começa antes de a futura mamãe, Anna (Judith El Zein), chegar de uma reunião de negócios. E, para apimentar, Vincent diz que o nome da criança será Adolphe -com PHE e não com F no final. Por remeter ao Hitler, a discussão começa.


Em meio a mentiras, mal entendidos e piadas, o espectador se deleita com invocações de outros ditadores que dominaram o mundo.

O nome original do longa se refere ao nome. Então, na apresentação dos créditos, os atores só aparecem com o primeiro nome. O sobrenome só vem ao final.



“Qual É o Nome do Bebê” é um drama familiar bem ao estilo francês, mas não se aprofunda muito, é superficial. De qualquer maneira, os diretores estreantes Alexandre de La Patellière e Matthieu Delaporte (também autor do roteiro no teatro e no cinema) conseguem mostrar a discussão de maneira interessante, ainda que remeta ao teatro. Com a câmera, os diretores conseguem direcionar o olhar do espectador e extrair o timing perfeito de Bruel.

“Qual É o Nome do Bebê” fez muito sucesso no teatro francês em 2010 e estreou no cinema naquele país no ano passado. O longa-metragem diverte, mas está longe de ser um dos melhores filmes franceses.

sábado, 16 de março de 2013

SUPER NADA

                           
Antonio Carlos Egypto

SUPER NADA. Brasil, 2012.  Direção e roteiro: Rubens Rewald.  Codireção: Rossana Foglia.  Com Marat Descartes, Jair Rodrigues, Clarissa Kiste, Iacov Hillel.  94 min.
Guto (Marat Descartes) é um ator em busca de uma oportunidade, que sobrevive como pode, fazendo pequenos trabalhos.  Ele tem lá suas pretensões artísticas, não quer fazer qualquer coisa.  Mas se submete desde a testes para comerciais até a performances de rua, para levantar uns trocados.  A vida é dura para quem quer viver de cultura.  É o que o filme mostra.
Ocorre que Guto acaba sendo aprovado num teste para participar de um famoso e antigo programa de humor, na TV.  É certo que é só num dia do programa.  Mas vem a esperança.  Se der certo, com a visibilidade que tem a TV, pode ser a oportunidade que ele esperava.  Além do mais, ele é fã do humorista Zeca (Jair Rodrigues).

Acontece que Zeca e o seu programa Super Nada estão em decadência.  “Não está fácil pra ninguém” é um bordão que o personagem interpretado por Jair Rodrigues repete várias vezes. Não está fácil, mesmo, e pode ser mais complicado, se fatores pessoais no terreno amoroso, como ciúmes, separação ou então alcoolismo, entram na história.  Aí é que as coisas desandam de vez.  Ou não.  Quando o estrago é muito grande, e todo mundo perde o rumo, é mais fácil aceitar as maluquices do outro.
Marat Descartes é um ator muito competente, tem dado vida a personagens tão ou mais estranhos e interessantes do que esse Guto.  A presença do cantor Jair Rodrigues no filme é emblemática.  Ele não é ator, mas é um artista de sucesso, que já teve o seu auge.  Continua querido e animado, mas o tempo passou e a idade acaba pesando.   Tem a vivência que o aproxima do personagem Zeca.

Jair é uma figura espontânea e que se dedica muito a tudo o que faz.  Isso fica patente no seu desempenho em “Super Nada”.  O sambista brincalhão que ele sempre foi gerou, nos anos 1960, uma brilhante interpretação de um clássico da MPB, que venceu o Festival da TV Record, em 1966: Disparada.  Uma música forte e séria, que aparentemente nada tinha a ver com sua persona.  Geraldo Vandré, o autor da música, ficou preocupado com a escalação de Jair para defender sua canção e falou seriamente sobre isso com ele, na época.  Ele deu conta do recado, magnificamente.  De forma inesquecível, aliás.  Aqui, o registro é mais difícil, porque é um desempenho de ator, não de cantor.  Mas é legal vê-lo tão empenhado em seu personagem.
Clarissa Kiste faz Lívia, a mulher de Guto, que se envolve também com Zeca e instala-se o conflito, que rompe o aparente equilíbrio possível, mesmo sob os efeitos etílicos.  Está muito bem no papel.
A ideia de um programa de humor tradicional de TV se chamar Super Nada não poderia ser mais direta.  O que essa programação popular de TV tem a oferecer é nada mesmo.  No superlativo.  Por essas e por outras é que, para quem quer trabalhar na cultura, “não está fácil pra ninguém”.

O roteiro e direção do filme são do cineasta e professor da USP, Rubens Rewald, que tem um nome muito próximo do de Rubens Ewald Filho, o crítico de cinema mais conhecido da atualidade.  Um não tem nada a ver com o outro, a não ser a paixão pelo cinema, que eu saiba.  O filme foi apresentado nos Festivais do Rio e de Gramado, na Mostra Tiradentes e na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.  Recebeu prêmios no Rio e em Gramado.


sexta-feira, 15 de março de 2013

ANNA KARENINA

                               
Antonio Carlos Egypto
ANNA KARENINA (Anna Karenina). Inglaterra, 2012.  Direção: Joe Wright.  Com Keira Knightley, Jude Law, Aaron Taylor-Johnson, Matthew MacFadyen, Olivia Williams.  130 min.
Anna Karenina, o clássico romance de Leon Tolstói (1828-1910) é uma história de amor épica, que reflete a Rússia do século XIX.  Amor, fidelidade, traição, ousadia, renúncia, são elementos dessa tragédia que já recebeu muitas encenações e adaptações cinematográficas.  Duas delas são facilmente encontradas em DVD no Brasil.  Uma é a versão inglesa de 1948, dirigida por Julien Duvivier, que tem Vivien Leigh como protagonista.  A outra, uma produção dos Estados Unidos de 1935, dirigida por Clarence Brown, que tem ninguém menos do que Greta Garbo no papel de Anna Karenina.  Ambos são ótimos filmes, em preto e branco, clássicos que fazem com o drama de Tolstói um belo trabalho, sobretudo emocionante.

Por que uma nova versão de “Anna Karenina” no cinema?  As questões que envolviam os comportamentos da época, com suas máscaras e amarras, que tornavam tudo pesado e difícil, e o seu rompimento, uma tragédia, o que era exigido da mulher e os papéis sociais envolvidos por tanta hipocrisia, são reflexões importantes para o mundo de hoje?  Justificam uma volta ao romance?
É sempre bom revisitar os clássicos e a história sempre tem muito a nos ensinar.  Além disso, a criatividade no cinema anda em baixa.  E uma trama como essa não se encontra facilmente.  Só que seria necessário pensar em algo novo, para justificar uma nova “Anna Karenina”.  O diretor Joe Wright, afeito a narrativas clássicas, como “Orgulho e Preconceito”, de 2005, e “Desejo e Reparação”, de 2007, encontrou um caminho muito interessante para dar sentido a essa nova adaptação do texto de Tolstói, escrito entre 1873 e 1877.

O set de filmagem, onde praticamente tudo acontece, é um teatro que vai mudando, à medida que as sequências de cena assim o exigem.  Três palcos, um auditório, passagens e bastidores, comportam toda a história filmada, interiores e exteriores, o que inclui palácios, cavalos, neve...  Há também algumas cenas filmadas em exteriores, mas são poucas e raras.  Apenas para complementar a narrativa.
O resultado disso é bastante convincente e o envolvimento com a história é pleno, total. Para tal, um impressonante trabalho de criação se impôs.  Sabemos que estamos num teatro, em alguma parte dele, mas a introdução dos diferentes ambientes, cenários, figurinos, uma direção de arte impecável, faz com que mergulhemos na trama.


Grandes atores e atrizes num palco às vezes só precisam do seu corpo e da sua voz para nos remeter a dimensões inteiramente distintas da realidade. O teatro é mágico e o papel do ator é central.  No cinema, adotar uma encenação teatral envolve sempre um risco de artificialismo, excesso, ritmo inadequado à tela, tédio.  “Anna Karenina” não padece de nenhum desses problemas.  Tudo se passa num set teatral, mas com todos os recursos cinematográficos para dotar a narrativa de dinamismo, emoção, drama e tragédia.  A parte técnica, que recebeu merecidas indicações ao Oscar (fotografia, figurino, trilha sonora original e direção de arte) garante o espetáculo.  O roteiro, de Tom Stoppard, baseado no romance original, trouxe atualidade e ritmo aos diálogos e ao desenrolar das cenas.  A produção é grandiosa, a direção, eficiente,  e o elenco dá bem conta do recado.

Keira Knightley está muito longe de Greta Garbo ou Vivien Leigh.  Ainda assim, é possível sofrer e ousar amar com a personagem Anna Karenina nessa nova versão.  Não custa aproveitar a oportunidade para rever as antigas versões cinematográficas.  E suspirar, sempre, sempre mais