quarta-feira, 28 de março de 2012

HELENO


Antonio Carlos Egypto



HELENO.  Brasil, 2012.  Direção: José Henrique Fonseca.  Com Rodrigo Santoro, Alinne Moraes, Angie Cepeda, Othon Bastos. 106 min.

Heleno de Freitas é um craque do nosso passado futebolístico, de quem quase ninguém se lembra mais, a menos que já tenha seus 80 anos de idade.  E cuja história muito pouca gente conhece, embora já possa ter visto referências ao seu nome, em algum lugar.  É, portanto, oportuno fazer um filme sobre ele, já que se trata de uma figura importante e controvertida da história do futebol brasileiro.

O filme “Heleno”, de José Henrique Fonseca, resgata essa história, focando-se no atleta protagonista, vivido por Rodrigo Santoro. Alterna cenas do auge do jogador, nos anos 1940,com cenas dos anos 1950, que marcam o seu declínio. Seu gênio difícil, conflitos e problemas pessoais, acabam por afastá-lo da Copa de 1950, disputada no Brasil. E ele já havia perdido a chance de exibir seu futebol ao mundo, em função da Segunda Guerra Mundial. No final da década de 1950,  passou seus últimos dias em um sanatório. As cenas referentes a esse período são tocantes. O filme tem uma bela fotografia em preto e branco, o que reforça a condição de filme de época, adicionando-lhe uma espécie de nostalgia.

Eram outros tempos, o futebol ainda não tinha alcançado a dimensão extraordinária que tem atualmente no Brasil, fruto de tantos títulos mundiais que conquistaríamos depois, da mídia avassaladora que cobre o esporte e da sua ampla e contínua difusão na nossa cultura.  O futebol ainda tinha alguns resquícios de sua origem elitista do início do século XX.  Já era muito popular, mas não era uma profissão bem vista pelas famílias.  Ao contrário, era algo encarado como de menor importância ou que até desvalorizaria o cidadão.  Um preconceito, talvez semelhante ao que atingia o campo das atrizes e atores de teatro e cinema e o pessoal de rádio.


Heleno, por exemplo, era de classe média alta, com recursos para atuar em outras áreas, chegando a se formar em Direito.  Tornou-se atleta profissional por ter um talento muito grande para a atividade e pelo grande prazer em jogar futebol.  Alcançou a glória e a notoriedade por conta desse talento e também de uma personalidade marcante.  Era muito autocentrado, ego inflado, arrogante, e tratava os colegas de profissão com superioridade e até desrespeito.  Ou seja, foi talvez o primeiro grande jogador-problema da História.  Um talento que devotava um imenso amor à camisa do Botafogo, mas um tanto indisciplinado e, sobretudo, descontrolado.

Somem-se a isso o seu comportamento mulherengo e boêmio, avesso aos cuidados com a saúde, e um quadro de enfermidade mental, associado à sífilis não tratada, regada a bebida e éter, e teremos a consequência deletéria posterior.

“Heleno”, mais do que se deter no futebol do atleta ou na reconstituição do seu desempenho em campo e em seus gols, privilegia o ser humano, seus conflitos, contradições e sentimentos. Mas não deve ter sido fácil trabalhar com a concepção dramática de tal personagem.  Algo ficou faltando para lhe dar mais consistência.  E como não conhecemos a figura e sua história, alguns elos se perdem ou não ficam bem esclarecidos.  Bem, há lacunas não resolvidas na própria história conhecida do jogador.

Num caso como esse, talvez o vai-e-vem no tempo não tenha ajudado a compor o personagem.  Algo mais linear na narrativa poderia informar melhor o público e simplificar a compreensão da figura e do seu contexto histórico.  Didatismo, muitas vezes, se torna chato, em arte.  Mas há situações em que ele não só é bem-vindo, mas um ótimo recurso narrativo.


Rodrigo Santoro está impecável, no papel de Heleno.  Consegue transmitir os arroubos e descontroles do personagem, sem nunca recorrer a exageros ou excessos.  Tudo comedido e equilibrado, transmitindo total credibilidade.  Aliás, o elenco, como um todo, está muito bem.

O filme tem beleza e poesia e não deixa de ser uma homenagem ao futebol de uma época que tinha seu glamour, num Rio de Janeiro tão charmoso, bonito e elegante como a própria figura do conturbado Heleno de Freitas.

terça-feira, 27 de março de 2012

Heleno

Tatiana Babadobulos

Heleno. Brasil, 2011. Direção: José Henrique Fonseca. Roteiro: José Henrique Fonseca e Fernando Castets. Com: Rodrigo Santoro, Alinne Moraes, Othon Bastos, Angie Cepeda, Herson Capri. 116 minutos.


Quem acompanha futebol e conhece histórias de “jogadores problemas”, como Romário, que tinha fama por não gostar de treinar; Edmundo, que adorava uma briga; Adriano, demitido recentemente do Corinthians, por viver se metendo em confusão, saiba que todos esses, do nosso tempo, têm um precedente. O nome dele era Heleno de Freitas e jogava no Botafogo, do Rio de Janeiro, nos anos 1940.

Sua história é contada no longa-metragem “Heleno”, e tem Rodrigo Santoro na pele do protagonista. A fita tem previsão de estreia no dia 30 de março.

Em entrevista coletiva realizada em São Paulo, o diretor José Henrique Fonseca (“O Homem do Ano”) explica que não se trata de “um filme sobre futebol”, mas há elementos que devem agradar ao amante do esporte. “O filme é cercado de futebol”, diz o diretor, citando a camisa sem número, tal como era usada na época, a bola, que era diferente, assim como o tecido da camisa e a chuteira.

O filme se passa no Rio de Janeiro e cumpre um arco que vai do auge da carreira do jogador, no Botafogo (Rio de Janeiro), até a sua morte, em um asilo em Barbacena (Minas Gerais). Heleno era intempestivo, fumava, bebia, era boêmio, cheirava éter e contraiu sífilis, causa de sua morte, já que se recusava a fazer o tratamento. Nesse meio tempo, porém, quando não estava com a esposa Silvia (Alinne Moraes) ou com a amante Diamantina (a colombiana Angie Cepeda), uma cantora do Copacabana Palace, onde morou, estava no clube, se achando o melhor jogador do mundo, que fazia tudo sozinho, apesar dos companheiros de equipe, sempre por amor à camisa. Coisa que não se vê mais hoje em dia. Como lembrou Zé Henrique, na coletiva, “Adriano foi jogar no Flamengo pelo amor ao Flamengo mais um milhão”. É bem por aí o que acontece hoje em dia.

Rodrigo Santoro, que também atua como produtor do longa, lembra que ser jogador naquela época era diferente de atualmente. “A diferença é a mídia”, completa, lembrando que, para a época na qual viveu, Heleno era cheio de atitude. “Ele tinha uma relação com a plateia, se deliciava movendo a multidão. Pulava no alambrado, era vaiado ou aplaudido”, diz Rodrigo, que já tinha ouvido falar do jogador, mas acredita que a sua geração não o conheceu. “Meu avô tem 95 anos e ficou emocionado quando contei sobre o filme. Ele disse que jogava muita bola, mas adorava uma confusão.”



Anos 1940
Para criar o clima dos anos 1940 na película, o diretor optou por filmar em preto e branco juntamente com o diretor de fotografia Walter Carvalho (“Central do Brasil”). “Primeiro pela cor perfeita para esse filme, e também porque é fetiche de todo cineasta fazer filmes em preto e branco”, esclarece o diretor. Segundo ele, com o preto e branco muita coisa pode ser imaginada. “Não precisamos recriar a cor exata da cortina do Copacabana, por exemplo”, diz.

Outro recurso para levar o espectador à época é a câmera baixa nas cenas de futebol que, aliás, são bem poucas. “Para trazer a realidade da época, escolhemos um jogo para dar ideia dos anos 1940 e não parecer artificial.”

Para viver o jogador, Rodrigo Santoro fez aulas de fundamentos de futebol com o ex-jogador Claudio Adão. “Foi uma das partes divertidas”, explica Rodrigo, que pediu para atuar nessas cenas de modo a entrar de cabeça no personagem. As aulas foram para aprimorar os fundamentos, já que o ator só costuma jogar “pelada” com os amigos. “Heleno também era conhecido por matar a bola no peito, de uma forma que a bola parecia colar no corpo”, arremata.

Para o final do filme, quando o jogador está definhando devido à doença, Rodrigo Santoro perdeu 12 quilos. “Filmamos durante 11 semanas [o que é considerado muito, já que a maioria dos filmes é feita em oito], pois paramos 40 dias para o Rodrigo emagrecer”, completa Fonseca. O custo da produção foi de R$ 8,5 milhões e contou com apoio de Eike Batista. “Ele bancou metade do filme”, acrescenta. “Há oito anos trabalhando para viabilizar o projeto, financiamento está mais difícil hoje e estamos dividindo com outras áreas. Encontrar a locação também foi difícil.”

Para construir sua personagem, Rodrigo Santoro explica que se inspirou em fotografias, foi à cidade onde Heleno nasceu. “Acho que ninguém é bom ou mau, tudo isso existe dentro da gente. O que fiz foi colocar pra fora. É uma personagem que me provocava e fui tentando me aprofundar.”

Alinne Moraes, no papel da esposa de Heleno, explica que nunca gostou de futebol, mas tentou pesquisar um pouco. “A neta do Heleno estava com a gente, e a esposa dele não era uma ‘Maria chuteira’. Ela se apaixonou, teve admiração, era uma grande mulher. Não que ela estivesse se sentindo traída, mas se sentia solitária, principalmente durante a gravidez.”

Heleno tinha o sonho de participar de uma Copa do Mundo, mas, por conta da Segunda Guerra Mundial, os torneios 1942 e 1946 foram cancelados. Outro sonho era jogar no Maracanã. Essa partida, porém, é a incógnita do filme.

Crítica
Poucas pessoas que hoje frequentam o cinema sabem quem foi Heleno de Freitas, personagem-título do longa-metragem “Heleno”. Talvez esse seja um dos problemas para aumentar o interesse do público do filme de José Henrique Fonseca. Mas, ao mesmo tempo, por se tratar de futebol, uma grande paixão nacional, dá para se imaginar as salas cheias. E, para completar, a fita ainda traz Rodrigo Santoro, ator talentoso e de grande sucesso dentro e fora do Brasil.

Pelo fato de a história ser contada de maneira não linear, o vai e vem no tempo cansa um pouco o espectador. O recurso é bastante utilizado quando se trata de uma trama bastante conhecida, o que não é o caso, ainda que se trata de uma história real. O diretor afirma que a opção foi para não fazer um drama e sensacionalismo muito grandes em torno da tragédia.

O preto e branco enaltece a forma e mostra que existe espaço nos cinemas de hoje, haja vista “O Artista”, longa-metragem francês que ganhou o Oscar de Melhor Filme este ano.

Mas o longa-metragem mostra que Heleno era o terror das mulheres, vivia para beber, fumar, cheirar éter. Morreu de sífilis. E magoava a esposa, quando resolvia pular a cerca. Outro ponto bastante explorado é a sua arrogância, já que se achava melhor do que os companheiros de equipe (embora, de fato, fosse). E o foco é sempre nos campos profissional e pessoal, e menos do gramado, de modo que faz com que o longa não seja um filme sobre o futebol, mas um filme que contém elementos futebolísticos. E, mais uma vez, o erro ao exaltar um jogador tempestivo é da mídia, que o idolatra e faz com que ele se sinta maior que ele mesmo. Um erro que é cometido até hoje, e não apenas com craques do futebol, mas também em outras modalidades esportivas.

“Heleno” é um belo filme, ainda que um pouco irregular, mas que desperta a paixão pela camisa e enaltece o trabalho de Rodrigo Santoro, que há muito não precisa provar por que chegou lá!

UM MÉTODO PERIGOSO

  Antonio Carlos Egypto




UM MÉTODO PERIGOSO (A Dangerous Method).  Canadá, 2011.  Direção: David Cronenberg.  Com Keira Knightley, Viggo Mortensen, Michael Fassbender, Vincent Cassel, Sarah Gadon.  99 min.



O novo trabalho do diretor canadense David Cronenberg, que gosta de histórias viscerais e que mexem em profundidade com o corpo, é um tanto diferente do que se costuma esperar dele.

Para começar, porque é um filme de época, que se esmera em belas locações, cenários, figurinos, com uma direção de arte cuidadosa e minuciosa nos detalhes, que compõem a situação onde se desenvolverá a história.  A estética do filme é impecavelmente limpa, tudo perfeitamente no seu lugar, muito bem arrumado.  De fato, isso chega a incomodar e não parece filme de Cronenberg.




O cineasta se destacou com filmes de terror muito bem-feitos, como a refilmagem de “A Mosca”, de 1986, “Gêmeos, Mórbida Semelhança”, de 1988, e “eXistenZ”, de 1999, entre outros.  “Marcas da Violência”, de 2005, é um filme forte e intenso, em que um suspense e terror psicológicos imperam.  Em “Spider”, de 2002, esse mesmo clima é utilizado para retratar a doença mental.  Tudo isso parece muito diferente de um filme de época, belo e clean.

Na verdade, não é bem assim.  A temática psicológica está sempre em destaque, no trabalho do diretor, ainda que resvale para o terreno do fantástico.  Na produção dos anos 2000, então, ela é o eixo central da narrativa.  Não é de estranhar, portanto, que agora seu filme trate de um caso real – o de Sabina Spielrein – que remete aos primórdios da psicanálise e tenha como personagens ninguém menos do que Sigmund Freud e Carl Gustav Jung.

O roteiro de Christopher Hampton é baseado na peça teatral dele próprio (“The Talking Cure”) e no livro de John Kerr (“A Most Dangerous Method”).




A ação remete ao início do século XX em Viena, onde Freud vivia, e na Suíça, de Jung, entre os anos 1904 e 1913.  Jung, vivido por Michael Fassbender, tinha, então, 29 anos de idade e mostrava grande talento para o exercício da cura pela palavra, que se tornou psicanálise pela capacidade científica e de administração associativa que Freud (Viggo Mortensen), já com 50 anos, cuidava de organizar e preservar.

 Se Jung era seu mais brilhante pupilo, ele tinha ideias próprias e punha em questão, por exemplo, o primado da sexualidade, tal como Freud o concebia.  A atração dele por uma espécie de espiritualidade, ou concepção mística, seria outra dimensão que contribuiria para o afastamento entre eles.  Como Freud poderia embarcar na ampliação do inconsciente tal como Jung viria a formular, depois de ser tão combatido por conceber a sexualidade infantil, entre outras grandes novidades? Essas são algumas questões que, de uma forma ou de outra, aparecem na trama do filme, sem que ele possa aprofundar tais discussões.



Um foco da narrativa está na paciente russa Sabina Spielrein (Keira Knightley), histérica, que viria a ter importante papel como psicanalista, a partir do seu próprio tratamento com Jung, que daria margem a um caso de amor entre médico e paciente.  Ela seria também paciente de Freud.

Jung, que está no centro da história, enfrenta suas próprias pulsões frente a Sabina e também junto a outro paciente psiquiatra, Otto Gross, interpretado por Vincent Cassel, este, um adepto da não-repressão das pulsões, vivendo a vida com tudo, experimentando de tudo.  Jung – Sabina – Freud formam um triângulo profissional amoroso, registrado por cartas entre eles, que faz parte da história da psicanálise.

As locações do filme, além de belas, contemplam também, sempre que possível, as localidades históricas onde os fatos aconteceram.  Há cenas filmadas na casa original, onde Freud morou, de 1891 a 1938, em Viena, hoje o Freud Museum, na famosa Berggasse 19.  Réplicas dos gabinetes de Jung e Freud estão presentes no filme, revelando um excelente trabalho de reconstituição histórica.




O elenco, composto por ótimos atores, no entanto, causa uma certa estranheza.  Viggo Mortensen não passa nem a imagem, nem a dimensão intelectual de um grande pensador, como Freud foi, embora não lhe faltem recursos como ator.    Michael Fassbender vive um Jung jovem e charmoso, mas um tanto agitado e confuso, que também é difícil de conceber, a partir de qualquer texto do pensador suíço, que parece primar por um equilíbrio e uma capacidade reflexiva notáveis.  De Sabina pouco se sabe, mas a interpretação de seu comportamento histérico por Keila Knightley também soa excessiva.  Ou seja, há um certo desencontro entre atores e personagens, nessa produção tão bem cuidada, com um tema tão significativo e de um diretor tão competente, que talvez seja isso que acabe por não fazer de “Um Método Perigoso” um filme empolgante como ele poderia ser.

terça-feira, 20 de março de 2012

PINA

Antonio Carlos Egypto



PINA (Pina).  Alemanha, 2011.  Direção: Wim Wenders.  Documentário.  Elenco: Pina Bausch e os dançarinos do Tanztheater Wuppertal.  106 min.


O brilhante trabalho da coreógrafa alemã Pina Bausch (1940-2009) e da companhia de dança-teatro, que ela dirigiu desde 1973 até sua morte, é o objeto do documentário “Pina”, realizado em 3D pelo consagrado diretor Wim Wenders. 

A filmagem de Wenders teve início em 2008 e foi fruto de um projeto longamente acalentado que acabou sendo transformado pela inesperada morte de Pina Bausch.  O que seria um registro artisticamente importante de um trabalho inovador, e de grande força ,acabou sendo também o testamento artístico da coreógrafa e o resgate de sua imagem ,e de seu trabalho, para o futuro.

A companhia que ela dirigiu: o Tanztheater de Wuppertal, a cidade onde ela nasceu e que abriga o grupo, permanece ativa, o que permitiu que o diretor continuasse filmando e pudesse ouvir o que os dançarinos teriam a dizer sobre Pina.  Para este fim, Wenders optou por gravar as falas deles e colocá-las sobre os seus rostos estáticos, ou melhor, se comunicando por olhares e expressões, enquanto se ouve o que eles disseram em off.  O recurso é ótimo, porque as falas são todas muito curtas.  E isso também tem tudo a ver com Pina Bausch, que falava muito pouco.

Os dançarinos procuram se lembrar das poucas frases que ela disse a cada um, sempre marcantes.  Mas é geral a sensação de que ela não costumava orientar, esperava de cada um um gesto, uma ação, que ela pudesse ampliar e transformar em cena para as suas coreografias.  Um trabalho fortemente expressivo, sem palavras, como é a sua dança-teatro contemporânea.


A tecnologia 3D, empregada por Wim Wenders no documentário, tem um incrível efeito, que a torna indispensável: a visão de profundidade do palco e dos espaços cênicos externos onde se dá a dança-teatro.  A dimensão do espaço na dança nunca foi tão bem explorada como está aqui, em função dessa tecnologia.  Durante duas horas, podemos apreciar as performances do grupo, as coreografias de Pina Bausch em toda sua dimensão espacial, o que ressalta a beleza do trabalho artístico desenvolvido.

No filme “Fale com Ela”, de 2001, Pedro Almodóvar também compôs uma cena linda e que emociona os personagens da história, quando assistem a uma performance de Pina Bausch e seu grupo, no teatro.  Já foi uma bela homenagem e difundiu o trabalho para um público maior.  Com “Pina”, de Wim Wenders, temos agora um registro mais amplo e completo do trabalho dela, em cinema.  O que é fundamental, já que, nos palcos, verdadeiras revoluções estéticas podem se perder, se não forem registradas com qualidade por câmeras.  Sempre queremos eternizar os momentos maravilhosos, especiais, como se isso fosse possível.  Não é. Mas ter algo registrado por meio de fotos e filmagens contribui de forma decisiva para a memória e para a história


O registro que Wim Wenders fez do trabalho de Pina Bausch tem, por isso também, um valor inestimável.  Independentemente disso, porém, é ótimo cinema, perfeitamente reconhecível até para aqueles que, eventualmente, não apreciem a dança contemporânea.

Só para lembrar: Wim Wenders, nascido em 1945, é um dos grandes diretores do novo cinema alemão e tem, entre os seus trunfos cinematográficos, filmes como “Alice nas Cidades”, de 1973, “O Amigo Americano”, de 1977, “Estado das Coisas”, de 1982, “Asas do Desejo”, de 1987, “Buena Vista Social Club”, de 1999, “Palermo Shooting”, de 2008, entre tantos outros trabalhos relevantes para o cinema. 

“Pina” foi um dos cinco indicados ao Oscar 2012, na categoria Documentário.  Não levou.  Afinal, no Oscar tudo é possível e nada se justifica.

sexta-feira, 16 de março de 2012

Habemus Papam


Tatiana Babadobulos


Habemus Papam (Habemus Papam). Itália e França, 2011. Direção: Nanni Moretti. Roteiro: Nanni Moretti e Francesco Piccolo. Com: Michel Piccoli, Nanni Moretti, Jerzy Stuhr, Renato Scarpa. 102 minutos

É nos primeiros 15 minutos do longa-metragem “Habemus Papam”, que foi apresentado no Festival de Cannes e na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo no ano passado, que uma das personagens faz o anúncio a uma multidão que rodeia o Vaticano, na ocasião. Isso porque o papa anterior havia morrido e, após a votação dos cardeais, um deles segue ao balcão para fazer o anúncio à multidão, após mandar o sinal de fumaça branca. Depois de uma abertura em italiano, o cardeal diz, em latim: “Habemus Papam!” Não fosse o acontecimento seguinte, o filme poderia terminar aí.

Dirigido pelo cineasta italiano Nanni Moretti, vencedor da Palma de Ouro por “O Quarto do Filho”, o longa é uma mistura de comédia e drama com foco no dilema da eleição do novo papa que é escolhido inesperadamente e não consegue aceitar o peso de suas novas responsabilidades. A cena do balcão de frente para a Praça São Pedro, que, aliás, está no trailer, é antológica.

Está certo que o papel que o papa desenvolve dentro da igreja católica é um fardo, e isso é mostrado no início da fita, quando os cardeais torcem para não serem escolhidos, mas, ao mesmo tempo, seria o destino óbvio daqueles que estão ali. Uma hora, você será escolhido. Ou não. A preparação natural deve ser feita. E o olhar de Moretti humaniza o Vaticano ao revelar que os cardeais também sofrem e passam pela pressão da sociedade, de precisar dar sempre o apoio e a palavra que se espera.



A parte cômica do filme acontece principalmente com a chegada do diretor como personagem. Isso porque Nanni Moretti vive o psicanalista que vai tratar do medo do papa eleito (vivido por Michel Piccoli, do clássico “A Bela da Tarde”). E o riso vem naturalmente por conta da relação do psiquiatra com o papa, que deve ser cautelosa, já que ele não pode tocar em todos os assuntos e tem sempre uma plateia ao redor para ouvir a consulta.

Na última edição de 2011 da revista francesa “Cahiers du Cinéma”, o filme havia sido visto por mais de 700 mil pessoas na França, um dos maiores sucessos do cinema de autor naquele país. O que já é um atestado a mais para se ir ao cinema conferir a obra, que traz diálogos bem construídos e personagens consistentes.

“Habemus Papam” pode soar um filme religioso, especialmente dedicado aos católicos, mas a mensagem que ele passa é que o mundo perdeu a cabeça e está tudo ao contrário (vide os problemas econômicos e políticos que rondam a Europa). Por esses motivos e outros, e pelo fato de podermos rir daquilo que é sério, é que o longa-metragem vale a pena.

quinta-feira, 15 de março de 2012

SHAME

Antonio Carlos Egypto



SHAME  (Shame).  Inglaterra, 2011.  Direção: Steve McQueen.  Com Michael Fassbender, Carey Mulligan, James Badge Dale, Hannah Ware.  99 min.


Brandon (Michael Fassbender), um homem jovem, é compulsivo por sexo.  Seus computadores estão permanentemente ligados em sites sexuais, até mesmo o do trabalho.  Ele tem coleções de revistas pornográficas, costuma seguir meninas que o atraem no metrô e é cliente conhecido de prostitutas.

Nós vamos conhecendo esses hábitos e a forma como Brandon lida com eles, pouco a pouco, e isso é mostrado com realismo e crueza.  Não há charme nenhum nisso, só sofrimento.  Também não se vislumbra prazer nesses comportamentos.  Tudo fica ainda mais claro quando uma relação afetiva tenta se estabelecer.  Sexo e amor são compartimentos completamente diferentes, que não se comunicam, em Brandon.

A relação com a irmã também traz à tona esse universo de aridez afetiva em que está metido nosso personagem.  Ela aparece para morar com ele e tudo se complica.  Mais do que poderia se esperar.

A sexodependência é a outra face da incapacidade de estabelecer vínculos afetivos genuínos.  Essa é a “vergonha” de fato: a imaturidade emocional que incapacita para a vida.

O diretor britânico Steve McQueen, homônimo do ator norte-americano falecido em 1980, é bem econômico e discreto ao revelar esse personagem sofredor.  Nada se mostra imediatamente.  É todo um clima, um modo de viver que vai se estabelecendo diante das câmeras, que buscam cuidadosamente o que colocar em primeiro plano.  Há muitas cenas de nudez e sexo, mas tudo muito seco e complicado.  E há poucas palavras.  Os personagens falam por seus rostos, gestos, atitudes.  As imagens se impõem sobre a fala, revelando um cinema de ótima qualidade.


Sexo e sofrimento às claras podem incomodar algumas pessoas.  “Shame”, de fato, não se esquiva em incomodar.  Pelo contrário, acha necessário isso, para mostrar a realidade nua e crua do personagem.  A crueldade está lá presente.  Assim como sendo uma coisa inevitável, em situações como as mostradas no filme.

Conflitos podem ser, ou parecer, insolúveis, algumas vezes.  Estamos num terreno de patologias sérias de comportamento, não só do protagonista, mas de algumas de suas relações mais próximas, como a irmã e o chefe.  É a soma e a interação de atitudes estranhas nos relacionamentos que se estabelecem entre eles que torna tudo tão difícil de se lidar.  Para todos eles, por certo.  E que causam um inevitável mal-estar no espectador.

Quem se aventurar nessa experiência encontrará um filme forte, denso e honesto, que não faz concessões ao mercado de entretenimento.  Pode ser sofrido, pessimista, talvez, mas não engana o espectador, nem o manipula.

quarta-feira, 14 de março de 2012

O Porto


Tatiana Babadobulos


O Porto (Le Havre). Finlândia, França e Alemanha, 2011. Direção e roteiro:Aki Kaurismäki. Com: André Wilms, Blondin Miguel e Jean-Pierre Darroussin. 93 minutos



Desde sempre o cinema aborda os problemas do mundo em suas histórias. Retrata as duas grandes guerras, a Quebra da Bolsa de Nova York, os ataques terroristas às Torres Gêmeas, exalta as belezas de alguns lugares paradisíacos, debocha do que é possível e assim por diante. A crise mundial que se instalou em 2008, e da qual ainda não conseguimos nos livrar, se reflete, é claro na tela grande também. Seja sobre o problema do desemprego nos Estados Unidos, seja dos imigrantes que saem de seus países em busca de melhores condições. Mas sobre a Europa, e os problemas que assolam Portugal, Espanha e Grécia, pouco (ou nada) se fala.

Foi, portanto, partindo desse princípio que o diretor finlandês Aki Kaurismäki escreveu “O Porto” (“Le Havre”), longa-metragem que estreia nesta sexta-feira, 2 de março, retratando o delicado assunto da imigração na Europa. Segundo ele mesmo disse no material de divulgação à imprensa, “o cinema europeu não tem falado muito sobre o contínuo agravamento das crises financeiras, políticas e, acima de todo, sobre a crise moral causada pela questão cada vez mais sem solução dos refugiados”. E arremata: “Os refugiados estrangeiros que tentam achar seu caminho dentro da União Europeia, e são tratados das mais diversas formas possíveis. Eu não tenho resposta para esse problema, mas continuo querendo lidar com essa questão e o fiz neste filme”.

“O Porto” conta a história de Marcel Marx (André Wilms), um escritor aposentado que se exilou na cidade portuária de Le Havre, no norte da França, onde exerce a profissão de engraxate de sapatos. Apenas sai de casa e frequenta o bar da esquina e fica com a esposa Arletty (Kati Outinen). Conhece toda a vizinhança e parece ser uma pessoa boa.


Mas é quando ela fica doente, que o destino lhe prega uma peça e o faz pensar em outros assuntos e a refletir sobre os problemas do mundo. No meio tempo, o imigrante africano Idrissa (Blondin Miguel) é colocado em sua frente. O garoto chegou, como mostra as primeiras cenas da fita, em um container, mas tinha a intenção de chegar em Londres ou seja, do outro lado do Canal da Mancha. E, como o espectador pode reparar, ao contrário do que se espera, os imigrantes estão bem dispostos, bem cuidados e nada cansados, apesar da longa jornada desde a África. É claro que esta foi uma opção estética do diretor e uma maneira de não exagerar no melodrama.

O que importa, porém, é o que vem na sequência. É quando Kaurismaki, também produtor e autor do roteiro, se mostra sensível à medida que desafia até onde vai a bondade humana, principalmente porque é preciso esconder o jovem que chegou com outras pessoas dentro de um container da polícia imigratória, além de precisar lidar com as próprias dificuldades e preconceitos.

Além dos problemas de imigração, a fita discute a falta de dinheiro, o trabalho informal e o tráfico de pessoas. Embora não exista problema de comunicação, já que tanto o africano quanto o francês dialogam no mesmo idioma, a fita remete ao argentino “Um Conto Chinês”, talvez pelos problemas sociais, além do fato de esconder uma pessoa dentro de casa. Além de falar francês, o garoto é bem educado e retribui com trabalho tudo o que fazem de bom por ele.

Com toques de bom humor, no melhor estilo europeu, o longa foi indicado à Palma de Ouro no Festival de Cannes em 2011 e vencedor do prêmio Fipresci (Federação Internacional de Críticos de Cinema), no mesmo festival. “O Porto” é uma grande lição, sobretudo de compaixão e solidariedade, além de uma pitada de tolerância. Sabores que andam em falta nos dias de hoje.

segunda-feira, 12 de março de 2012

W.E. – O Romance do Século



Tatiana Babadobulos

W.E. - O Romance do Século (W.E.). Reino Unido, 2011. Direção: Madonna. Roteiro: Madonna e Alek Keshishian. Com: Abbie Cornish, James D'Arcy e Andrea Riseborough. 119 minutos.


Madonna, a cantora, todo mundo conhece. E se lembra dela, no final dos anos 1980, escandalizando o mundo quando estrelou o clipe de sua música “Like a Prayer” e queimou uma cruz, para horror da igreja católica. Madonna também já trabalhou como atriz, mas agora ela resolveu atuar como diretora (além de produtora e roteirista). Seu longa-metragem, “W.E. – O Romance do Século” (“W.E.”), estreia nesta sexta-feira, 9, nos cinemas, depois de ter vencido o Globo de Ouro de Canção Original (“Masterpiece”), ser indicado, para o mesmo prêmio, na categoria Trilha Sonora Original e ser indicado ao Oscar de Melhor Figurino.

A fita conta, paralelamente, duas histórias de amor. Wally Winthrop (Abbie Cornish, de “Sem Limites”) e Wallis Simpson (Andrea Riseborough, de “Não me Abandone Jamais”) estão separadas por mais de seis décadas, já que a segunda viveu no início dos anos 1930, quando se apaixonou pelo então príncipe de Wales e, a segunda, que achou o romance perfeito, em 1998, pois o Rei Edward VIII abdicou do trono britânico por causa da mulher que amava. Ele, que deveria subir ao trono quando seu pai morreu, abdicou da coroa, pois a mulher que amava era divorciada (a americana Wallis Simpson) e, segundo as leis britânicas, um rei não poderia se casar com uma divorciada, pois é o chefe da igreja.


Mas essa história começou a ser contada em “O Discurso do Rei”, longa-metragem de Tom Hooper, que venceu diversos Oscars em 2011, incluindo Melhor  Filme e Ator, para Colin Firth, como o rei gago, e que tomou o poder após a renúncia do irmão. Agora, porém, o foco é no irmão, uma outra visão, portanto, já que se apaixonou e viu os seus súditos ir contra ele e à sua futura esposa, em um julgamento pouco visto na realeza britânica.

Aqui, além de mostrar o romance dos dois “pombinhos”, a ênfase é na vida de Wally, cujo nome fora inspirado em Wallis, já que sua mãe queria que ela se casasse com um príncipe (mas acabou casando-se com um médico que pouco ou tempo nenhum tem pra ela). E, entre as visitas ao arquivo dos Windsor, na casa de leilões Sotheby’s, ela tem uma grande memória sobre o tal “romance do século”, que dá nome em português ao longa, e se inspira no romance da outra, no passado. No presente, ela desconfia que o marido a trai e quer ter um filho.

O nome original do filme são as iniciais dos amantes: Wallis e Edward, aqui vivido por James D’Arcy. A explicação é dada logo no início ao espectador e a câmera de Madonna é nervosa e fora de foco, na maior parte do tempo, justamente para mostrar a tensão das personagens. As idas e vindas no tempo são separadas por recursos primários, como a legenda, mas também pelo belo figurino, que, aliás, ren­deu ao longa o prêmio do Costume Designer Guild Awards, na categoria de Excelência em Figurino de Filmes de Época.

“W.E. – O Romance do Século” é delicado à medida que trata com bastante bom gosto o tema polêmico. Em alguns momentos, porém, a história fica confusa e o vai e vem no tempo se torna cansativo. Mas não chega a ofender o espectador. Falta também emoção e, para quem quer ver um bom romance, o filme deixa a desejar, principalmente por as cenas de amor não estão lá.

sábado, 10 de março de 2012

MINHA FELICIDADE

Antonio Carlos Egypto



MINHA FELICIDADE (Schastye Moe).  Ucrânia, Alemanha, 2010.  Direção: Sergei Loznitsa.  Com Victor Nemets, Olga Shuvalova, Vladimir Golovin.  127 min.


“Minha Felicidade”, o primeiro longa-metragem do diretor bielorrusso Sergei Loznitsa, é um soco no estômago.  Na verdade, é um road  movie desesperançado, que já começa ironizando desde o título.  Não há felicidade alguma, só a ausência dela.  O que mais se vê aqui é sordidez.

Georgy (Victor Nemets) é um caminhoneiro que pega uma saída errada e se perde, passeia pela área rural da Rússia, conhece tipos e figuras diversos, mas todos marcados pela lógica do homem lobo do homem.  Há violência, estupro, constantes e frequentes abusos de autoridade, enganação, roubo, prostituição infantojuvenil e por aí vai.  Uma viagem que só poderia desembocar num beco sem saída.

Pessimista demais, certamente.  Mas bem mostrado por uma câmera que registra tudo a seco, sem comentar ou se emocionar com o que mostra.  E o que se vê é terrível.  A sensação é a de que, definitivamente, a humanidade não está dando certo, pelo menos na Rússia.


Se quase não sobra nenhuma humanidade nos personagens, estão todos matando para tentar sobreviver, o que se intui é que tudo isso está inserido, e justificado, por uma história de fome, guerra, opressão, que se entranhou no tecido social e se naturalizou.  Nada mais surpreende.

Terá chegado a Rússia ao fundo do poço?  Ou, de alguma forma, sempre esteve lá?  Da opressão dos Czares, passando pelas guerras e pelo comunismo stalinista de triste memória, para chegar ás máfias e à corrupção generalizada, parece que as coisas foram perdendo todo o sentido, aos poucos.  Só restou, mesmo, o desconsolo.  Pelo menos, é o que o filme de Loznitsa nos passa.

Quanto disso é verdadeiro ou não, não sei.  Embora seja inevitável reconhecer que o filme não está delirando.  Pode estar exagerando, pode ter elevado seu pessimismo ao mais alto grau, mas a realidade está lá, de uma forma ou de outra.  E só nos resta apreciar o trabalho artístico, de cunho bem realista, por sinal, e lamentar.  Não era para ser assim, obviamente.

quinta-feira, 8 de março de 2012

CAIRO 678

Antonio Carlos Egypto




CAIRO 678 (678).  Egito, 2011.  Direção e roteiro: Mohamed Diab.  Com Nelly Karim, Bushra, Maged El Kedwany, Ahmed El Fishawy.  110 min.


“Cairo 678” é um filme egípcio que trata do tema do assédio sexual a que estão sujeitas diariamente as mulheres no Cairo, com seu ritmo de cidade grande.  Os comportamentos masculinos exibidos pela película, porém, não deixam dúvida de que isso deve se estender a todo o país e tem uma dimensão que extrapola fronteiras geográficas.  É daqueles temas em que falar da sua aldeia é falar ao mundo.

O assédio sexual é mostrado por meio de três mulheres que vivem vidas bem diferentes e pertencem a estratos socioeconômicos distintos.

Fayza é pobre, anda de ônibus e dia após dia é molestada por alguém na condução, sempre superlotada.  O assédio aí é caracterizado pelo que se chama de froteurismo, ou seja, a busca de um prazer através do contato corporal forçado, sem consentimento da outra pessoa.  Geralmente são homens que apertam ou se esfregam numa mulher, aproveitando situações que envolvem muita gente, como ônibus cheios, elevadores e outros.  Há homens que procuram esfregar o pênis contra o corpo de uma mulher vestida (e geralmente desconhecida), para alcançar o orgasmo.  Ou tocam nos seios ou nos genitais de alguém que não espera tal contato.

É por esse tipo de assédio que passa Fayza, além de observar o mesmo acontecendo com outras mulheres, sem que nada se faça para impedir os fatos.  Como reagir a isso e viver em paz? É o que Fayza se pergunta.  Seba talvez tenha a resposta.

Seba, que também já foi molestada em campo de futebol, é uma espécie de militante feminista que batalha pelo direito das mulheres em cursos que ministra e, também, por meio de programas de TV.  Ela apresenta incrível firmeza no trato com esse tema, sólida, teoricamente.  Na prática, porém, as coisas podem ser mais difíceis do que ela mesma imagina.

Nelly tem um padrão de vida que não a expõe aos ônibus lotados.  Mas é assediada na rua, com cantadas desrespeitosas, e tocada de forma agressiva e humilhante.  Resolve ir em busca de seus direitos legais e procura abrir um processo de assédio sexual.  A dificuldade é enorme e ela descobre, surpreendida, que nunca houve um processo como esse na história do Egito.  Ela seria a primeira a concretizá-lo, enfrentando um tabu, fortemente protegido pelas famílias e pelas próprias instituições do país.  A tradição diz que é vergonhoso admitir que se sofreu assédio, culpabilizando as vítimas.




Os três personagens femininos se relacionarão num embate cultural, político e legal, da maior importância, pelo respeito no espaço público e punição ao machismo disseminado e tacitamente aceito em sua cultura, tendo o assédio sexual no centro de toda a história.  Uma ideia muito feliz e corajosa do diretor Mohamed Diab, ao trazer à luz e enfrentar a questão num filme bem estruturado, com situações e personagens convincentes e consistentes.

O foco no tema do assédio sexual foi apropriado, o filme não se perdeu em didatismo ou teorizações.  Ele é todo centrado numa trama que o espectador acompanha com interesse, ao mesmo tempo em que toma conhecimento de uma realidade, geralmente escamoteada, que pode estar muito próxima de todos.  Não é preciso ir ao Egito, talvez baste enfrentar o metrô superlotado de São Paulo para passar por isso ou para observar situações similares.

Se os costumes e as leis divergem, nem por isso as diferenças com a nossa realidade são assim tão grandes.  Vale a pena ver o filme e pensar no assunto que ele aborda.  O diretor estreia em longa-metragens, mas é competente, sabe do que está falando.  Vai longe.